Dá pra ser leve num mundo pesado?
Resumo para os apressados: acredito que vale a pena tentar
Às vezes penso que é impossível sustentar a prática do Olhar de Raposa e ver o mundo através de uma lente não-violenta, leve e lúcida.
Nessas horas, penso no no livro Atenção, do Alex Castro, no qual ele escreve que seus textos não são reflexos de quem ele é ou consegue ser, mas de como ele gostaria de ser. A escrita em si é uma prática de atenção e cuidado que ele gostaria de sustentar na vida. Minha escrita cumpre um propósito semelhante.
Nos últimos dias, vi notícias sobre um defensor do atual presidente que invadiu uma festa com tema PT e assassinou a tiros o aniversariante e sobre um médico anestesista que estuprou uma mulher durante o parto. Ambas as notícias me fazem questionar a sanidade do mundo em que vivo, e elas são apenas as situações mais recentes amplamente discutidas na internet; há um manancial de outras experiências tão dolorosas e frustrantes espelhadas pelo planeta, a imensa maioria delas invisibilizada, ignorada e, em breve, esquecida.
Quando reflito a respeito, parece-me mesmo impossível sonhar com qualquer futuro.
(Pausa para respirar fundo antes de continuar escrevendo.)
Nesse momento, o que me falta não é lucidez. Eu sei que assassinatos, estupros e opressões sistêmicas são fruto de instituições e estruturas de pensamento que se reproduzem à base da força, do privilégio, da ignorância e do medo. Homens matam e estupram com tanta frequência porque podem (podemos) e porque aprenderam (aprendemos) que não há consequências.
Não dá nada. E se der, dá bem pouquinho.
Quando criança, ouvi meu irmão dizer isso várias vezes. Mal sabia que, anos mais tarde, estaria voltando a essa frase para pensar sobre machismo, patriarcado e dominação.
Todo homem é um estuprador em potencial.
Pois sim.
Eu não confio nem em mim mesmo para garantir a segurança das pessoas ao meu redor caso elas estejam em um estado de vulnerabilidade e eu por alguma razão me acredite no direito de fazer algo com elas. Eu sou homem, o mundo foi desenhado para servir e atender às minhas necessidades e desejos. Eu sou homem e aprendi a aguardar para ser servido.
Eu entraria em uma festa de aniversário para matar alguém de cujas ideias eu discordo? Quero acreditar que não, mas eu sou um ser humano que às vezes se pergunta se, dada a oportunidade, usaria um Death Note – um caderno mágico que ceifa a vida de qualquer pessoa cujo nome seja escrito em suas páginas. Parte de mim quer acreditar que o planeta seria melhor sem alguns certos humanos nele e que eu seria uma boa pessoa para tomar essa decisão.
E se esse é o caso, então qual seria a diferença?
(Respira mais um pouco.)
Aí entra a não-violência ou (auto)compaixão. Eu reconheço esses pensamentos que me surgem e convidam a desejar o sofrimento alheio como forma de punição para as atitudes que são diferentes do que eu gostaria. Reconheço que é difícil ser humano e conviver com tanta notícia de dor, tristeza, violência e sofrimento que poderiam ser facilmente evitados.
Eu quero ser capaz de amar todos os seres vivos. Ainda não sou e reconheço que está tudo bem em não o ser ainda. Amor universal incondicional é o meu horizonte, mas tem horas que o sol se põe e eu o perco de vista. Mais tarde o sol nasce de novo e mais uma vez reencontro um caminho na direção do que estou buscando.
É uma prática diária.
Nos dias bons, até consigo não desejar o mal para genocidas e estupradores. Até consigo desejar que eles tenham vidas melhores, livres dos pensamentos e ilusões tóxicos que os motivam a agir machucando aos outros. Isso, claro, nos dias bons.
O desafio maior para mim é a leveza.
Como ser leve quando sei de tanta coisa que produz dor, tanta coisa que produz dor intencionalmente, tanta coisa que poderia ser melhor se recebesse mais atenção e carinho?
Talvez leveza demande um certo grau de alienação, ou no mínimo uma esperança poderosa e uma crença fundamental na possibilidade da utopia. Nas palavras da Sabrina Fernandes: “Estou cansada de apontar os absurdos. Quero o deleite da utopia de uma sociedade que não nos mate um pouco por dentro toda vez que lemos os jornais.“ Essa sociedade não existe, mas ela tem a potência para existir.
Talvez seja possível encontrar leveza na promessa e na busca pela utopia. Não que seja leve; não é, a luta para construir um mundo melhor não é leve. Entretanto, é na esperança e no deslumbramento com tudo o que há e pode haver de belo e potente na vida que reside um espaço para a leveza.
Nem que ser leve seja um ato de resistência política e afirmação dos afetos que busco criar, sustentar e defender.
Acho até que já trouxe essa música antes, mas se for o caso vale repetir:
Dá pra ser leve todos os dias?
Acho que não. Também não dá, ou pelo menos não consigo, ser lúcido e não-violento. O que dá, ou pelo menos é o que consigo fazer às vezes, é continuar buscando sentido para existir da forma mais leve, lúcida e compassiva que me for possível.
Sugiro dar uma olhada 🧐
Algumas das coisas para as quais andei dedicando atenção.
Cura gay no Brasil
Ao que parece, não estamos livres dessa prática abominável conhecida como “cura gay”, uma violência sem tamanho cujo objetivo é conformar seres humanos a uma visão muito específica sobre o que é certo ou errado em termos de afetos e desejos. Estamos em 2022 e me entristece ver como é tão difícil para seres humanos encontrarem formas de coexistir sem exercer dominação e violência sobre outros viventes.
Ataque a casa de shows drag
Nos Estados Unidos, um grupo chamado Proud Boys tentou invadir um bar onde estavam acontecendo shows de drag. A polícia estava presente e não interviu. Isso não me surpreende, considerando que os “garotos orgulhosos” (tradução direta do inglês) parecem ser todos homens brancos.
Mais informações e vídeo em inglês na LGBTQ Nation.
O efeito Heartstopper
Heartstopper é um seriado da Netflix baseado em uma história em quadrinhos online sobre dois rapazes no ensino médio que se apaixonam. É bobo, é alegre e é tudo o que eu queria ter visto quando criança e achava que o mundo era só violência contra gays. Nesta semana vi um texto sobre uma pessoa que saiu do armário para os pais a partir de uma inspiração do seriado (em inglês).
No seriado há uma cena em que um dos personagens conta para a mãe que é bissexual. A resposta da mãe é brilhante e tudo o que eu gostaria que toda pessoa pudesse ouvir de seus pais ao compartilhar algo tão importante: “Sinto muito se alguma vez eu fiz você sentir que não poderia me contar isso“.
Esse é o tipo de coisa que me devolve a esperança na leveza.
Escrita terapêutica
A Gama Revista lançou uma matéria sobre escrita como uma ferramenta terapêutica, uma forma de trabalharmos nossas questões internas e lidarmos inclusive com traumas. Esse é um uso da escrita que muito me atrai e com o qual muito me identifico, pois acredito que escrever me ajuda tanto a explorar minha criatividade quanto a recuperar minha sanidade.
Estereótipos e grupos
Vi esse vídeo no Twitter e fiquei pensando sobre o quanto as pessoas se transformam de acordo com os ambientes os quais frequentam e as relações que mantêm. Talvez as transformações não sejam sempre tão evidentes quanto à ilustrada por Pâmela (que imagino ser uma personagem), mas acho prudente olhar ao redor, perceber o que está me influenciando e pensar se faz sentido para mim.
Cidades sem carros?
A Wired fez uma matéria (em inglês) bem bacana sobre cidades que estão criando zonas livres de carros. Vivendo em São Paulo e explorando a Paulista Aberta aos domingos, sinto um gostinho do que poderia ser circular por alguns espaços com mais tranquilidade e uma relação diferente com o ambiente.
Inclusive, sempre discuto com uma amiga se a Paulista fica aberta (para pedestres) ou fechada (para carros) nesses domingos. Gosto de pensar que aberta, pois entendo a cidade e as ruas como, em primeiro lugar, espaços para pessoas.
Fogos de artifício
Achei engraçado, por isso resolvi trazer para cá. Um pouco assustador, um tanto perigoso, são trinta segundos de muita coisa ao mesmo tempo. Já que já aconteceu, que pelo menos dê para rir um pouco.
Obrigado pela leitura!
Com carinho,
Tales
Adoro ter o meu dia inspirado pelos seus textos, Tales!!! 🤩
Como manter a insanidade e a esperança neste país insano? Não sei, a cada dia estou mais descrente. E com menos vontade de seguir em frente.