São oito horas da noite e sento para escrever esta carta digital. Meu corpo está cansado e minha cabeça, dolorida. O celular acende com uma notificação e não resisto, cato ele na mão, desbloqueio a tela e começo a ler os e-mails de trabalho que chegaram. Só depois que respondo a um deles, percebo que estou respondendo a um email de trabalho horas depois de haver encerrado meu expediente.
Como acontece com minha mente nessas horas, ensaio uma conversa comigo mesmo: “trabalho de gerente é assim mesmo”. A fala fica sem resposta, estou sem forças para retrucar.
O trabalho não tem sido muito tranquilo nas últimas semanas, mas havia estabilizado a maior parte dos conflitos correntes. Segunda e terça transcorreram tranquilas. Trabalhei bastante, porém encontrei tempo para fazer duas aulas de pole dance e comer direitinho. Minha maior preocupação era o calor infernal que tem feito em São Paulo.
Até que chegou a quarta-feira.
Começou com um colega do Reino Unido falando sobre uma reunião com os gerentes de lá. Alguns deles seriam demitidos, mas não informaram quem. Achei super desrespeitoso e comecei a conversar com pessoas ao meu redor sobre o assunto, sobre a falta de perspectiva que vem desse “alguns vão embora mas não sabemos quem”.
Trabalho assalariado, assim como monogamia, é só ilusão de segurança, mas ainda assim traz alguma paz pra mente. No meu caso, que não empregado sou, a paz é menos concreta, mas se estabelece pela constância. Já vão quatro anos e meio que trabalho para a mesma empresa sem a promessa de que vamos continuar juntos, mas continuando porque a relação tem feito sentido para ambos os lados. Igualzinho a todos os relacionamentos maduros, não há promessa de eternidade.
Segui trabalhando na quarta-feira, tinha uma lista grande de afazeres, quando vi uma notificação aparecer nos emails. Um dos meus chefes saiu de todos os grupos de trabalho. Chequei o Slack, ele não estava mais lá. O email, desativado. Nem vinte minutos antes, eu havia respondido a uma pergunta dele sobre as operações do nosso projeto. Ele foi demitido.
Essa história se repetiu mais algumas vezes com outras colegas. Estavam lá trabalhando, respondendo a perguntas, entregando suas tarefas, até que de repente não estavam mais lá. As pessoas nas minhas equipes que perceberam o que estava acontecendo vieram falar comigo.
O que é isso?
Eu não sei. Ou melhor, eu sei, essas pessoas foram demitidas. É isso que está acontecendo. Eu não sabia, não fui informado.
Será que sou a próxima?
Marcaram uma reunião comigo pra daqui quinze minutos, acho que sou a próxima.
Se não nos vermos mais, foi bom trabalhar contigo.
Se não nos vermos mais, obrigado por tudo.
(…)
Quando fiz o curso de newsletters com a
, ela falou sobre como somos reféns das empresas de tecnologia. A qualquer hora uma conta pode ser desativada e perder todos os seguidores. O perfil polyphiliablog (que escreve sobre poliamor e sexualidade positiva) foi bloqueado por supostamente desrespeitar as regras de comunidade do Instagram.Os 150 mil seguidores perdidos num instante simplesmente porque a plataforma tem esse poder. Por sorte (e alguma movimentação de pessoas com acesso suficiente para reverter esse tipo de decisão em uma empresa do porte do Instagram), a conta voltou ao ar e os seguidores estão de volta lá, eu inclusive.
Mas imagina perder o contato com esse tanto de gente assim, do nada.
(…)
Além de Slack e email, eu não tinha muito contato com as pessoas do trabalho, mesmo que conversasse com elas diariamente. Tudo o que sei sobre quem foi demitido está relegado a um espaço muito esquisito de uma memória agora distante e que, porque não ganhará mais repetições, está fadada ao desbotamento.
Comecei a procurar outros jeitos de me conectar com as pessoas. A maioria deles vai sempre depender dos caprichos de bilionários e empresas, mas encontro alguma segurança na pluralidade.
Tão frágil quanto uma carteira assinada, mas com aquele conhecido sabor de paz e estabilidade.
Semana passada escrevi sobre Odaiba, a praia artificial no sul de Tóquio, e comentei que não entrei na água por causa do frio. Eu havia esquecido que banho na praia de Odaiba é proibido. Que coisa!
Coisinhas pra olhar por aí
Li alguns textos bem bacanas que gostaria de compartilhar.
A
escreveu um texto fantástico sobre como é difícil para mulheres vivenciarem a própria sexualidade com tranquilidade, enquanto homens tripudiam e aproveitam e reduzem relacionamentos à disposição para o sexo: Sobre você.A
escreve (em inglês) sobre suas vivências com o Zen, e na newsletter mais recente compartilhou lições de vida aprendidas com uma boxeadora: Three Life-Changing Things I Learned Training With a World Champion Boxer.O
está escrevendo uma “newsletter popup” para contar suas aventuras no Japão ao longo de 39 dias, enviando um e-mail diário com histórias e reflexões sobre o que tem experimentado no Japão. Tem sido minha leitura favorita nesses dias, tanto pelo estilo de escrita narrativa – que venho tentando experimentar aqui no Olhar de Raposa – quanto pelo reconhecimento que sinto em vários dos relatos. Para começar, sugiro esse texto: Day 1 - No sleep til the truck idol sings.Já falei algumas vezes sobre começar uma newsletter em inglês. Coloquei nos planos oficiais para 2024 iniciar essa jornada. Tenho medo. Estarei iniciando tantos movimentos, morando de novo em Tóquio, considerando novos velhos trabalhos (oi, facilitação de grupos e gestão de comunidades), tentando estabelecer uma nova rede local de amigos etc.
Daí pensei que talvez poderia fazer uma newsletter popup também, para relembrar os tempos em que eu escrevia e publicava diariamente no Medium. Gostei da ideia, mas sei que ela demanda energia e comprometimento, então continuarei namorando a ideia enquanto penso na logística.
Olhando para o passado
Gostei de olhar para o passado na carta digital da semana anterior, então decidi fazer o mesmo outra vez.
Em novembro de 2022, no Japão, eu já estava há alguns meses sem cortar o cabelo. Acho curioso pensar que precisaria voltar ao Brasil para começar a aprender alguns cuidados mais elementares sobre minha própria aparência. Imagem pessoal e autoestima é uma jornada, né?
Ainda em 2022, visitei o Tokyo Metropolitan Government Building, que fica em Shinjuku, uma das várias regiões de Tóquio. O prédio dispõe de um mirante lá no alto que, mesmo que não seja a céu aberto, num dia de céu aberto apresenta uma visão incrível da grandiosidade da maior cidade do planeta.
E ainda por cima, o prédio é lindoso demais!
Em 2021, marquei de ir com Ayrton encontrar duas pessoas queridas: o Ítalo, que conheci quando ambos fomos selecionados em um concurso que resultou na nossa primeira publicação como escritores, e a Vivian, que me acompanha na vida desde os tempos da faculdade.
Ítalo e Vivian não se conheciam ainda, mas chegaram antes. Eles se olharam e começaram a conversar. Quando Ayrton e eu finalmente chegamos, lá estavam os dois animadamente papeando. Achei tão confuso quanto mágico. 💖
Em 2017, realizei em São Paulo a minha primeira Oficina de Carinho, em parceria com três amigas queridas que toparam um convite espontâneo. Vejo essa foto e me encho de gratidão e felicidade porque, de novo e outra vez, encontro pessoas que topam me apoiar e acompanhar nas experiências malucas que proponho.
E é assim que termino todas as minhas cartas digitais:
Com carinho,
Tales
É tão isso. Buscamos a segurança o tempo todo, esquecendo que não existe nada de seguro em se atirar na vida. Amei! <3