Durante minhas férias escolares, criei uma rotina matinal para mim: acordar, fazer exercício, tomar banho, preparar e comer o café da manhã. Aliás, nem matinal era, pois estava acordando por volta das dez horas a fim de compensar meu trabalho noturno.
O reinício dos estudos trouxe o desafio de adaptar essa rotina a uma nova realidade: minha escola agora tem aulas pela manhã. Se entro na escola às 8:50 e levo 20 minutos para caminhar até lá, posso dedicar três blocos de 30 minutos cada para fazer exercício, me arrumar e comer. Tudo bonitinho, certo?
Certo?
Quinta-feira passada dormi com o olho direito inchado por causa de uma inflamação. Na sexta estava um pouco melhor, mas resolvi ir ao médico no sábado, por via das dúvidas. Passei remédios, comecei a melhorar… No domingo meu olho esquerdo começou a doer e inchar. Precisei ir ao médico outra vez: era conjuntivite.
Segunda-feira, primeiro dia de aula, acordo às 7h com o celular gritando. Às vezes sinto raiva da agressividade do despertador, mas se ele cantarola mais gentil, eu não acordo. Desligo o despertador e me forço a não fechar os olhos novamente. Mando uma mensagem de bom dia pro namorado, confiro minhas notificações para ver se tem algo urgente ou tentador o suficiente, olho uma e outra. Quando vejo, dez minutos já se passaram. Pulo da cama.
Hora do exercício. Não, espera, melhor ir ao banheiro antes. A primeira evacuação do dia me deixa mais confortável pra chacoalhar o corpo, mas nem sempre vem direto. Fico um tempo no banheiro aguardando. Esses dias até comprei um daqueles banquinhos para deixar os joelhos mais altos do que a cintura, dizem que ajuda a cagar melhor. Por enquanto tenho gostado. Quem ensina a gente a fazer cocô? Cocô, sexo, dinheiro, essas coisas a gente não conversa muito a respeito… Ufa, posso continuar o dia!
(Aliás, estou lendo um livro chamado A vida secreta dos intestinos. Um dia junto coragem e explico o porquê.)
Exercício. É só sair mexendo, né? Não, não é. Tiro o pijama, coloco a roupa de suar, arredo a mesinha de centro, abro e estendo o tapetinho de ioga no chão, inicio o aplicativo que me diz qual é a sequência de movimentos, espero a propaganda passar, e aí sim finalmente faço os exercícios. Alguns faço bem rapidinho, outros preciso assistir a tutoriais em vídeo para entender. Depois que termino, atualizo os aplicativos de saúde com os dados recentes, checo os medidores de qualidade do sono, guardo o tapetinho, volto a mesa para o lugar, estou atrasado para o banho.
Banho. É só tirar a roupa e se lavar, né? Ligo o aquecimento da água, abro o chuveiro, espero a água esquentar, tiro a roupa, banho. Hoje é dia de usar só o shampoo para cabelos enrolados, ou será que uso também o shampoo que hidrata e refresca? Se o cabelo estiver seco, posso também usar a máscara de hidratação… Decisões, decisões. Termino o banho, me seco, seco o banheiro, estendo a toalha na sacada, passo creme no cabelo, uso o secador, passo laquê, lavo as mãos de novo. No meio do caminho, vou vestindo as roupas (a camiseta antes do creme de cabelo, pra não bagunçar).
Café da manhã. De quem foi a ideia de incluir frutas na tigela de cereais? Pego a banana, corto a banana, pego o morango, lavo o morango, corto o morango, pego o mirtilo, lavo o mirtilo, ponho os cereais, as nozes, as frutas e o iogurte na tigela, misturo tudo, ponho o suplemento de fibras, misturo mais um pouco, como como como, ponho a louça suja na pia e corro pra escovar os dentes e terminar de ajeitar as coisas porque o relógio me diz que estou quase atrasado.
Antes de sair, pingo os colírios e passo a pomada no olho. De acordo com a recomendação do médico, preciso esperar cinco minutos entre cada remédio. Espero só três e meio porque estou com pressa e me pergunto se esta é a melhor escolha.
Corro e chego na escola um minuto antes da aula começar. Meu colega chinês, ao lado do qual sentei durante todo o trimestre passado, coloca seus livros no assento livre, reservando para um amigo dele. Vou para outro canto. Ao longo da aula, ouço a voz dele mais vezes em três horas do que ouvi em três meses.
Passei a semana com a música Cotidiano, do Chico Buarque, tocando na minha cabeça. Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã… Penso nessa música e me incomodo com a mulher em casa enquanto o homem sai e trabalha. Nada contra se essa é uma vida escolhida, mas não acredito que o seja para a maioria das mulheres que viveram ou vivem nessa situação.
Ao mesmo tempo, me reconheço na busca por previsibilidade. Não quero que meus dias sejam todos iguais, mas tenho encontrado valor em regularizar as atividades de manutenção, essas coisas cotidianas que preciso para manter a vida acontecendo de forma saudável. Limpeza, exercício, alimentação, tudo isso consome um pedaço do mesmo tempo que utilizo para gerar renda (trabalhando), aprender novas habilidades (como japonês), escrever, socializar etc.
Alguns anos atrás, eu queria agilizar ao máximo as atividades de manutenção para então curtir aquilo que pensava ser realmente importante: as atividades de produção e de lazer. Preparar comida e limpar a casa eram obstáculos para a vida que eu queria viver. Eu queria escrever, encontrar amigos, juntar grupos, cuidar de ambientes de aprendizagem e criatividade… O que eu não queria era perder tempo com “banalidades cotidianas”.
Aos poucos, bem aos pouquinhos, tenho começado a valorizar esses momentos de cuidado comigo e com os meus como algo que também é produtivo e prazeroso.
Um exemplo disso tem sido meu retorno à culinária. Embora tenha começado como uma tentativa de economizar e de manter rotinas mais práticas, tenho redescoberto o prazer que é experimentar com sabores e descobrir o que cada novo ingrediente acrescenta ou transforma na hora de preparar um prato. Lembrei do prazer que sinto quando sobre o cheiro da cebola e do alho fritando na frigideira e da frustração que me consome quando os morangos que comprei dois dias atrás começam a mofar.
A conjuntivite me derrubou no meio da semana. Tirei o exercício da rotina matinal porque baixar a cabeça estava doendo demais e faltei aula na quarta-feira. Passei o dia em casa gemendo de dor e fazendo manha para mim mesmo.
No dia seguinte já estava um pouco melhor, almocei com um rapaz que conheci no Grindr e acabamos vindo para minha casa. Juro que foi um inocente “preciso pingar meu colírio antes de irmos nessa loja”, mas rendeu uma boa transa e estou aqui pensando o quanto a vida fica mais doce quando estou aberto ao encontro com gente legal.
Ainda quero achar um tempo para fazer exercícios durante a semana. Sexo não conta, pelo menos enquanto não faço o tanto que gostaria – ou que acho que gostaria, já que nem sempre a imagem que tenho de mim corresponde ao eu que vive na realidade. Vivo achando que sou jovem, mas não tenho energia nem paciência pras coisas da juventude. Sei que existe beleza em aceitar quem se é, mas quero aceitar meu corpo bem nutrido e exercitado.
Semana passada fui pela primeira vez em um onsen, que são as águas termais aqui no Japão. Delícia demais experimentar o contraste entre a água quente e o frio a céu aberto. Vendo os homens pelados, fiquei pensando em um texto da
:Posso contar mais sobre a experiência do onsen, se alguém tiver curiosidade. Se for o caso, é só me dizer.
Obrigado pela leitura!
Com carinho,
Tales
Eu amo uma rotina!