No clube do livro do Ninho de Escritores de outubro (a edição de novembro acontecerá dia 27 de novembro, informações aqui), lemos Boy Erased, de Garrard Conley. A história conta sobre a experiência do autor em um programa de cura gay, essa coisa violenta e assustadora sob a qual ainda hoje igrejas submetem crianças e jovens na esperança de que elas conformem uma identidade de gênero e uma orientação sexual considerada “apropriada” – ou seja, cisgênero e heterossexual. Um dos temas que discutimos foi sobre nascer ou tornar-se gay/lésbica/trans, uma discussão que é tão ampla quanto antiga.
Nesta carta eletrônica, defendo que ninguém nasce gay (ou qualquer outra coisa): todas as nossas identidades são construídas, atribuídas e reforçadas socialmente. Perceba que não estou falando sobre desejo e afeto – não sei nem me importo em saber de onde esses surgem. O que me interessa é olhar para os diferentes nomes que damos para as pessoas a depender dos lugares que elas ocupam em sociedade.
Em 2010, ingressei no mestrado em Cultura Visual para estudar imagens e homossexualidade. Lá eu descobri a teoria queer, uma proposta de leitura de mundo que modificou o jeito como me relaciono com existir. De forma resumida, a teoria queer busca “normalizar o estranho e estranhar o normal”.
Embora tenha começado a partir de esforços de pessoas lésbicas e gays, teoria queer não serve para pensar apenas as vivências de pessoas que ocupam as margens do que é considerado aceitável. É possível – e muito interessante – inquirir sobre aquilo que normalizamos socialmente, como as ideias de masculinidade, heterossexualidade e branquitude. Quais são as relações de poder atuais e históricas que tornam certos modos de viver “normais” enquanto outros são ditos errados, vis, pecaminosos?
De modo geral, a teoria queer me abriu os olhos para perceber como dividimos a existência em binários: bom e ruim, certo e errado, homem e mulher, masculino e feminino, branco e negro, cis e trans etc. O que cai no lado negativo do binário é ignorado ou atacado, relegado à margem das relações de poder. Homofobia, por exemplo, me parece um claro exemplo do medo de que homens gays abram mão de seu “lugar de poder” por “se equipararem a mulheres” nas relações, ou de que mulheres lésbicas estejam buscando mais poder do que “deveriam ter”, pois deveriam ser apenas criaturas cativas às vontades dos machos. Em outras palavras, não acho que homofobia existiria se não vivêssemos sob a lógica da misoginia/machismo, que institui essa diferença de valor entre homens e mulheres.
Quando descobri a teoria queer, eu já tinha bastante interesse no zen budismo, que nos ensina sobre a diferença entre a realidade como ela é e os nomes que colocamos sobre ela. O problema de nomear o mundo é que nossa mente passa a lidar com os nomes, em vez de com o que está ali na realidade. Isso é muito útil para muitas coisas, mas traz os seus problemas.
Escrevi em um texto de 2014: “A linguagem e a vida em sociedade são duas coisas muito curiosas. Ninguém nasce sabendo o que é tristeza, felicidade, ciúme, amor. São só palavras às quais associamos significados a partir de exemplos. Daí um dia a gente sente uma coisa que nos deixa paralisados, frios, ensimesmados. Já vimos antes alguém sentir algo assim e reconhecemos como sendo tristeza. Ou sentimos falta de alguém que está longe e aprendemos a chamar de saudade.”
Acredito que a mesma coisa seja verdade com relação a gays, lésbicas, mulheres, homens, trans e outros conceitos identitários. Essas coisas não existem por si só na realidade, mas ainda assim orientam como construímos muito de nossas culturas e sociedade. Daí aprendemos que masculinidade é sobre ter pênis, ser viril e corajoso, ser racional e não chorar, prover sustento, caçar, ser forte etc, e logo estamos olhando torto para pessoas que consideramos em outra categoria (mulheres, femininas) tendo esses comportamentos.
Um nome, que poderia facilitar o reconhecimento de certos traços comuns, deixa de descrever a realidade como é e passa a prescrever como a realidade deve ser. É nesse ponto em que pessoas dispostas a usar de violência para coagir a ação das outras encontram em nomes inventados a justificativa para derramar sangue. “Ah, mas é tradição”, alguém pode dizer. Li recentemente que fazer algo em nome da tradição é um jeito de dizer que não quero pensar sobre algo porque alguém já pensou sobre isso no passado.
Sobre esse tema, tenho ainda um caminhão de coisas a discutir, mas vou fazê-lo aos poucos. Termino esse texto curioso para saber como essas ideias chegam até ti, se fazem sentido, se tu pensa diferente. Me conta?
Um anúncio: Let life happen, de John Lewis Home Insurance
(Tradução: “Deixe a vida acontecer”, de uma empresa de seguro domiciliar)
Ao que parece, esse anúncio causou controvérsia em alguns cantos da internet muito preocupados com “ideologia de gênero” e a preservação da “educação tradicional” das crianças. Mais sobre a repercussão no site LGBTQNation (em inglês).
Uma música: Un moro judio, de Jorge Drexler
Já falei que adoro esse cara? Algumas coisas que ele canta nessa canção: “não há pedra qualquer no mundo que valha uma vida”, “a guerra é uma escolha muito ruim, não importa o disfarce que veste”, “um nome não é mais que um nome, e se há deus, assim o quis”, “não há nenhum povo que nunca se considerou o povo eleito”.
Um livro: Problemas de gênero, de Judith Butler
Este livro é considerado uma das bases do nascimento da teoria queer. É difícil pra caramba, a ponto de colegas terem rido de mim porque foi o primeiro que tentei ler na época do mestrado. Não dei conta, precisei de livros que o interpretam para compreender as teorias. Ainda assim, recomendo. Recentemente ouvi que a própria Butler reconheceu que, se soubesse a popularidade que sua obra teria alcançado, escreveria de forma mais acessível. Estou para ver os próximos livros dela, em que tem refletido sobre não-violência.
Uma obra: Travesti de lambada e deusa das águas, de Bia Leite, 2013
Em 2017 uma exposição chamada Queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira foi cancelada após protestos de que seria polêmica demais. Vale a pena conferir os relatos nos jornais da época (como no El País) para perceber um exemplo recente dos medos e furores que surgem quando o tema em discussão envolve gênero e sexualidade.
Uma foto de infância
Em visita à minha cidade natal, encontrei várias fotos minhas de infância, inclusive algumas que apontavam para performances de gênero ditas afeminadas. Em bom português: achei foto minha como criança viada.
Obrigado pela leitura!