Lucidez sobre a própria incoerência
Neste domingo haverá o segundo turno da eleição para presidente no Brasil. Por estar no Japão neste momento e ter vindo para cá depois do prazo de me inscrever para voto fora do país, não contribuirei com o pleito. Nessas eleições acirradas, me dói saber que não poderei digitar meu 13 na urna.
Uma sequência de pensamentos surgiu na minha cabeça agora e, como achei-os curiosos, vou compartilhar: talvez eu perca assinantes por declarar meu voto no Lula, mas seria surpreendente se alguém que conhece minhas posições de vida imaginasse que eu votaria no Bolsonaro, nesse caso provavelmente não estaria compreendendo o que escrevo, e inclusive aconteceu algo parecido em 2018, quando escrevi na newsletter do Ninho de Escritores sobre como apoiar a candidatura do nosso atual presidente seria incoerente com os valores que o projeto defende.
Coerência. Coabitei com um amigo por anos em São Paulo e, entre nossas conversas, uma das questões que ele apontava com frequência era que não faria sentido esperar coerência de seres humanos, pois somos seres complexos movidos por interesses e desejos tão múltiplos quanto às vezes incoerentes. Nas primeiras vezes em que falamos sobre isso, fez sentido para mim pensar que de fato a incoerência era uma marca aceitável da humanidade, porém hoje gostaria de revisitar esse pensamento.
Penso sim que, como seres complexos, podemos nos interessar por coisas distintas e inclusive nos movimentar na direção de coisas opostas entre si. Um exemplo meu muito simples: gosto de filmes de super-heróis, que geralmente são produções capitalistas reforçando o uso de soluções violentas para os problemas apresentados, ao mesmo tempo em que defendo a importância da não-violência e do anticapitalismo como modos de existir e construir vivências melhores.
Por outro lado, também penso que me movimentar na direção de mais coerência me parece a coisa certa a se fazer. Outro exemplo: parei de intencionalmente ouvir músicas que reforçam comportamentos românticos monogâmicos como a única possibilidade de relacionamento afetivossexual entre humanos, pois o mundo no qual quero viver é um mundo plural e não-monogâmico.
Uma nota sobre a coisa certa a se fazer: a partir da proposta da comunicação não-violenta, gosto de separar julgamentos entre moralizadores e baseados em valores. A diferença básica é a prescrição de comportamentos para outras pessoas. Julgamentos moralizadores encaixotam ideias e ações em lugares de bom ou ruim ou certo e errado e adotam essa matriz para avaliar as demais pessoas. Julgamentos baseados em valores se baseiam no que nos importa e não se pretendem como modelos a serem seguidos por todas as pessoas.
Atualmente, tenho bastante dificuldade em pensar sobre coerência e respeito aos julgamentos alheios quando se trata das eleições e do fenômeno associado à emergência e fortalecimento do bolsonarismo.
Eu me entendo como um educador, uma pessoa empenhada no fomento de pensamento crítico, autônomo, científico. Quando vejo argumentos baseados em mentiras, me é muito difícil aceitá-los como posicionamentos válidos. Em parte, penso que aquela é a percepção de realidade da pessoa e que, nesse sentido, o que me cabe é compreender e apresentar alternativas. Por outro lado, me dói quando percebo inconsistências e incoerências na maneira de pensar.
O meu conflito nessa questão é o seguinte: quero respeitar as pessoas, mas me incomoda quando não percebo um cuidado intelectual com o que está sendo pensado, discutido e avaliado. Se alguém acredita em notícias falsas e não está disposto a avaliar que elas possam ser falsas, isso me incomoda. Ou se alguém acredita que corrupção é um problema que deve ser combatido, mas fecha os olhos para os inúmeros indícios e fatos ao redor do seu herói e a alta probabilidade de ele estar não apenas envolvido, mas chefiando diversos esquemas e ativamente usando seu poder para impedir investigações. Considero isso incoerente, inconsistente e intelectualmente desonesto.
Minha régua pessoal frente a esse cenário tem sido a seguinte: pergunto para mim mesmo se estou percebendo disposição em reconhecer o erro, tanto da minha parte quanto da outra pessoa. Como já disse em cartas digitais anteriores, o diálogo me importa muito, porém ele só é possível quando a possibilidade de reconhecer que estamos errados é real.
O quadrinho a seguir (completo no Instagram) é uma ilustração sobre o que pode acontecer se não temos ou não encontramos essa disposição:
Se percebo que há disposição para um diálogo honesto e aberto, uma pergunta me ajuda a reconhecer os limites da conversa:
o que seria necessário para reavaliar a minha posição?
No caso do meu entendimento sobre Bolsonaro como um político que não julgo capaz de cuidar adequadamente do país ou de oferecer um exemplo apropriado de comportamento humano, creio que precisaria ver uma mudança de atitude consistente para reconsiderá-lo.
Algumas outras perguntas me ajudam a organizar meu pensamento:
Como aprendi o que sei?
Quais são os valores que estão informando meu olhar?
Nada escapa do viés dos nossos valores, nem mesmo nossa experiência pessoal, já que essa é narrada e reconfigurada a partir dos nossos valores e interpretações. Com isso em mente, reconhecer de onde estou recebendo influências me ajuda a pensar com mais clareza. Isso inclui escolher quais são as minhas referências e por que escolho acreditar nelas em vez de outras.
Por exemplo: entre um jornalista e um pastor, salvo se eu tiver motivos para duvidar do trabalho realizado, optarei por acreditar no jornalista. A razão para isso é simples: jornalistas devem basear seu trabalho na apuração de verdades, o que não é o caso de pastores e outras figuras religiosas.
Se eu quiser aprofundar essa reflexão, posso me perguntar o seguinte:
quais são os interesses de quem está compartilhando essa informação ou esse ponto de vista?
Tenho optado por acompanhar o trabalho de jornalistas cujos veículos de mídia não são sustentados por publicidade. Minha razão para isso é simples: por vivermos num mundo capitalista, dinheiro é um fator de influência que pode mudar a qualidade do trabalho realizado. A Globo apoiou a instauração da ditadura no Brasil em vez de fazer o que considero que seria o verdadeiro trabalho jornalístico de criticar o governo. Se quem paga as contas pode me punir dependendo de quais notícias eu compartilho, meu poder decisão sobre o que publicar fica prejudicado.
O jornal que leio diariamente chama-se Meio e o recomendo bastante. A assinatura básica é gratuita, os e-mails são de fácil entendimento e toda vez que há algum posicionamento político, ele é apresentado abertamente. É isso que espero de um veículo de jornalismo.
Há muitas outras perguntas que podem ajudar a filtrar a qualidade das informações que absorvo e dos diálogos dos quais participo, incluindo: quem se beneficia ao compartilhar tais informações ou narrativas?
Claramente, não sou um buda, ainda não cheguei a um estágio de plena coerência e alinhamento entre meus valores e atitudes. Por isso mesmo, meu exercício pessoal tem sido o de buscar lucidez sobre o caminho que tenho trilhado nessa vida e sobre o que posso fazer diferente.
Esse texto foi, como de costume, uma tentativa de elaborar melhor minhas ideias e compartilhar meus processos. Ficarei muito contente se, a partir desse ou de outros textos, tu quiser conversar comigo. Para isso, basta comentar no site ou responder ao e-mail.
Com carinho,
Tales