A coragem de dizer o que está vivo em mim
Uma música, dois filmes e muita expressão autêntica
Oi, obrigado por estar aqui.
Quando anunciei o interesse em compartilhar meus escritos e encontrei um grupo de humanos que demonstraram interesse em me ler, senti um quentinho no coração. Esse apoio silencioso vindo das pessoas que existem ao meu redor me nutre e me diz que há espaço para expressar o que está vivo aqui dentro.
Meus escritos dos últimos anos foram, na maioria, conectados a algum projeto específico. Textos sobre escrita. Textos sobre viver melhor. Textos sobre comunicação não-violenta. Textos escritos com a intenção de ensinar para serem lidos por quem quer aprender alguma coisa.
O que quero aqui, no Olhar de Raposa, não é ensinar. Quero compartilhar o que está vivo aqui dentro. Essa é uma expressão que aprendi com a comunicação não-violenta, que me convidou a olhar para dentro e perceber não só o que e como eu penso, mas também o que e como eu sinto, de que maneira reajo ao que acontece, de que modos anseio pelo que pode acontecer conforme as histórias que conto para mim.
Agora mesmo, por exemplo, há uma voz interna sussurrando que esse texto não merece ser compartilhado, que eu deveria ter pensado duas vezes antes de começar a escrevê-lo, que eu tinha outras ideias e que deveria segui-las porque isso aqui está ruim, que todas as pessoas que abrirem esse texto vão desistir dele já que não fará sentido para elas. Esses medos estão vivos aqui dentro. Medo de que eu, que há sete anos cuido de escritores, não seja escritor suficiente – o que quer que isso signifique. Medo de que as mesmas pessoas que nutriram esse movimento percebam, finalmente percebam!, que não vale a pena dedicar energia para estar aqui e que há muito mais na vida que possa valer o investimento de tempo.
Esse medo e tantos outros são velhos conhecidos. Cogito chamá-los de amigos. Acredito que eles queiram o meu bem acima de qualquer coisa, mesmo que isso signifique nunca colocar um pé para fora do que já conheço, do que já acho que sei como termina. Esses medos são parte de mim junto com tantas outras partes, uma multidão de pedaços apontando para lados diferentes, cuidando de aspectos distintos. “O ser humano é esquisito, armadilha de si mesmo”, diz a Flaira Ferro na música Me curar de mim. Não poderia estar mais de acordo.
Ela canta ainda “para me encher do que importa, preciso me esvaziar, minhas feras encarar, me reconhecer hipócrita, sou má, sou mentirosa, vaidosa e invejosa, sou mesquinha, grão de areia, boba e preconceituosa, sou carente, amostrada, dou sorriso, sou corrupta, malandra, fofoqueira, moralista, interesseira, e dói dói dói me expor assim”.
Eu sou tudo isso e tanto mais.
Flaira continua: “mas se eu não tiver coragem pra enfrentar os meus defeitos, de que forma, de que jeito eu vou me curar de mim, se é que essa cura há de existir, não sei, só sei que a busco em mim, só sei que busco… Me curar de mim”.
Essa carta eletrônica é sobre e a partir de mim, do meu jeito de viver e olhar para mim, mas não só. Não há Tales nem raposa sem o mundo no qual transito, esse mundo que me molda, me fere e me alimenta. Esse mundo que me olha e me instiga a olhar de volta, que me ensina a ver e também a procurar outros modos de ver. Esse mundo que explicita a todo o tempo o quanto ele não pode, de verdade, cru, sem filtros, ser visto em inteireza. Sou grão de areia, meu campo de visão é limitado, o que me resta é trocar as lentes aqui e ali para ver aonde isso me leva.
O Olhar de Raposa é sobre isso: experimentar uma lente não-violenta, leve e lúcida. Só não-violência sem lucidez é anestesia. Só lucidez sem não-violência pode bem ser apocalíptica. Não-violência e lucidez são, portanto, um par que faz muito sentido, e como não acredito que dois sejam o limite do que se pode combinar com amor e inteligência, acrescento a leveza.
Duas coisas me motivaram a pensar este texto.
Tenho um amigo que planeja escrever um projeto de pesquisa para entrar no mestrado e recentemente conversamos a respeito das suas motivações. Na conversa, recordei o que me importou durante os tempos de estudos acadêmicos: a troca intelectual, a abertura para a investigação frente ao que não sei, as referências que me provocam a rever a partir de outros pontos de vista. Durante o mestrado, partilhava referências com outras pessoas que também gostavam de investigar a vida, e com que prazer ainda relembro de textos e vídeos e conversas que me tocaram tão fundo a ponto de seguirem como mais uma dessas vozes que dialogam dentro de mim.
Quero viver de novo, em mais espaços, essa sensação gostosa de descobrir o que influencia outros humanos a serem como são e, ao mesmo tempo, compartilhar o que molda o meu jeito de existir. Quero me afetar.
A segunda coisa que me motivou a pensar e a escrever este texto foi um curta metragem que assisti há uma semana. Há coisas que vejo ou leio e que passam rápido, resvalam na superfície e desaparecem da memória. Essa talvez seja a categoria mais ampla que organiza minhas experiências – imagino que as tuas também, isso me parece muito humano, até para fins de sobrevivência.
Esse curta que assisti, entretanto, penetrou fundo nos meus sentimentos. Vi e revi já não sei quantas vezes. Estou encantado com o desenho, com a música, com a dublagem, com a narrativa. Terminei de ver inspirado a mostrar o curta para o mundo inteiro porque quero que outras pessoas experimentem também dessa empolgação que me tomou por inteiro. A realidade é que me apaixonei por esse curta a ponto de retomar a coragem para iniciar essa aventura do Olhar de Raposa.
Sem mais delongas, aqui está o curta. Ele é dublado em francês, mas legendas estão disponíveis em inglês ou traduzidas automaticamente para o português.
Consigo pensar em múltiplos motivos pelos quais eu gostei tanto dessa animação. Para começo de conversa, é o tipo de coisa que eu gostaria de ter assistido quando criança ou adolescente, na época em que acreditava que havia algo de errado comigo porque eu me afetava pelo mundo de uma maneira diferente daquele que eu percebia outras pessoas se afetando. Especificamente, eu não sabia que era possível – e fiz incontáveis exercícios mentais para me convencer de que não era – dois homens se gostarem afetivassexualmente. Sou filho dos anos 1986, minhas referências positivas de homossexualidade foram escassas até bem depois de iniciar a vida adulta.
Nota mental (e agora pública): no futuro, comentar sobre as revistas de sexo que minha avó (ou seria meu irmão?) mantinha em casa, o livro sobre comportamentos de consumo de homossexuais que encontrei na biblioteca da Psicologia durante a faculdade e que levei para casa no mínimo umas cinco vezes durante a graduação, uma música gauchesca em forma de paródia que descrevia sexo entre dois homens, um colega de escola relatando sobre como seduziu um pedreiro.
De volta ao curta, eu queria ser os dois personagens. De certa forma, no passado, eu fui, mas não tive a mesma coragem de anunciar meus desejos. Mesmo com medo, mesmo com as vozes sussurrando que seria melhor deixar quieto, o protagonista vai lá e continua no seu caminho para contar ao melhor amigo que teve um sonho erótico e que talvez esteja apaixonado por ele. Isso é o que na comunicação não-violenta chamamos de expressão autêntica, quando dizemos algo que nos importa e que temos consciência de que poderá impactar nossa relação.
O amigo, Gab, poderia ter reagido de mil formas. Ele poderia ter dito “não”, feito piada, menosprezado, romper a relação, duvidar, bater. Quantas histórias com personagens gays já não vi ou li cujos roteiros eram exatamente esses, o sofrimento do desajuste, a confirmação de que não há lugar para esse tipo de sentimento?
No curta, ele reage com não-violência, leveza e lucidez. Ele acolhe o sentimento do amigo, oferece um caminho, se abre à experiência e não coloca obstáculos onde eles não existem. Gab está presente no momento. Ele poderia igualmente ter dito “desculpe, não sinto o mesmo” seguido de um “quer me contar mais sobre o que está sentindo?” ou “vamos ali tomar um sorvete?”, ou tantas outras coisas igualmente cuidadosas e acolhedoras – destaco que não é o “sim, vamos experimentar” que me tocou nessa história, embora eu certamente tenha apreciado esta resolução para a narrativa, mas o cuidado e carinho presentes na ocasião.
Esse curta não apenas me ensina a lidar com meus medos compartilhando-os com quem me importa e pode me apoiar a lidar com eles; ele também me mostra uma representação de amor possível entre dois amigos. O Tales do passado talvez tivesse vivido um tantinho mais seguro de si caso houvesse aprendido que essa é uma possibilidade.
Seguindo a linha de “referências que gostaria de ter quando mais novo”, o filme Luca, da Pixar + Disney, é outra recomendação. A história é sobre dois monstros do mar que se tornam amigos e se aventuram juntos num mundo que os rejeita. Embora não seja sobre a experiência queer (palavra que estou usando para enquadrar todo um espectro de experiências de gênero e sexualidade que não conformam às normas e expectativas tradicionais de nossa sociedade atual), algo que inclusive o diretor do filme fez questão de afirmar quando questionado, incontáveis elementos da experiência queer estão lá: o armário, a descoberta do amor possível, o senso de novidade, a experimentação, a rejeição da própria identidade para garantir a sua sobrevivência, a busca por famílias alternativas que ofereçam acolhimento e suporte, Luca tem tudo isso.
Assisti a um vídeo que defende esse argumento com bastante qualidade. Ele está disponível no YouTube em inglês e com legendas ou traduções geradas automaticamente:
Se a linguagem for uma barreira e tu tiver interesse nesse tema, conversa comigo e posso escrever mais sobre isso no futuro.
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Vou encerrar por aqui essa primeira carta eletrônica do Olhar de Raposa. Mais uma vez, te agradeço pela presença e companhia. Caso tu tenha outras referências para compartilhar ou queira conversar sobre o que escrevi aqui, basta responder a esse e-mail ou comentar diretamente no site.
Um abraço de raposa 🦊
Tales
Tocada com sua verdade e coragem. Fez imenso sentido seu texto. Importantíssimo refletir sobre tudo isso. Gratidão
Parabéns e boa sorte.