🦊 O menino que tinha medo de tudo
Ou: construindo e ajudando a construir um senso de autoconfiança
Eu estava no banco de trás de um Uber conversando com o motorista sobre mil coisas, até que chegamos ao assunto de histórias curiosas. Ele contou sobre a vez em que levou um casal de idosos em um motel e eles esqueceram um pote de lubrificante no carro, rimos um pouco da desgraça alheia, e então ele complementou dizendo que teve problemas com sua namorada, que desconfiou do item.
Nessa hora, eu quis contar sobre uma experiência com um dos meus namorados, mas hesitei. No fundo da minha mente surgiu uma velha rotina: será que é ok falar que sou gay? Será que ele vai achar que estou dando em cima dele? Será que o tratamento vai mudar quando ele souber disso e a situação no carro ficará desconfortável?
Hesitei apenas por alguns segundos, depois contei a história que havia pensado. Quando falei namorado, percebi um leve movimento de olhar da parte do motorista. Foi uma reação controlada? Foi algo completamente diferente e dissociado do que eu havia acabado de falar? Nunca saberei.
Cheguei à conclusão que sou uma pessoa que sente medo. Muito medo, medo de tudo. Inclusive, por muitos anos carreguei comigo um livro chamado O menino que tinha medo de tudo.
Muito da minha escrita ao longo dos anos esteve concentrada em buscar formas de agir com mais coragem e de desenvolver autoconfiança, em grande parte porque eu mesmo preciso desses lembretes de tempos em tempos.
Como esse tema está ainda forte nos meus pensamentos essa semana, decidi trazer para cá uns recortes de textos anteriores (lá de 2017, da época em que eu escrevia no Medium).
Um ensaio sobre autoestima
E a arte de reescrever minhas memórias
Quando morava em Porto Alegre, eu era um bichinho da goiaba, todo feio e tímido. Eu ia para as festas, dançava desengonçado e muitas vezes terminava a noite voltando para casa sozinho e sem ter beijado ninguém. Na época, beijar alguém na balada era uma questão importante pra mim, então eu sofria com os insucessos.
Ficar com alguém era importante porque, de alguma forma, eu alimentava minha autoimagem a partir do meu sucesso interagindo com outras pessoas — inclusive e especialmente de forma afetiva e sexual. Essas noites de frustração tinham um impacto significativo na maneira como eu me enxergava. Sem perceber, isso retroalimentava um ciclo de baixa autoestima.
Eu era tão tímido e duvidava tanto do meu valor pessoal, que certa vez vi um rapaz bonito numa festa e decidi que queria falar com ele. A música estava alta e eu não fazia ideia de como me aproximar, achei que seria estranho chegar gritando no ouvido dele, então resolvi ser inteligente. Digitei uma mensagem no meu celular, algo como “Oi, tudo bem?”, e o cutuquei.
Olhando para o passado, eu entendo aquele Tales. Meu primeiro namoro havia começado a partir de um desses sites de bate-papo, então dialogar por palavras escritas era algo que me deixava muito confortável. Como eu não entendia as normas da interação social ao vivo, tentei trazer aquele ambiente complexo para a minha zona de conforto.
O rapaz bonito olhou pra mim, depois leu a minha mensagem, me olhou novamente e perguntou: “você não sabe falar?”. Enquanto eu gaguejava para responder, ele me deu as costas e saiu. Fiquei ali parado com cara de tacho lambendo as minhas feridas e pensando sobre o que eu havia feito de errado.
Sabe o que descobri, anos depois?
Que não fiz nada de errado. Se eu tivesse falado com ele, em vez de escrito uma mensagem, acredito que o resultado teria sido o mesmo. A questão não era meu modo de contato e sim quem estava entrando em contato. Por algum motivo, não fui atraente o bastante para que ele entrasse no meu jogo e recebi um não direto.
Está tudo bem em receber um não, especialmente hoje, que estou mais treinado nessa arte de não elaborar meu valor pessoal a partir de como as pessoas reagem às minhas ações. O que não está tudo bem é a modalidade de resposta do rapaz bonito. Custava ter sido minimamente mais cuidadoso?
Incômodos à parte, foram muitos anos até eu entender que essa não era uma memória sobre a escrotice alheia e sim uma lembrança de que o meu valor não pode ser definido por outras pessoas. No livro A coragem de ser imperfeito, Brené Brown compartilha suas pesquisas sobre as principais características das pessoas que criam e vivem com ousadia. No final das contas, há um elemento que distingue quem vai e faz de quem não consegue viver mais livremente: as pessoas que vivem com ousadia acreditam que têm valor próprio, que são dignas de amor.
Lá na boate, eu estava esperando a validação do rapaz bonito e o que encontrei foi uma parede. Essa história se repetiu incontáveis vezes ao longo da minha vida e de formas variadas — noites tristes, relacionamentos tóxicos etc. — porque eu não estava ciente do meu valor pessoal.
Na virada do ano para 2012, eu estava em uma festa na casa de pessoas desconhecidas que eu provavelmente jamais verei de novo. A única pessoa que conhecia era uma amiga, para a qual confessei que gostaria de dançar, mas que não queria ser o primeiro a começar. Ela perguntou: “quem vai se importar se você dançar?”. Lá eu já sabia a resposta, mas saber e viver são duas coisas bem distintas. Eu não dancei naquela noite.
Em algum lugar da minha cabeça eu tinha — e muitas vezes ainda tenho — medo do que podem pensar de mim e construía meu valor pessoal em cima da opinião alheia. Essa opinião alheia, aliás, podia ser real, mas também poderia ser simplesmente imaginada, um reflexo de como na verdade eu me percebia.
Tem sido um trabalho contínuo esse de me fazer acreditar que tenho valor e que sou digno de coisas boas. Ter autoestima. Pelo que estou entendendo, será um trabalho para a vida toda. Em alguns ambientes, é mais fácil. Dentro do Ninho de Escritores, por exemplo, eu sou o suprassumo da autoestima e da autoconfiança, basicamente porque entendo e controlo as regras do jogo. Em outros lugares, aí já depende da minha disposição emocional para lidar com o imprevisto e imponderável. Em meio a tudo isso, estar com pessoas que eu confio e aprecio — mas não invejo — é uma forma também de me proteger e autovalorizar.
Se tivesse coragem, hoje eu saberia dançar
Ou: o que você pode fazer pelas pessoas que precisam de mais autoconfiança.
Adoro e morro de inveja das pessoas que exalam autoconfiança. São aquelas pessoas que gritam Eu quando pedimos voluntários, que veem uma festa legal e se jogam mesmo sozinhas, que não hesitam antes de perguntar algo que não esteja fazendo sentido e que lançam projetos incríveis no mundo.
Por muitos anos, eu não fui essa pessoa.
Hoje em dia, minha meta é cada vez mais confiar em mim mesmo e me tratar com todo o amor, cuidado e carinho com que tento tratar minhas melhores amigas. Se jamais diria para elas coisas como “você não é capaz de dançar” ou “esse projeto nunca dará certo”, de onde tiro a pachorra de dizer isso pra mim mesmo, a pessoa que passa mais tempo comigo?
Acontece que muita gente precisaria de um pouco mais de autoconfiança para ser mais feliz. Autoconfiança é aquela coisa autoproduzida que nasce quando acreditamos que somos dignos de coisas boas, que temos valor. Sabe aquela coisa de a gente aceita o amor que acha que merece?
A autoconfiança é a medida do que a gente acha que merece.
Se estamos acostumados a ouvir do mundo que não merecemos ou que não somos bons o suficiente (para o que quer que seja), acabamos acreditando nisso e nos contentando em ser menos do que podemos. A gente pode (e merece) o mundo.
Daí a pergunta é: num mundo com pessoas que precisam de mais autoconfiança, como cuidar para que todos sejam bem-vindos? A gente estende a mão, sorri e oferece um pouco da nossa confiança.
(…)
Acho que é por isso que, de todos os níveis de escritores, eu gosto tanto de trabalhar com iniciantes. Em geral, são pessoas que esqueceram que são incríveis e o meu trabalho é lembrá-las disso.
Existe em mim o potencial para um Tales que sabe dançar, ou que pelo menos se sente confortável em mexer o corpo em público. Só o que preciso, agora, é encontrar um ambiente que escolha me acolher. E se não existir, como há três anos não havia para escritores, sou capaz de criá-lo.
A diferença entre esperança, otimismo e autoeficácia
E o que eles têm a ver com os resultados que você alcança.
Continuo minha leitura de SuperBetter, da Jane McGonigal, um livro sobre como levar uma “vida mais jogante” (a gameful life). No capítulo atual, ela está explicando a importância das missões (quests) para criar uma vida com mais significado. Ela percebeu isso quando, acamada e impossibilitada de realizar qualquer ação mentalmente cansativa (incluindo ler, assistir a televisão ou jogar videogame), voltou a encontrar sentido para a vida por meio de pequenas missões que seu marido e sua irmã criavam.
Nas palavras dela:
Se não há nada para fazer em um jogo, nenhum objetivo a perseguir, nenhum outro modo de progredir, o jogador vai parar.
Por mais que sua condição atual a fizesse enfrentar ideações suicidas, Jane sabia que não desejava parar de viver. Usando seu conhecimento de designer de jogos, ela pediu ajuda a seus aliados mais próximos. A sua primeira missão foi olhar pela janela e encontrar algo de interessante para relatar no dia seguinte. Ainda que não lembre o que, exatamente, ela viu, seu relato é de profunda felicidade por ter algo que conseguiria fazer e de antecipação até o dia seguinte, quando poderia conversar com a irmã e mostrar que foi capaz.
Embora pareça pequeno, quase irrelevante, foi uma missão possível para seu estado naquele momento e significou a entrada em um caminho de reencontro com sua esperança, seu otimismo e sua autoeficácia.
Trago mais trechos traduzidos:
Esperança é o que você sente quando acredita que um bom resultado é possível. Um bom resultado pode ser uma emoção positiva que você deseja sentir, um objetivo que quer alcançar, uma mudança que quer fazer, uma tarefa que deseja completar ou um benefício que deseja trazer para os outros. Se você consegue imaginar qualquer bom resultado, não importa quão improvável, você tem esperança. Quanto mais bons resultados diferentes vocês consegue imaginar, mais esperança você tem.
Otimismo é o que você sente quando acredita que um bom resultado não apenas é possível, mas provável. Por consequência, você está disposto a determinar metas mais altas e colocar mais esforço para alcançá-lo. Você também está mais aberto a tentar novas coisas e a seguir o conselho dos outros — duas coisas que com frequência levam a um sucesso maior. É claro, é possível ser otimista demais. Se você for cegamente otimista, pode colocar seus esforços em uma busca infrutífera ou pode falhar em tomar as precauções necessárias para prevenir um resultado negativo. Contudo, no geral, otimismo é uma valiosa fonte de motivação. E você pode facilmente evitar os lados negativos do otimismo concentrando seu tempo e seus esforços em simples ações que realmente são prováveis de resultarem em sucesso.
Autoeficácia é a peça final do quebra-cabeças da motivação. Autoeficácia, como você lembra (o livro trata sobre isso nos capítulos anteriores) é aquele sentimento de “eu consigo fazer isso!”. Quando você tem uma alta autoeficácia, não apenas acredita que um bom resultado é provável, você acredita que um bom resultado está em seu controle direto. Você tem as perícias e habilidades que precisa para lidar com seus problemas e alcançar seus objetivos.
(…) Quanto mais competência e controle você acredita que tem, mais esforço você fará para realizar as coisas que mais importam para você. (pp. 230–231)
(…)
No mundo que almejo construir, as pessoas têm autonomia, agência e um bom senso de autoeficácia. Melhor que abrir mão de tentar controlar resultados é aprender a cair e levantar quando as coisas não saírem como desejadas. Melhor que se resignar com o suposto inevitável é aprender a improvisar, dizer sim, entender que os erros fazem parte da vida.
Certamente há muitas coisas que não posso controlar, mas não é nelas que devo me basear para definir o que é possível na vida.
Quando ofereço experiências no Ninho de Escritores ou na Oficina de Carinho, crio um campo de acolhimento e aprendizado. Eu consigo fazer isso como fruto de muito treinamento, mas a ênfase aqui está no eu consigo fazer isso. Meu esforço gera um resultado específico e replicável.
Se acredito que não consigo influenciar os resultados, não preciso me esforçar porque o caos do resultado se produzirá por si só. Se acredito que tenho poder sobre os resultados, aí sim faz sentido me articular para efetivamente exercer essa influência.
Eu consigo fazer isso!
Desde que fui para o Japão, em outubro do ano passado, ando um pouco distante do Ninho de Escritores e de outras iniciativas cujo foco é conectar pessoas e apoiá-las em seus processos criativos, de comunicação e de autoconfiança.
Estou sentindo vontade de voltar a esse ofício, pois é algo que muito me motiva a continuar existindo.
Não tenho nada definido ainda, mas achei por bem colocar essa sementinha aqui.
Quem sabe em breve tenho novidades?
Com carinho,
🦊 Tales
Adorei o post, Tales, lido com questão de insegurança há muitos anos também e só recentemente tenho começado a entender algumas coisas. É um processo longo.
Excelente texto, como sempre! Assunto recorrente entre nós, né? Beijos
Quero mais oficinas de escrita!!!