Do que eu falo quando falo sobre escrita compassiva
Ou: o que esperar do novo curso do Ninho de Escritores
O título da carta digital de hoje é uma homenagem ao livro Do que eu falo quando falo de corrida, do Haruki Murakami, no qual ele decorre sobre a relação dele com a escrita e com a prática da corrida.
Bom dia 🙂
Semana passada anunciei o curso de escrita compassiva, mas não trouxe muitos detalhes sobre o que esperar dele. Minha intenção hoje é apresentar o que entendo por escrita compassiva e explicar como funciona um curso meu dentro do Ninho de Escritores.
Mesmo que tu não te inscreva para o curso (os detalhes estão no final da carta), quero que este texto te ajude a refletir sobre como combinar um olhar compassivo com o ato de escrever.
Para fazer isso, apresentarei uma sequência de minitextos, a maior parte deles ampliando os conceitos que já apresentei algumas vezes em meu mantra pessoal: que eu possa ser livre e leve, lúcida e honesta, compassiva, conectada e corajosa.
Caso, ao final da leitura, tu tenha qualquer dúvida (ou inspiração), por favor me escreva um e-mail ou comentário e iniciaremos uma conversa.
Como é um curso do Ninho?
Ao longo dos anos, ofereci cursos diversos no Ninho de Escritores. Alguns deles tinham começo, meio e fim, como o Curso de escrita narrativa com temática queer (8-10 encontros de 2 horas cada), ou o Expresso Rio de Janeiro (1 encontro de 5 horas). Outros, como o Círculo, tiveram começo sem a pretensão de um final. Mesmo hoje, enquanto encontra-se em hiato, o Círculo não está propriamente finalizado.
O curso de escrita compassiva seguirá a mesma lógica do Círculo. Mais do que ensinar um conjunto de técnicas e lições, a proposta é abrir um espaço contínuo de investigação e prática disso que estou chamando de escrita compassiva. Ou seja: esse curso não se encerra em um, dois ou quinze encontros. O curso se encerra para cada pessoa no momento em que decide que não fará mais parte dele – até um eventual retorno, o que é bastante comum no Ninho.
Esse pode parecer um formato desafiador, pois estamos acostumados a seguir um currículo predeterminado para aprender, mas é bastante comum. É assim com esportes, artes marciais, idiomas e artes. Escrita e compaixão são duas capacidades que não se esgotam.
Por isso, o curso de escrita compassiva acontecerá nesse formato de oficina continuada, com data para começar, mas sem previsão de término.
Ser livre
Penso em liberdade como a capacidade de fazer escolhas sem restrições externas. Minha afiliação com a não-monogamia, por exemplo, surge dessa busca por liberdade, já que não me parece aceitável que outra pessoa determine quais são os limites das minhas escolhas – o que não quer dizer não levar em consideração o que os outros querem ou necessitam.
Se quero ser livre, quero também que as outras pessoas o sejam. Na prática, isso se traduz em resistir às minhas tendências controladoras e restritivas.
Lembrar que os seres são livres e autônomos significa reconhecer que ninguém é obrigado a nada, nem por lei nem por acordo prévio. Naturalmente, nem só de liberdade vive o olhar de raposa, até porque seria bem tentador ligar o foda-se em nome da própria autonomia; não à toa há outros princípios se relacionando na construção dessa perspectiva.
Ser leve
Gosto de jogos de improviso porque são um convite a tratar as ocorrências da vida com leveza. Nesses jogos, algumas atitudes pavimentam o caminho para alcançar essa sensação de leveza: aceitar que o outro é diferente (e portanto fará escolhas e interpretações distintas das nossas), deixar o “não” de fora (para brincar junto, precisamos dizer sim para o que acontece, em vez de negar ou recusar a realidade que se apresenta) e entender que errar faz parte (nós vamos errar, os outros vão errar, a gente diz sim para essas coisas e continua brincando).
Assim como acontece com a liberdade, se levada de forma radical, a leveza também pode nos levar a uma desconexão com outras pessoas, considerando que nada é sério e que nada realmente importa. Mais uma vez, os outros princípios entram em cena para contribuir na busca de um equilíbrio. 😊
Ser lúcida
Foi no livro A revolução do altruísmo, de Matthieu Ricard, que li pela primeira vez sobre como altruísmo sem lucidez pode ser uma forma de autoengano. Inclusive, escrevi sobre como empatia sem atenção às necessidades do outro pode nem ser empatia de fato.
Lucidez significa olhar para a realidade por trás das inúmeras ilusões que cultivo. Significa refletir, de forma crítica, sobre o que acontece e sobre o que penso e sinto, e reconhecer o que constitui meu pensamento da maneira como ele é.
Ser honesta
A confiança é o que sustenta as relações humanas, e para mim a melhor maneira de cuidar da confiança é por meio da honestidade e transparência. Aprendi ao longo da vida que mentir e omitir são estratégias aceitáveis em muitas situações; por exemplo para evitar conflitos ou influenciar decisões de outras pessoas.
Se não sou honesta, como posso ser livre, leve e lúcida? Quando tento ocultar a verdade, resulta que não poderei estar por inteiro onde estou. Isso vale para os múltiplos armários em que somos colocadas ao longo da vida, bem como para aqueles pedaços de nós mesmas que não mostramos ao mundo porque “não é profissional agir dessa forma”.
Reconheço que há inúmeras situações em que não ser honesta se mostra uma estratégia valiosa na vida. Entretanto, o papel aceita a tudo e a todas, portanto é na escrita que costumo reencontrar meu eu mais sincero.
Ser compassiva
Compaixão, da forma como a compreendo, é perceber o sofrimento alheio, cultivar uma resposta emocional benevolente em relação a ele e o desejo ou motivação para agir e diminuir a dor alheia e ampliar sua qualidade de vida (mais sobre isso neste texto em inglês). É, portanto, cuidar para que as necessidades das pessoas que me importam sejam atendidas e preservadas. Mencionei acima o livro de Matthieu Ricard, em que ele faz o convite para que essa forma de bondade amorosa se torne universal, ou seja, destinada a todas as vidas.
Como filosofia pessoal, busco desejar o bem para todas as pessoas, inclusive aquelas que contribuíram para o meu sofrimento. Não quero que atitudes que causaram dano sejam punidas, mas sim que as pessoas se responsabilizem pelos impactos de suas atitudes, de modo que possamos criar mundos melhores para todas.
Uma escrita compassiva, livre, leve, lúcida e honesta é uma escrita que sonha com perspectivas de vida melhores do que as que temos hoje, que olha para o horizonte sem tirar os pés do chão.
Ser conectada
Quando se fala em não-violência, compaixão, lucidez, essas coisas todas, é muito fácil pensar que podemos alcançá-las sozinhas. Contudo, nada em nossas existências é vivido senão em uma complexa teia de relações com outros seres vivos. Mesmo um astronauta sozinho no espaço chegou lá como resultado de incontáveis vidas que contribuíram para aquele momento.
Em grande medida por conta da prevalência da ideologia capitalista, vivemos agarradas à ideia de que é possível existir individualmente. Nada poderia estar mais equivocado. Buscar conexão, portanto, é reconhecer e se esforçar na direção de uma perspectiva de cuidado comunitário, de estar com e para outras pessoas, de levar para o mundo todos esses princípios anteriores.
Ser corajosa
A mais recente adição aos princípios de meu mantra pessoal, ser corajosa diz respeito a reconhecer os receios e as dificuldades de ser livre, leve, lúcida, honesta, compassiva e conectada em um mundo que não foi desenhado para estimular esses valores e, ainda assim, buscá-los.
Acredito que todas nós podemos ser corajosas, especialmente quando estamos inseridas em comunidades e relacionamentos que nos ofereçam apoio e proteção.
Como colocar tudo isso na escrita?
Todos esses princípios são, de alguma maneira, adaptações de filosofias muito antigas, como o zen budismo. Enquanto não me reconheço como pessoa religiosa, encontro na comunicação não-violenta (CNV, sistematizada por Marshal Rosenberg), nos escritos de Kristen Neff sobre autocompaixão e nos estudos de ciência contemplativa e ética baseada em compaixão uma série de estruturas que consigo aplicar na escrita.
O curso de escrita compassiva será um processo de escrita e reescrita baseado nessas estruturas. A partir da CNV, por exemplo, podemos olhar para nossos textos reconhecendo necessidades por trás de julgamentos e sentimentos. A referência da autocompaixão nos convida a lembrar da vida concreta no momento presente. A ética baseada em compaixão nos lembra de ir além de nós mesmas, reconhecendo as comunidades nas quais estamos inseridas e as teias das relações infindáveis.
Na prática, teremos exercícios de escrita não-ficcional – embora seja importante entendermos que toda narrativa é, em si, uma ficção – e aprenderemos lentes que podem ser usadas para escrevermos de forma cada vez mais livre, leve, lúcida, honesta, compassiva, conectada e corajosa. O curso não pretende resolver nada, mas sim apontar caminhos possíveis.
Cabe dizer que, por conta desses princípios já listados, trata-se de um curso anticapitalista, feminista, que apoia e fomenta a diversidade e, por se propor a buscar mais lucidez, pode ser provocativo e dolorido. Dentro do curso, falaremos e escreveremos sobre temas que são usualmente considerados polêmicos, como emoções, sexo, política e dinheiro.
Meu lugar como facilitador do curso não será, de forma alguma, o de alguém iluminado que está levando a verdade para as pobres incultas. Pelo contrário, é por ter muito a aprender e praticar e por querer companhia no trajeto que me vejo na posição de liderar esse curso.
Detalhes do curso
O curso começa dia 13 de abril, às 20h (horário de Brasília), e acontecerá semanalmente às quintas-feiras, cada encontro durando 2 horas, por meio da plataforma Zoom.
As participantes serão convidadas a contribuir financeiramente, porém dinheiro não será uma barreira para ninguém que queira participar. Escreverei mais sobre isso em uma carta futura, pois é uma questão complexa e que demanda mais espaço para ser elaborada.
Se tu tiver interesse em participar, por favor te inscreva por meio deste formulário. E se conhecer alguém que poderia se interessar, por favor compartilhe esta carta digital.
Para olhar por aí
Coletei algumas referências para compartilhar contigo:
Por que não precisamos de mais autoestima.
Um relato íntimo sobre um processo de mudança de país.
Como seria bom se fôssemos livres para sermos quem somos…
Se quiser conversar, estou aqui 😊
Escrevo porque busco conexão. Portanto, se algo aqui te chamou a atenção, deixa um comentário ou me responde por e-mail. Obrigado!
Com carinho,
Tales