Isso é gay?
Faço parte de um grupo de amigos que frequenta a mesma escola aqui no Japão. Cada um com sua história, motivos e interesses, acabamos nos reunindo e temos desbravado juntos o que significa ser uma pessoa estrangeira e estudante em Tóquio.
Em comum, temos o fato de que pudemos bancar uma mudança para o Japão e pagar as mensalidades da escola, além da língua inglesa como idioma intermediador das nossas relações. Nossas diferenças se espalham entre alguns marcadores: temos no grupo um estadounidense, dois canadenses (embora um tenha nascido em Hong Kong), um mexicano, um indonésio e eu, brasileiro. Eu sou o mais velho do grupo, com quase quinze anos de diferença da pessoa mais nova. Dos cinco homens, um é negro, dois são asiáticos, um é mexicano (normalmente lido pelos demais como latino?) e eu, que sou usualmente lido como branco. Eu sou o único não-hétero e é sobre isso que quero conversar hoje.
Meus colegas não me identificaram de imediato como gay.
Acho isso irônico, pois é examente o contrário do que acontecia na época de escola, quando eu era chamado de bixinha e viado por conta da minha expressão de gênero. Naquela época, eu sequer entendia direito o que esses termos significavam, sabia apenas que não queria ser identificado com eles porque eram evidentes marcadores de alguém que não merecia respeito, cuidado ou carinho.
Por outro lado, hoje faço questão que as pessoas saibam que sou um homem gay em todos os espaços por onde circulo. Não porque eu pense que sexualidade é algo que precisa ou deve ser discutido publicamente (e eu penso isso), mas porque a ausência de referenciais faz com que seja mais difícil reconhecer a pluralidade das nossas possibilidades. Quando criança e adolescente, teria sido muito importante para mim ter contato com mais exemplos do que ser gay poderia significar.
Quando percebi que meus colegas não sabiam que eu era gay, fiz questão de contar a eles. Desde então, tenho sido um ponto de referência para conversas sobre gênero e sexualidade, momentos em que tento convidá-los a considerar o variedade infindável da diversidade humana.
Dentro desse meu novo grupo de amigos, o moço da Indonésia talvez seja quem teve menos exposição a pessoas diferentes. Criado por uma família conservadora cristã, quando o conheci ele acumulava uma lista considerável de experiências que não considerava viver porque “eram erradas”. Aos poucos, em contato com nosso grupo, ele vem ampliando seus limites e se permitindo testar até onde dá pé para ele.
(Acabei de pensar cá comigo, tu sabe o que é dar pé? Para mim é uma expressão tão natural, mas não estou certo de que todo mundo tenha sido exposto a ela. Basicamente, é algo que meus pais me diziam para cuidar quando entrasse no mar e ir somente aonde dá pé, ou seja, onde dá para ficar com o pé no chão, em contraste com ficar boiando/nadando mais para o fundo do mar. Uso muito essa expressão como uma indicação daquilo com o que conseguimos ou não lidar.)
Certo dia, esse amigo indonésio perguntou para nosso amigo estadounidense se alguma atitude específica era gay. Era algo cotidiano, não lembro agora se usar rosa, vestir uma calça apertada ou um homem abraçar outro homem.
Outro dia, esse amigo indonésio dormiu na casa do estadounidense dividindo um colchão com o mexicano. No dia seguinte, aproveitei um momento em que estávamos sozinhos (o indonésio e eu) e fiz piada dizendo que tinha ouvido falar que ele havia dormido com o mexicano. Muito rapidamente ele me corrigiu: “dormimos lado a lado, não um em cima do outro”.
(Nota: em inglês, sleep together também pode significar fazer sexo.)
Fiz essa piada porque sabia que ele ficaria incomodado com a ideia de ser percebido como gay. Meu sonho é que ele e todas as pessoas do mundo cheguem ao ponto de se sentirem tão confortáveis com a própria sexualidade e sejam tão acolhedoras com relação a outras pessoas que ser gay não seja mais equiparado com algo negativo. No caso desse amigo, ainda há um caminho longo pela frente, mas confio que em breve ele será capaz de perceber o próprio preconceito.
A partir daí, caberá a ele decidir se deseja ressignificá-lo.
Acredito que o contato e a proximidade são formas poderosas de estimular o respeito à diversidade humana. Lembro sempre de um amigo meu que tinha uma visão de mundo bastante homofóbica. Na época, eu ainda não me entendia como gay. Quando isso mudou, conversei com ele a respeito. Recordo de algo que ele me disse: “sempre achei que era errado ser gay, mas aí descobri que meu amigo é gay e que tudo continuou igual, é apenas mais uma camada”. Porque eu estava por perto, ele teve a oportunidade de reavaliar seu próprio preconceito.
Quando fui professor em uma faculdade evangélica em Goiânia, fiz questão não apenas de contar para meus alunos sobre ser gay, mas também passar um filme em sala de aula: Orações para Bobby.
O filme conta a história de duas pessoas: Bobby, filho gay de uma família com forte influência cristã, e sua mãe, interpretada por Sigourney Weaver, uma mulher cuja fé na sua religião a coloca em oposição a seu filho. Quando ele comete suicídio, incapaz de lidar com pressão de não ser quem ele aprendeu que deveria ser, sua mãe se encontra em um dilema moral: ela acredita que seu filho é bom e puro, porém sua fé lhe dizia que, por ter cometido suicídio e ter vivido práticas homossexuais, ele iria para o inferno; como ela poderia ter fé em um deus bondoso se seu filho acabaria no inferno? O filme mostra como ela vivencia esse conflito espiritual e não canso de recomendá-lo para todas as pessoas.
Inclusive, acabei de reassisti-lo e chorei igual criança. 😊
Quando comecei a escrever a carta digital de hoje, pretendia falar sobre natal e sobre a importância de reunir pessoas queridas. Esse é um tema que me importa e que, inclusive, dialoga com o que compartilhei hoje. Entretanto, uma coleção de notícias mexeu comigo e decidi mudar o tema.
Li que a FIA está proibindo manifestações políticas, num movimento parecido com o que a FIFA já faz – lembrando que a Copa do Mundo aconteceu num país em que homossexualidade é crime. Enquanto isso, no Afeganistão, mulheres estão outra vez sendo proibidas de frequentarem universidades. E ao redor do mundo, ainda há grupos defendendo terapias de reorientação sexual, uma forma brutal de violência psicológica contra pessoas LGBTQ+.
Há um tanto grande que ainda precisamos melhorar nesse mundo para podermos viver de forma mais leve, lúcida e amorosa.
Obrigado pela leitura. Caso queira conversar comigo, basta comentar, responder por e-mail ou falar comigo pelo Instagram 💕
Com carinho,
Tales