Meus ex-colegas do ensino médio me incluíram em um grupo de WhatsApp para organizar um reencontro depois de 20 anos da formatura. Querem celebrar as experiências que vivemos juntos na escola, mas pedir desculpas pelo bullying ninguém quer.
Não tenho nenhuma vontade de encontrar esses seres humanos. Espero que o tempo os tenha tornado pessoas mais acolhedoras, mas as memórias que tenho daquele tempo não são felizes. Muito pelo contrário, ainda hoje lido com as consequências de ter sido ensinado por meus pares que eu não tinha valor e que eu não tinha espaço para viver junto com eles.
Hoje já não guardo rancor daquele tempo, mas não vejo motivos para me conectar com eles novamente. Não tenho curiosidade de saber como estão, se mudaram, se continuam rindo e abusando socialmente de outras pessoas. Decidi ignorar os convites e mensagens.
Há alguns anos, escrevi um conto com óbvia conexão com minha experiência pessoal. O restante da carta digital de hoje será esse conto, variando um pouco do que costumo compartilhar. Espero que tu goste. 😊
O bufo
– Cara, o reencontro da turma é nesse sábado, tu recebeu a mensagem?
Marcelo jogou o celular sobre a cama e bufou. É claro que tinha recebido a mensagem e também os e-mails, apenas decidira ignorar aquilo tudo. Contudo, não conseguia fazê-lo completamente, razão pela qual estava relendo a mensagem mais uma vez antes de largar o celular novamente. Há dez anos, a turma de 2002 se formou e as torturas diárias terminaram. Ainda assim, por que era tão difícil simplesmente esquecer e deixar passar? Se alguém o encontrasse na rua por acaso, bastaria dizer que teve um compromisso no mesmo dia, ou que esqueceu. Isso se alguém o encontrasse e ainda se dedicasse a falar com ele, o que já seria bastante improvável.
Subitamente cansado, Marcelo deitou-se na cama e releu a mensagem. Já havia decorado as palavras, mas queria ter certeza de que não estava lendo nada errado. Renato era o único ex-colega com o qual ainda tinha contato. Saíam juntos algumas vezes, iam a bares ou ao cinema com um círculo de amigos em comum. Eles tinham entre si um contrato tácito: quando Renato queria pegar alguém, Marcelo se despedia e deixava o amigo livre. Embora Renato estivesse sempre pronto para falar sobre suas noites – as caçadas noturnas tinham duas coisas em comum: terminavam em um motel e resumiam a companhia a uma palavra: a ruiva, a enfermeira, aquela com as sardas –, Marcelo não se sentia confortável em ouvir a respeito. Uma ou outra vez, Marcelo até pensou que pudesse rolar algo entre os dois, mas talvez fosse a cerveja falando mais alto.
– A gente nunca sabe quando o amigo hétero vai querer comer a gente – era isso que Eduardo, o Dudu, defendia. – O que importa é que a gente tem que aproveitar quando isso acontece!
Ao contrário de Marcelo, Dudu era extrovertido, ria alto e caminhava seguro de si. Na rua, encarava os machões e gritava de volta quando alguém o xingava, o que acontecia com frequência. Certa vez, um cara resolveu encrencar e gritou qualquer coisa, ao que Dudu prontamente gritou: “o que é, otário, vai me comer? Então fica na tua!”. Marcelo sempre admirou a coragem do amigo; ao contrário dele, era reservado, tímido e quieto. A barriga saliente e o rosto ainda com espinhas – aos vinte e oito anos, que inferno! – em nada contribuíam para a autoestima do rapaz. Eduardo, ao contrário, tinha a pele de um bebê e um corpo todo durinho, típico de quem malha todos os dias desde os quinze. Essas não eram as únicas diferenças entre os dois. Enquanto o cabelo de Marcelo era escuro e crespo, o de Eduardo era loiro e liso, mas sempre comportado sob a força de gel. Como todo o resto de sua vida – e de seu corpo –, os cabelos de Marcelo não lhe obedeciam nem ajudavam, simplesmente cresciam e, ao menor vento, esvoaçavam desordenadamente.
Os dois se conheceram pela internet quando Marcelo tinha dezessete anos e ainda estava no colégio. Era 2002, ele estava num chat qualquer e usava o nick Garoto Sozinho. Eduardo, na época com treze anos, veio já puxando assunto:
– Oi, tudo bem? O que procura?
Desanimado com o tal Dudu Novinho, Marcelo pensou em sair da internet. Tinha prova no dia seguinte e precisava estudar. Com o vestibular no fim do ano, as chances de entrar no curso de Direito diminuíam a cada minuto não dedicado aos livros e ele sabia disso. Bufou e respondeu:
– Procuro alguém legal para conversar.
Conhecendo Dudu como Marcelo veio a conhecer, aquela resposta só poderia ter provocado um olhar de tédio. O que o seu futuro amigo procurava não era uma conversa profunda, mas sim alguém com quem pudesse dividir algumas horas de prazer. Marcelo não entendia como ele poderia ser assim Na verdade, entendia, só não conseguia ser igual e, por isso, questionava impiedosamente.
Ainda assim, ao contrário das expectativas de ambos, eles conversaram. Falaram sobre o que cada um fazia da vida, sobre o que esperavam da internet, sobre o que conseguiam – para Marcelo, frequentemente era algo bastante diferente daquilo que procurava. Discutiram – e jamais pararam desde então – sobre sexo, e já ali Marcelo percebeu em Eduardo uma abertura para o mundo que lhe faltava. Aos treze anos, Dudu já tivera mais experiências sexuais do que Marcelo teria nos próximos anos. Eduardo, por outro lado, notou que estava conversando com um cara sensível, mas bacana mesmo assim. Um pouco enrolado, também, tanto que levaram meses até que Marcelo aceitasse encontrá-lo pessoalmente. Eduardo tentava todos os dias marcar um sorvete, um cinema ou mesmo uma volta num parque, mas Marcelo tinha medo – havia visto as fotos daquele menino tão saliente, tão feminino, e se vissem eles juntos? – e sempre inventava uma desculpa. No dia em que finalmente se encontraram, Marcelo já estava quase desistindo. Havia tido um dia ruim na escola.
Um dia bom de aula normalmente significava ir e voltar sem que muita gente olhasse para ele, quanto mais lhe dirigisse a palavra. Era assim a maioria: levantava cedo, comia um pão e bebia leite, saía de casa e no ônibus ia lendo algum livro; quando chegava ao colégio, sentava no seu canto favorito no alto das escadas da igreja e seguia lendo; o sinal da escola indicava que era hora de entrar para as aulas e lá ele ficava, ora ouvindo os professores, ora pensando na vida que desejava para si. Nesses dias Marcelo nunca pensava muito sobre o que estava vivendo, mas sim sobre como gostaria de ser diferente, mais parecido com um ou com outro. Numa dada segunda-feira invejou ferozmente o colega que, numa festa, pegara cinco garotas. Na sua imaginação, via-se em festas conversando, bebendo, rindo e beijando. Em seguida voltava para a realidade, ouvia mais um pouco às palavras do professor e recordava que não haveria ninguém que lhe interessasse em qualquer festa de sua turma.
Um dia ruim, por outro lado, implicava não apenas ser visto, mas também ter que ouvir comentários e gritos. Suportar empurrões. No dia em que conhecera Dudu, mais cedo Marcelo havia levado um tapa na nuca que o deixara zonzo por mais de um minuto. Nunca soube dizer, depois daquilo, se fora ao encontro de Eduardo por não conseguir pensar direito ou por pensar demais e saber que um amigo era urgente. Dali pra frente, os amigos que já conversavam todos os dias pela internet passaram a se encontrar sempre que possível. Nos dias ruins, a energia de Dudu lembrava Marcelo que os dias bons também existiam – e eram maioria –, enquanto nos dias bons os dois conseguiam até mesmo rir loucamente de vez em quando.
Sexo sempre foi um tópico sensível para Marcelo, que aos dezessete se achava completamente injustiçado pelo mundo por nunca haver ficado com ninguém. Conviver com Renato e Eduardo e seus detalhados relatos não ajudava, mas ele suportava bravamente enquanto não chegava de volta em casa e se masturbava. A internet era a sua melhor amiga e confidente, sempre pronta a mostrar corpos que lhe interessavam e evidenciar seus muitos prazeres. Não poucas vezes acordou cansado – ou nem dormiu – por haver atravessado a madrugada explorando webcams, contos eróticos e blogs de imagens. Inúmeras foram as pessoas com as quais conversou virtualmente, uns mais interessados, outros mais interessantes.
A primeira vez que Marcelo beijou alguém foi com a ajuda de Eduardo. Não fosse por ele, jamais teria ido a uma festa e muito menos aceitado conversar com aquele cara de barba por fazer e olho azul. De vez em quando ainda relembrava o perfume daquele arquiteto de trinta e três anos, sentia-o no ar e olhava para os lados apressado. Passara três meses esperando que ele ligasse, quisesse marcar um encontro ou algo assim. Levou mais três até desistir de xingá-lo sempre que conversava com Dudu. Responsável pelo momento mais importante de sua vida até então, Marcelo acreditava que ele deveria se interessar por uma participação maior. Alguns beijos, que na memória de Marcelo duraram horas, mas que os relógios defendiam no máximo poucos minutos, e o mundo pareceu se abrir. Dali para frente continuou medroso e cheio de reservas, mas era uma pessoa diferente: já havia beijado.
Jamais contou para ninguém da escola – nem mesmo Renato – que se sentia atraído por homens. Ainda assim, foi na escola que aprendeu que era gay, viadinho e bixinha, tudo isso muito antes de saber o que essas palavras significavam. Seus colegas, principalmente nos dias ruins, faziam questão de lhe esfregar na cara o que ele era e quão nojento isso o tornava. A verdade é que eles não davam muito espaço para que Marcelo fosse qualquer outra coisa, independente de quem ou o quê lhe deixava de pau duro nas madrugadas. Aos vinte anos, quando frequentou uma psicóloga pela primeira vez, foi questionado se não haveria algo de errado com sua “orientação sexual”, se não seria na verdade ele mais uma vez baixando a cabeça e obedecendo aos outros. Não seria a atração que sentia por homens mais velhos um reflexo de sua covardia e, principalmente, da atuação de seus colegas? Quando ficou sabendo dessa interpretação, Eduardo gargalhou tanto que os dois não conseguiram nem conversar direito pelo resto da tarde.
A primeira vez em que Marcelo fez sexo foi ainda em 2002. Havia finalmente superado a paixão pelo arquiteto sacana e então conheceu Leonardo, um rapaz tranquilo. Um ano mais velho, Leo era estudante de Letras e encantou Marcelo com seu jeito pacato de conversar. Os dois encontraram-se num fim de semana que os pais de Marcelo haviam viajado e dormiram juntos por dois dias seguidos. No primeiro, não transaram, apenas se beijaram e adormeceram abraçados. No segundo, Marcelo desistiu de resistir aos avanços de Leo, mesmo após ter ouvido de Leonardo que não havia interesse afetivo envolvido. Era apenas sexo, sem promessas ou expectativas alimentadas por ilusões.
Na segunda-feira seguinte sentiu-se diferente ao entrar no colégio. Era outra pessoa, era agora um homem. Ou um viado, enfim. Fosse o que fosse, era por haver vivido, não por assim ser tornado pelas palavras dos colegas. Não era mais virgem, palavra que tanto lhe incomodava. Renato quis saber o que havia de diferente naquela súbita confiança que o amigo adquirira. Ao contrário de quando beijara pela primeira vez, Marcelo estava radiante. Os demais colegas também farejaram ali um ar que não era o habitual, por isso fizeram daquele um dia ruim. Marcelo quis não se importar, mas a sua recém adquirida força era, no fim das contas, menor do que ele imaginara.
No fim de 2002, as conversas na sala de aula sobre a iminente formatura já eram constantes demais para serem ignoradas. Marcelo tentava desviar, mas Renato frequentemente lhe informava sobre os planos da turma. Para evitar perguntas indiscretas, Marcelo nunca mencionou em casa a existência de uma festa de formatura. Os pais, atribulados de trabalho, sequer perceberam a noite em que o filho não ligou o computador nem a televisão: ficara olhando o teto, ciente que, em algum lugar da cidade, sua turma estava se divertindo com álcool, dança e música alta. Nesses momentos eles eram a sua turma, as pessoas com as quais ele deveria compartilhar o tempo, as experiências e as vontades. Com as quais ele deveria ser parecido. Nesses momentos sua turma não era apenas Renato e Eduardo – que se odiavam, mesmo só de ouvirem falar um do outro –, mas incluía diversos colegas. Nesses momentos, até mesmo – talvez principalmente – os colegas responsáveis pelos dias ruins eram os que doíam mais. Eles, ao contrário de Marcelo, viviam. Não eram eles que estavam em casa olhando para o nada. Eram eles que inúmeras vezes lhe diziam que não havia absolutamente nada nele que invejassem.
O celular caído ao seu lado ainda aguardava com a mensagem de Renato. Sábado, dentro de três dias. O encontro da turma. Mais uma vez, percebeu-se olhando para o teto marrom de seu quarto. Por que aquela súbita vontade de ir, de mostrar a todos quão bem ele havia crescido, de dizer que o menino tímido de outrora já havia se tornado um profissional competente, capaz de falar habilmente na frente de um juiz? Marcelo levantou e se olhou no espelho por um longo tempo. O que ele tinha a oferecer àquelas pessoas? Não, essa não é a pergunta correta, constatou. Por que eu quero oferecer algo a eles? Porque não simplesmente ignorar que eles existiram? Puxou o ar com força e trancou-o nos pulmões, mirando o espelho de forma decidida. Encolheu a barriga e ajeitou os ombros, ergueu o queixo e olhou para a própria imagem refletida, para então soltar o ar com ainda mais força e murchar sobre si mesmo. Não, pensou, eu não vou, eu não quero ir, eu não preciso ir.
No sábado, ele foi. Contrariando todos seus pensamentos, acordou disposto a enfrentar o mundo e arrumou-se repleto de confiança. Sabia que esses rompantes eram raros e aprendera a aproveitá-los. Vestiu uma roupa confortável e, com as mãos no bolso, entrou no restaurante em que seus colegas estavam reunidos. Sentado num canto da grande mesa que organizaram, analisou um por um dos sujeitos presentes. Por alguns segundos, não reconheceu a turma de dez anos atrás. Esboçou um sorriso quando percebeu que o tempo passara não apenas para ele, mas também para os demais. De alguma forma, parecia que aqueles dez anos de separação haviam criado uma barreira entre aquelas pessoas e ele. Ninguém o via, ninguém falava com ele – ou dele. Estava começando a perceber que aquilo não era diferente dos tempos de colégio, quando alguém resolveu quebrar o gelo:
– E tu, Marcelo, o que anda fazendo da vida? – Luana, loira, filha de médicos, estudante de Relações Públicas. Por muito tempo, Marcelo enxergara nela uma amiga, uma pessoa com a qual podia conversar. Não estava errado, Luana estava sempre ali disposta e interessada em ouvir o que Marcelo tinha a dizer, quase tanto quanto estava interessada e empenhada em relatar suas confissões para outras pessoas. Quando a turma dos dias ruins começou a mencionar a carta nas suas provocações, Marcelo soube que a sua confidente não guardava segredos muito bem.
A carta fora escrita por sugestão de Dudu. Era um presente de aniversário para um colega legal que o convidara para sua festa. Não era para ser nada demais, apenas uma demonstração de carinho que, aos olhos de Eduardo e Marcelo, não tinha nada de ruim. Ele simplesmente escrevera que gostava do colega, que o achava bacana e que esperava que o futuro lhes reservasse ainda muitos dias de companhia e amizade. A turma dos dias ruins, porém, interessou-se pouco em saber que as palavras de carinho eram fraternais: bastava-lhes que fosse um homem escrevendo para outro homem. Ou, como eles fizeram questão de frisar, um viado se declarando para outro viadinho. O destinatário da carta deixou evidente a sua aversão ao presente – e ao remetente – nos dias, semanas e meses seguintes, interrompendo uma relação de amizade que poderia ter crescido. Marcelo, por sua vez, passou quase duas semanas sem conversar com Eduardo, responsabilizando-o pelo ocorrido.
– O que eu ando fazendo da vida? – O que poderia responder? Contar que trabalha em um escritório, ou talvez mencionar que ainda sente vontade de chorar toda vez que se olha no espelho e lembra todas as rejeições que sofrera até então? Marcelo ouvia pela mesa diversos comentários sobre namoros, ficadas e casamentos, mas sabia que não poderia contar as suas histórias ali. – Nada demais, o de sempre. – O de sempre? Que tipo de resposta era essa, perguntou-se? Luana não pareceu se importar. Como bem estava aprendendo na faculdade, sorriu, inclinou a cabeça de leve, piscou os olhos lentamente e, ainda com os dentes à mostra, virou-se para o colega ao lado, retomando um assunto anterior.
Ninguém reparou quando Marcelo se levantou e foi ao banheiro. Com o celular na mão, digitou uma mensagem apressada:
– O que eu estou fazendo aqui? Quero ir embora.
Em pouco mais de um minuto, a resposta de Leonardo chegou. Renato não entenderia o que ele estava sentindo, Marcelo pensou. Dudu, por outro lado, faria alguma piada e rir não era a resposta que estava procurando. Após a primeira e única vez que transaram, Marcelo e Leo tornaram-se amigos esporádicos. Conversavam, trocavam ideias e filosofias, mas raras vezes se encontravam pessoalmente. Ainda assim, Marcelo sabia que receberia uma resposta e, mais que tudo, que a resposta lhe traria exatamente aquilo que precisava.
– Se não quer estar aí, não esteja.
Quando saiu do banheiro, teve a impressão de que alguém parou de falar assim que o viu. Seguiram-se risinhos abafados e olhares indiscretos. Desanimado, Marcelo não voltou à mesa, foi direto para a rua. Ainda ouviu alguém dizer que “ele sempre foi assim, na dele, nunca entendi”. Antes de deixá-los para trás, bufou: realmente não queria estar ali.
Obrigado pela leitura!
Com carinho,
Tales