🦊 Alguns fundamentos do improviso
Sobre dizer sim para a vida que se apresenta com abertura e coragem
Desde que mudei para Tóquio, tenho procurado oportunidades para conhecer pessoas novas e fazer coisas legais. Eu gosto de ambientes intencionalmente acolhedores e adaptados para facilitar conexões profundas, então geralmente evito bares e boates.
Como sabemos, fazer amizades na vida adulta é um desafio sério. Com isso em mente, tenho usado duas estratégias para lidar com ele: [1] tomar iniciativa propondo e organizando encontros e eventos com as pessoas que vou conhecendo; e [2] participar de grupos que já existem. Por exemplo, há alguns meses frequento eventos de trocas de idioma e de jogos de tabuleiro, algo que tem me ajudado a descobrir e aproveitar novas conexões possíveis.
Afinal, quando humanos têm algo para fazer juntos, fica mais fácil estabelecer conexões.
Há duas semanas, participei de uma aula de improviso oferecida pelo TCS Improvazilla School of Improv, e na carta de hoje gostaria de contar um pouco sobre como foi a experiência.
Antes de começar, porém, quero compartilhar um pedaço de um texto antigo meu, compartilhado em 2016 no perfil do Medium.
O que vem antes do improviso
Há pelo menos quatro princípios que fundamentam a possibilidade do improviso. Embora pareçam invisíveis, eles estruturaram cada piada, cena e história vivida no palco. São os mesmos pilares que oportunizam a existência da criatividade e, também, da empatia.
(Pesquei esses princípios alguns meses atrás de uma palestra do Marcio Ballas.)
O primeiro princípio é aceitar que o outro é diferente. Se os comediantes não conseguissem desligar seus julgamentos e preconceitos, dificilmente conseguiriam lidar com a dinâmica da criação na hora. O improviso exige a aceitação da diferença porque o outro não vai corresponder às nossas expectativas, ele vai responder nossas propostas com suas próprias ideias e daí pra frente a coisa deixa de ser apenas nossa ou somente dele, ela se torna algo compartilhado.
O segundo princípio é deixar o “não” de fora. Dizer não é criar uma barreira que interrompe o fluxo das possibilidades. Negamos quando queremos evitar que as coisas sejam diferentes daquilo que imaginamos (volte um parágrafo e releia o primeiro princípio). Quando dizemos sim, por outro lado, deixamos correr livre as histórias que poderão se formar. Se o não é uma porta trancada, o sim é a chave.
Durante uma cena em que apenas dois artistas estavam apresentando, um terceiro entrou para encenar junto, fazendo-se de objeto no cenário. Os dois artistas poderiam tê-lo ignorado e lançado um não silencioso àquela intervenção não requisitada, mas optaram por dizer sim e interagiram com ele, ampliando a potência da cena.
O terceiro princípio da improvisação é entender que errar faz parte. O espetáculo não foi perfeito, algumas piadas passaram sem risadas e certas histórias ficaram fracas de um ponto de vista narrativo. E tudo bem. Se eles não pudessem abraçar o erro, tampouco poderiam improvisar. Quando não sabemos o que está para acontecer e não temos um mapa detalhado prevendo cada passo seguinte, erros vão acontecer. O erro é a materialização da diferença, para a qual devemos dizer sim.
O quarto princípio me pareceu determinante para o sucesso da noite: improvisar é diferente de fazer gambiarra. Improviso demanda técnica, prática e desprendimento para observar e rearranjar os elementos com os quais o público conseguirá dialogar. Para improvisar, eles precisaram estar preparados, informados sobre o mundo em que vivem. Falaram de iogurte, de engenharia, de holograma, e creio que bem poderiam falar de física quântica e religiões do leste asiático. A intenção das cenas era fazer rir aos outros, não apenas a eles próprios, o que tornava o humor ainda mais poderoso.
Para além destes quatro princípios, colhi uma impressão desta noite de improviso: estereótipos são importantes porque articulam os lugares comuns do pensamento. O jogo proposto pelos improvisadores precisava se equilibrar entre o estereótipo e o particular. Sem estereótipos, a plateia não reconheceria os cenários e personagens propostos. Sem particularidades, não haveria margem para o estranhamento que provoca o riso.
O site da Improvazilla oferece alguns recursos adicionais para pensar sobre o improviso. Gostei em particular dos fundamentos listados, dos quais separei alguns para traduzir e compartilhar:
Aceite a realidade de tudo o que está sendo proposto, não bloqueie ofertas e responda emocionalmente de uma forma que estabeleça seus sentimentos sobre o outro personagem.
Você tem o direito de pausar uma cena que esteja deixando você desconfortável.
Escute primeiro, depois fale. Tente repetir e expandir sobre o que a outra pessoa diz tanto quanto possível, especialmente quando iniciando no improviso.
Falhe com graça e bom humor!
Não seja um exibido. Esta é uma atividade em grupo e fazer com que os outros brilhem vem em primeiro lugar.
Estes fundamentos (e outros disponíveis em inglês no site) são pertinentes não só para a arte do improviso no palco, mas também podem ser utilizadas na vida e são coisas que não costumamos aprender na educação tradicional.
Na minha primeira aula de improviso, uma cena ficou marcada na minha memória. Estávamos fazendo exercícios de escuta, atenção e conexão que ficavam mais complexos a cada etapa. Naquele momento, começaríamos a fazer uma atividade em duplas em que ambos participantes espelhariam um ao outro, repetindo as palavras ou gestos do parceiro com um pequeno atraso.
Definitivamente, não era uma atividade simples.
Para exemplificar a atividade, o professor da noite chamou um participante experiente para jogar junto. Quando digo experiente, estou falando sobre vários anos de prática, incluindo apresentações públicas e reflexões teóricas sobre a arte do improviso. Vê-los jogando em conjunto, portanto, foi uma oportunidade deliciosa de lembrar que, além de talentosos, são humanos. A graça do jogo não está em fazer certo, mas sim em acolher o erro e continuar tentando, rindo das limitações e dificuldades que se apresentam enquanto tentamos construir uma conexão genuína com o que está acontecendo no momento presente.
O participante era um homem japonês. Por causa disso, o professor sugeriu que ele liderasse a cena falando em japonês ao invés de inglês, enquanto o professor lideraria os gestos.
Inicialmente, participante respondeu que talvez fosse melhor se ele fizesse os gestos e seguisse as palavras do professor, pois ele era melhor com palavras do que com gestos. Em seguida, no que talvez tenha durado dois segundos, o participante mudou de ideia dizendo “não, não, vamos fazer como você propôs”. E essa cena, para mim, produziu a reflexão mais poderosa da noite.
Eu sei muito bem o que é me agarrar a uma ideia e achar que ela talvez seja a melhor forma de lidar com uma situação, ou que talvez eu não esteja à altura do desafio. Eu sei perfeitamente bem o que é dizer não para uma situação que pode me trazer algum desconforto. Eu sei, também, como pode ser difícil perceber em tempo real quando estou fazendo isso e mudar meu curso de ação.
Foi exatamente isso que vi o participante fazer naquele momento.
Um profissional experiente em uma arte na qual estou apenas começando a engatinhar me mostrou, provavelmente de forma não intencional, um modo humano, vulnerável e aberto de lidar com os desafios do improviso e da vida. O que vi naquele momento foi a personificação dos fundamentos do improviso.
Nós podemos voltar atrás quando dizemos não para algo que podemos ou queremos dizer sim. Às vezes o não vai tomar a frente, e aí cabe a nós assumir a responsabilidade e vulnerabilidade necessárias para mudar de ideia. E como é bonito quando isso acontece!
O meu respeito por pelo professor e pelos participantes da oficina, que já estava estabelecido naquele instante pela forma cuidadosa com que criaram o ambiente da aula, cresceu ainda mais. Ser um profissional não é ser alguém perfeito, e sim alguém aberto para o jogo de forma leve, lúcida e corajosa.
Naquela noite, precisei sair correndo assim que a aula acabou por conta de um compromisso de trabalho, então acabei não tendo a oportunidade de compartilhar com o participante o tanto que aquele momento me tocou.
Esse texto é minha forma de fazer isso.
Noutro dia, estava visitando uma livraria e vi uma escada. Pensei em subir, não vi nenhum movimento e também não conseguia ver aonde as escadas levariam, considerei que talvez não fosse um lugar aberto para clientes, melhor não ir, virei para ir embora.
Parei, respirei.
Desde que fiz a diagramação do livro Poder: um guia do usuário, fiquei pensando em algumas das suas lições. Uma delas é tomar nota de situações em que nos sentimos sem poder, para que depois possamos reconhecer quais padrões e estímulos nos fazem sentir assim e, eventualmente, agir de forma diferente.
Naquele momento, me afastando da escada, percebi que eu o incluiria na minha lista. Entretanto, eu estava lá, naquele momento, consciente do que estava acontecendo. Qualquer que seja o gatilho, eu tinha nas mãos a oportunidade de enfrentá-lo.
Acho que nunca me senti tão orgulhoso de mim mesmo por mudar de ideia e subir um lance de escadas. No fim das contas, era só o segundo andar da livraria, mas para mim foi uma vitória.
Eu acompanho três histórias de “fatia de vida”. Duas são histórias em quadrinho: Questionable Content e Dumbing of Age. A terceira é uma série no YouTube sobre as experiências de um casal poliamoroso. Chama Dana and the Wolf.
O mais recente episódio é sobre Dana finalmente encerrando o relacionamento com seu segundo namorado e é uma baita reflexão sobre relações tóxicas e por que às vezes continuamos afogados dentro delas por mais tempo do que gostaríamos.
Obrigado pela leitura!
Com carinho,
Tales
Eu gosto muito de um grupo de improviso e acho que você também vai gostar, se chama os Barbichas
Parabens pelo tema