🦊Amor e não-monogamia em Porto Alegre
Com participação especial do Manifesto de Anarquia Relacional
Bom dia! Passei a semana de férias em Porto Alegre junto com Ayrton e aproveitei para descansar e pensar um pouco sobre relacionamentos afetivos. Minha carta digital de hoje vai navegar por esses lados. ⛵
Enquanto passeamos pela cidade, mantive ligado o meu aplicativo Grindr, que serve para homens encontrarem outros homens, geralmente para sexo rápido. Meu uso do aplicativo varia, mas como estou acompanhado do Ayrton, meu foco tem sido conhecer novas pessoas para amizade – e se essas amizades envolverão sexo no futuro, isso fica em aberto.
Um dos caras que entrou em contato comigo se disse indignado porque eu não estava disposto a encontrá-lo, apesar do meu perfil dizer que estou aberto a encontros e ficadas. Até pensei em explicar que eu estar aberto não significa que estou aberto o tempo inteiro, mas não achei que valeria a pena tentar desenvolver uma conversa cuidadosa com alguém que, sem nem me conhecer, já estava jogando sobre mim a responsabilidade por suas expectativas frustradas.
Fica difícil construir um relacionamento quando a pessoa já chega com expectativas muito específicas sobre como devo ser ou o que devo fazer. Essa coisa de tem que isso ou tem que aquilo é algo que me desanima profundamente, e não é de hoje – especialmente quando vem de mim mesmo.
Minha primeira tentativa de relacionamento não-monogâmico foi atravessada por expectativas frustradas. O ano era 2010 e eu havia mudado para Goiânia. Por intermédio de um colega do mestrado, acabei dividindo casa com ele e mais duas outras pessoas. Nessas idas e vindas, me envolvi afetivamente com uma delas.
Desde o início, sabíamos os dois que não queríamos um relacionamento monogâmico, então combinamos a liberdade de explorar outras relações enquanto estivéssemos juntos. Entretanto, não conversamos muito além disso sobre o que estávamos fazendo e eu não percebi a quantidade de expectativas e regras que eu estava despejando sobre aquele relacionamento.
Depois de um par de meses em relação, tropeçamos num conflito e descobrimos que tínhamos um entendimento diferente do que era nosso relacionamento. Na minha cabeça, nós tínhamos uma relação aberta e nós éramos o casal principal – qualquer outra relação estaria “abaixo” da nossa. Por exemplo, se eu chegasse em um lugar e ele estivesse com outra pessoa, ele a deixaria de lado e viria para o meu lado.
Vou te dar um segundo para absorver o quanto isso pode ser desrespeitoso com a outra pessoa, cujo relacionamento com o meu então parceiro seria tão legítimo quanto o meu. Hoje me arrepia pensar que, para cuidar da minha necessidade de segurança afetiva, estive disposto a desqualificar um outro relacionamento entre duas pessoas.
Essa minha vontade de centralizar um casal como o primário ou principal veio do meu medo de ficar sozinho. Acreditava que regras poderiam proteger minha conexão e meu afeto, o que obviamente não funcionou. Terminamos o relacionamento pouco tempo depois, em parte porque eu não soube lidar com outros afetos na vida do meu então parceiro em formação e nós não conseguimos nos comunicar efetivamente a respeito disso para encontrar soluções outras além da ruptura.
Queria dizer que depois dessa, eu aprendi, mas acabei voltando à monogamia como estratégia de segurança nas relações – o que, spoiler alert, também não funcionou para cuidar da minha segurança afetiva – e mesmo no relacionamento aberto seguinte, vivido quase uma década depois, ainda repeti algumas das mesmas inseguranças.
Quando falo de monogamia, não estou falando da escolha individual de se relacionar afetivassexualmente com apenas uma pessoa. Monogamia é um sistema político e cultural que prega propriedade e exclusividade e limita a liberdade das pessoas por meio de regras e proibições não apenas relacionais, mas também legais (eu não posso casar com dois seres humanos, por exemplo).
Se tu está feliz com alguém e não quer explorar relacionamentos afetivos e sexuais com outros humanos, está tudo bem porque é uma escolha tua sobre como tu quer viver teus afetos.
Se tu está com alguém e não pode explorar relacionamentos afetivos e sexuais com outros humanos, aí eu tenho um problema com isso.
Por esses dias, estive conversando com um ex-namorado de um ex-namorado. Descobri que temos vários interesses e gostos parecidos e que gostaríamos de ter convivido mais na época em que namoramos a mesma pessoa. Naquele tempo, eu sabia que queria mais contato com ele, estava intrigado e interessado em desenvolver uma relação, mas deixei que meus receios de “talvez não seja o mais adequado” nublarem minhas decisões e escolhas.
Ayrton e eu almoçamos com meu pai, meu irmão e o afilhado do meu pai. Quando vim a Porto Alegre, avisei-o que estaria com meu namorado – que ele ainda não conhecia. Depois do almoço, meu pai encaminhou uma mensagem que enviou para o grupo da família (do qual não faço parte). Ela dizia:
Hoje me encontrei com meus filhos mais o amigo Airton, fomos almoçar.
Quando digo que sair do armário é algo que acontece mil vezes ao longo da vida, é também disso que estou falando. Para minha família por parte de pai, tenho um amigo e não um namorado, ao menos explicitamente.
Ando pensando muito sobre as hierarquias dos relacionamentos afetivos, que é mais uma influência do sistema monogâmico, com a centralização do casal e da família nuclear (heterossexual) como os únicos formatos aceitáveis de relação.
Por enquanto, ando encantado com a proposta da anarquia relacional, cujo manifesto resume bem o que quero buscar na vida. O manifesto tem uma versão traduzida para o inglês aqui, mas resolvi trazer uma tradução em português feita por Newton Jr. do naomonoemfoco.
O amor é abundante e cada relação é única
A Anarquia Relacional problematiza a ideia de que o amor é um recurso limitado que somente é validado a partir de um casal. Temos a capacidade de amar mais de uma pessoa, e uma relação e o amor envolvido nela não diminui o amor por outras. Não hierarquize e compare pessoas e relações – valorize os indivíduos e as conexões. Não é necessário classificar uma pessoa como principal em sua vida para que a relação seja válida. Cada relacionamento é independente e uma relação entre indivíduos autônomos.
Amor e respeito ao invés de direitos
Decidir não basear uma relação a partir de uma ideia de direitos é sobre respeitar a independência e autonomia alheia. Seus sentimentos ou história com uma pessoa não lhe conferem o direito de comandar e controlar sua parceria a realizar aquilo que é considerado normal em uma relação. Explore como se envolver sem passar por cima de limites e crenças pessoais. Ao invés de buscar sempre concessões, deixe que as pessoas amadas escolham caminhos que mantenham sua integridade intacta, sem que isso signifique uma crise para as relações. Se manter distante de direitos e obrigações é a única maneira de ter certeza que se está em uma relação verdadeiramente mútua. O amor não é mais “real” quando pessoas se comprometem umas com as outras por isso ser parte do esperado socialmente.
Encontre seu conjunto de princípios relacionais
Como você deseja que as outras pessoas lhe tratem? Quais são seus limites pessoais e expectativas para as relações? Que tipo de pessoa você gostaria de compartilhar a vida e como você deseja que suas relações se organizem? Encontre seu conjunto de princípios relacionais e os aplique para todas as relações. Não crie regras especiais e exceções como uma forma de marcar que o seu amor por alguém é “de verdade”.
O heterossexismo é feroz lá fora, mas não deixe que o medo lhe domine
Se lembre que existe um sistema dominante normativo muito poderoso que define o que o amor verdadeiro é e como as pessoas devem viver. Muitas pessoas irão questionar você e a validade das suas relações quando você não segue as normas. Trabalhe em conjunto com as pessoas que você ama para encontrar caminhos possíveis e burlar o pior das normas problemáticas. Encontre maneiras de se opor e não permita que o medo guie suas relações.
Se prepare para a beleza do inesperado
Ser livre para ser uma pessoa espontânea – poder se expressar verdadeiramente sem medo de punições ou uma noção de “obrigações” sobrecarregada – é o que dá vida a relacionamentos orientados pela Anarquia Relacional. Se organize a partir do desejo de conhecer e explorar uns aos outros – não em deveres, obrigações e se frustrando quando elas não são realizadas.
“Finja até você conseguir”
Às vezes pode parecer que você precisa ser um super-humano para conseguir lidar com a posição contra-hegemônica envolvida em escolher relações que não se orientam pela norma. Uma ótima dica é a estratégia de “fingir até você conseguir” – quando você estiver se sentindo forte e encorajado, pense em como você gostaria de se ver agir. Transforme isso em direcionamentos e se baseie neles quando as coisas estiverem mais difíceis. Converse e busque suporte com outras pessoas que desafiam as normas e nunca se censure quando a norma lhe pressiona a agir de maneiras que você não gostaria.
Confiar é melhor
Escolher assumir que sua parceria não lhe deseja mal lhe leva a um caminho muito mais positivo do que uma aproximação desconfiada onde você precisa ser de constante validação por outras pessoas para acreditar que elas estão realmente com você nas relações. Às vezes as pessoas têm tantas coisas acontecendo dentro de si mesmas que não há energia para se aproximar e cuidar de outras.Crie relações em que os momentos de afastamento são apoiados e rapidamente perdoados, e dê às pessoas diversas oportunidades para falar, se explicar e de ser responsáveis nas relações. Se lembre de seus princípios relacionais e também cuide de si!
Mudanças através da comunicação
Para a maioria das atividades humanas existe alguma forma de norma para como elas devem acontecer. Se você deseja divergir desse caminho você precisa se comunicar – caso contrário as coisas tendem a se adequar novamente a norma. Comunicação e ações conjuntas são a única maneira de se romper com isso. Relacionamentos radicais precisam ter o diálogo e a comunicação como centrais – não como algo de emergência usado apenas para resolver problemas. Comunicação em um contexto de confiança. Estamos tão acostumades as pessoas não dizerem realmente o que pensam e sentem – que nós temos que ler nas entrelinhas para entender os reais significados. Mas essas interpretações só podem ser construídas a partir de relações anteriores – geralmente baseadas na norma que desejamos escapar. Perguntem uns aos outros sobre as coisas e sejam explícitos!
Construa artesanalmente seus compromissos
A vida não teria muita forma e significado sem nos unirmos coletivamente para conseguir as coisas – construir uma vida juntes, criar as crianças, ter uma casa ou crescer junto apesar dos pesares. Tais esforços geralmente requerem muita confiança e comprometimento entre as pessoas para funcionar. A Anarquia Relacional não é sobre nunca se comprometer com algo – é sobre construir artesanalmente seus próprios compromissos com as pessoas a seu redor e as emancipar das normas que ditam que certos compromissos são necessários para que o amor seja real, ou que alguns compromissos como criar as crianças ou coabitar precisam ser direcionados por sentimentos específicos. Comece do zero e seja explícito sobre quais compromissos você deseja fazer com as outras pessoas.
Algumas coisas para ver por aí
Separei três textinhos que me tocaram em algum momento deste ano:
Inventário de atravessamentos – um texto tocante sobre perceber-se, escrito pela
.Cultural Context – um texto lindo do
sobre escrever a respeito de quem a gente ama.O quanto você vale no Instagram? – um texto-reflexão da
sobre nossa relação ferrada com as redes sociais.
Muito obrigado pela companhia nas reflexões e histórias de hoje.
Eu adoraria conversar mais sobre como tu percebe teus relacionamentos afetivos e o que busca construir e cuidar com eles. Me conta?
Com carinho,
Tales 🦊
Muito obrigado!
Um abraço de mais um anárquico: 🫂
(E eu recomendo vc conhecer a Positiv positivparty.com )