🏳🌈 Como responder quando alguém sai do armário
Algumas notas sobre lidar com os outros
Vi esta semana em uma notícia (em inglês) que o seriado That 90’s Show, que continua a história do predecessor That 70’s Show, tem um personagem gay que viveu uma experiência bonita de “saída do armário”.
A cena se passa se inglês, então vou transcrevê-la brevemente: Ozzie elaborou um plano sobre como sair do armário, incluindo contar que é gay para pessoas desconhecidas. O foco desse vídeo está no sétimo passo, “contar para um adulto que vejo o tempo todo”. Ele escolhe Kitty e, ao contar para ela, recebe um amoroso abraço de aceitação.
Sair do armário é uma expressão que indica o ato de revelar às pessoas que se é gay. Embora seja normalmente pensado como um ato único, “o dia em que saí do armário”, na prática se trata uma experiência que precisa ser atualizada a cada novo encontro com uma nova pessoa, a cada entrada em um novo ambiente. Há algo de desgastante nesse processo, nessa necessidade de reafirmar aspectos de si que fogem à norma e expectativa social, mas não pretendo abordar esse tema na carta digital de hoje. Se isso for algo que te interessa, me responde nos comentários ou por e-mail e posso escrever mais a respeito no futuro. 😊
Embora eu não assista ao seriado, me interessa atentar para o modo como certas histórias são narradas, especialmente aquelas que conectam com minhas experiências pessoais. Como pessoa gay, experimentei durante minha infância e adolescência um contínuo sentimento de deslocamento e anormalidade que, costumo dizer com frequência, poderia ter sido menos doloroso se eu tivesse encontrado suporte espontâneo das pessoas ao meu redor.
Apesar disso, me considero uma pessoa de sorte, pois contei com um belo suporte de amigos e família nesse processo e, por mais que tenha sofrido, as reações adversas foram leves em comparação com o que alguns de meus amigos enfrentaram.
Na carta digital de hoje, contarei três situações que vivi, a fim de refletir sobre esse tema. 🌈
“Então pare de andar com o Tales”
A primeira situação se deu por volta da sétima série do ensino fundamental. Eu era uma criança delicada e alvo de bullying de estudantes mais velhos, além de alguns colegas de classe. Era chamado de bichinha, viadinho, gay e mais um monte de coisas que eu não entendia direito mas sabia que eram ruins.
Nessa época eu tinha um amigo e a gente andava sempre juntos na escola e fora dela. Ao contrário de mim, ele era facilmente lido como masculino, inclusive porque já na sétima série precisava se barbear a cada punhado de dias. Entretanto, como andava comigo, passou a ser alvo também do mesmo bullying homofóbico.
Enquanto eu sofria calado, ele decidiu procurar a assistente pedagógica da escola, relatar a situação e encontrar uma solução. Após apresentar o que estava acontecendo, ela passou a sua recomendação profissional: “se tu não quer que te chamem de bicha, então pare de andar com o Tales”.
O conselho dela funcionou. Assim que parou de andar comigo, meu amigo deixou de ser alvo das provocações homofóbicas de outros estudantes.
O que para ele foi uma solução, para mim obviamente não funcionaria. Afinal, como eu pararia de andar comigo mesmo?
O resultado desse conselho foi que fiquei sozinho, ainda com o bullying, mas sem o suporte de uma amizade que me fazia bem. Às vezes me pergunto a que tipo de violência psicológica eu teria sido sujeitado se, em vez do meu amigo, tivesse sido eu a procurar aquela assistente pedagógica…
Algumas semanas depois de se afastar, meu amigo sentiu falta da amizade e retornou. Foi nesse momento que ele me contou sobre as razões para o afastamento. A homofobia exercida por aquela profissional – uma pessoa adulta em evidente posição de poder – teria passado invisível se ele nunca tivesse voltado.
Escrevi sobre o tema em minha dissertação de mestrado, na qual investiguei questões relacionadas a educação e sexualidade:
A educadora estava correta, então, na sua análise e conseguiu solucionar, para meu amigo (reconhecidamente) heterossexual, o “problema” de estar sendo considerado homossexual. A meu respeito, o que ela fez? Além de me privar de uma amizade que ajudava a estabelecer força emocional para lidar com as pressões da escola e dos colegas mal intencionados, ignorou o que hoje vejo como o real problema: haver estudantes sendo insultados e interpelados sobre a própria sexualidade. A solução proposta de se afastar do alvo principal dos xingamentos ignora que na formação desses indivíduos agressores há a constituição de um modo de pensar que lhes autoriza a pressionar seus colegas vistos como inferiores e desviantes. A ausência de uma intervenção do poder institucional da escola reforça essa ignorância e as consequências desses atos infligidos sobre alguns estudantes.
Essa situação não foi a única, tampouco a primeira ou última, em que fui protagonista de esquecimentos, ignorâncias e afastamentos por parte daqueles que acredito que deveriam orientar (ou proteger) a mim e também aos meus colegas. O que me foi ensinado pelos educadores que conheci na escola era que eles não eram sujeitos aos quais eu poderia recorrer. Havendo a necessidade de buscar auxílio, deveria encontrar outros meios, instituições ou poderes. Essas situações foram vividas por mim em um momento em que ainda não compreendia de que maneira se orientava meu desejo sexual e como poderia valorar essa orientação; ainda assim, os argumentos para estabelecer minha diferença eram relativos a uma identidade sobre mim imposta, como abordei no capítulo anterior.
Justamente pela repetição de esquecimentos, ignorâncias e afastamentos, aprendi – como muitas pessoas gays também aprendem – que minhas questões não eram importantes o suficiente para serem cuidadas e acolhidas, o que instalou em mim um senso de inadequação social que persiste ainda hoje. 💔
“Vou te amar do mesmo jeito”
O segundo relato se passa em 2006, quando eu estava no meio da faculdade.
Na época, finalmente estava colocando o pé para fora do armário, ao menos para mim mesmo e alguns amigos seletos. Tendo percebido que era gay e que essa era uma possibilidade de existência, comecei a buscar outras pessoas com as quais pudesse me relacionar e eventualmente conheci, em uma sala de bate-papo, o rapaz que se tornaria meu primeiro namorado.
Nota: em 2006 smartphones ainda não existiam. Para referência, o primeiro iPhone foi lançado nos Estados Unidos em 2007. Adquiri meu primeiro smartphone em 2012.
Eu estava nas nuvens, experimentando uma felicidade gigantesca e tudo o que queria era passar mais tempo com meu digníssimo. Quando o verão se aproximou, um desafio se desenhou: anualmente, costumava passar os meses de férias de verão na casa da praia, longe de Porto Alegre. Por mais que amasse a praia, naquele verão ela significaria não estar perto do homem que vinha me fazendo feliz. Eu precisava de permissão para ficar em Porto Alegre e, para isso, o jeito seria contar para minha mãe sobre meu namoro.
Outra nota: nessa época eu já havia contado para meu irmão sobre ser gay, algo que ele teve dificuldade para lidar, como relatarei na próxima situação. Por conta disso, ele estava me pressionando para contar para nossos pais o quanto antes, a fim de não precisar mais guardar “esse segredo”.
O fim do ano se aproximava e estávamos na praia. Eu queria contar, mas não sabia como. Dia 31 de dezembro, me enchi de coragem e tentei puxar minha mãe de lado para conversar, mas no melhor estilo homem branco ignorante, não reparei que ela estava ocupada com os afazeres e preparativos para a festa de virada de ano.
Perto da meia-noite, estávamos caminhando rumo à praia para assistir aos fogos de artifício da virada, finalmente tive um momento “a sós” com minha mãe em meio à família toda. Disse a ela que havia passado o dia inteiro tentando falar com ela e que tinha algo para contar.
“Eu sei que tu quer me contar que tem uma gata” – na época, nós ainda usávamos gata e gato como expressões de afeto. Aliás, ainda hoje minha mãe me chama de meu gato ou gato amado, o que acho super fofo e amoroso.
Não sei de onde veio a coragem, mas respondi:
“E se for um gato?”
Talvez ela tenha levado um segundo para responder. Mais que isso, não foi. Minha impressão é que foi instantâneo, zero dúvidas presentes na voz, no olhar, nos gestos.
“Vou te amar do mesmo jeito.”
Era a resposta que eu precisava.
Verdade seja dita, é a resposta que todo ser humano deveria receber quando abre seu coração para outra pessoa. 💕
“E daí, minha irmã era lésbica!”
Nos meses que seguiram à minha saída do armário para nossa mãe, meu irmão estava passando uns dias na casa de praia de nosso pai. Meus pais se separaram quando eu tinha uns oito anos e desde então tive uma família estendida – mãe e padrasto, pai e madrasta.
Ao que parece, as pessoas da família, incluindo meu pai, perguntavam para o meu irmão se já ele já havia me visto com namoradas ou algo parecido. Hoje não sei o quanto disso de fato aconteceu ou era parte da dificuldade que ele teve em guardar “meu segredo”, mas acho curioso o tanto que sexualidade é um tema que suscita curiosidades e afetações. De toda forma, é reflexão para outro dia.
Ocorre que num dado momento, ele se enfezou e chamou nosso pai para caminhar pela praia. Saíram os dois e sem demora meu irmão desabafou:
“É o seguinte, o Tales é gay e tem um namorado, tá bom? Agora parem de me perguntar sobre ele!”
Os dois seguiram caminhando em silêncio.
“Eaí, pai, não vai falar nada?”, ele perguntou.
Não sei exatamente que resposta estava esperando, mas a que recebeu foi:
“E daí, minha irmã era lésbica! Ele é meu filho, não tem o que falar.”
Quando soube dessa história, senti um quentinho no coração. Ao longo dos anos tive uma relação distante com meu pai, mesmo que ele jamais tenha sido violento comigo – um privilégio que não é compartilhado pela maioria dos meus amigos gays. Entretanto, venho colecionando momentos que simbolizam como, à sua maneira, o amor dele por mim está lá, presente, palpável.
Porque amor é isso, né? Acolher e querer bem. 💗
E aí, o que fazer?
Sair do armário ainda hoje é uma experiência difícil para muita gente.
Há tanto ódio e ignorância espalhados pelo mundo e muitas histórias que vejo e escuto sobre pessoas gays e lésbicas e trans ainda são histórias de tristeza, rompimento e violência.
Para lidar com isso e mudar essa realidade, além de oferecer abraços acolhedores, podemos também fazer arte. É o caso da música Afeminada:
Tenho refletido sobre os temas de sexualidade, identidade, representatividade e amor aqui no Olhar de Raposa. Se o texto de hoje te interessou, aqui vai uma pequena seleção de textos anteriores que também podem ser do teu interesse:
Obrigado pela companhia até aqui!
Se quiser responder essa carta com um e-mail ou comentário contando o que sentiu ou pensou enquanto lia meu texto, ficarei feliz em te ler! ❤
Com carinho,
Tales