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Em 2017, tive uma ideia: e se eu criasse uma oficina de carinho?
A ideia nasceu da mistura de duas coisas: [1] do meu interesse por oficinas de cuddling, em que pessoas exploram juntas as possibilidades do toque, do abraço e da vulnerabilidade em contextos não sexuais, e [2] da minha prática de escrita diária – durante alguns meses, escrevi e publiquei um texto por dia.
De início, a ideia era apenas uma exploração intelectual sobre como uma oficina dessas poderia acontecer. Foi um dia em que acordei sem saber direito o que escrever, então decidi me aventurar por essa proposta. Mal sabia que em breve estaria viajando pelo Brasil para realizar oficinas de carinho.
Antes de contar como isso aconteceu, trago o texto que escrevi.
Oficina de carinho
Um convite a cuidar de si e dos outros
Na minha formação como ser humano, poucas foram as oportunidades de aprender a estima por mim e pelos outros. Ainda assim, hoje percebo que estimar-se é uma das habilidades essenciais para navegar esse mundo complexo no qual existimos.
No livro A coragem de ser imperfeito, Brené Brown apresenta a autoestima como principal diferença entre as pessoas que vivem com ousadia e aquelas que travam pelas forças do medo e da insegurança. A diferença entre quem faz e quem deixa de fazer, ela argumenta, está na capacidade de cuidar de si mesmo e de praticar autocompaixão.
O objetivo desta oficina é experimentar algumas práticas de carinho e cuidado e então compreender como elas podem impactar nossas vidas. A oficina está separada em três módulos, que seguem.

Módulo 1 — a arte do elogio
No filme As vantagens de ser invisível, uma das personagens diz que “a gente aceita o amor que acha que merece”. Isso vale para o amor e também para o elogio. Muitas vezes recebi elogios negando-os, sugerindo que não eram minha responsabilidade ou retribuindo o elogio de forma automática. Essas ações de recusa e desconexão pouco auxiliam a comunicação.
Neste primeiro módulo, a proposta começa pela investigação de o que pode ser um bom elogio e em quais contextos. Está tudo bem elogiar o corpo de uma pessoa que nunca vimos antes? Devemos elogiar os resultados alcançados ou é mais cuidadoso manter o foco nos esforços? Elogio tem hora certa para ser feito?
Para entendermos como fazer elogios, estudaremos também como recebê-los. O que eu sinto quando alguém me faz um elogio? O que muda de acordo com a forma como esse elogio é realizado? De que modo eu posso responder aos elogios que recebo?
Módulo 2 — o poder do consentimento
Todas as relações entre pessoas deveriam ser consentidas. A ausência de consentimento abre espaço para a violência. Neste módulo, nossa investigação se centrará na potência do não, de dizê-lo tanto quanto ouvi-lo, e na maravilha do sim livre de constrangimento.
Consentir é abrir uma porta de comunicação, tornar comum uma ideia ou ação, sentir junto. Isso é muito diferente de tolerar. Quem tolera aceita, mas resiste. Praticar o consentimento é praticar o autoconhecimento e a clareza das posições que ocupamos e desejamos ocupar no mundo. Se eu sei o que quero, consigo avaliar o que merece meu sim e o que ficará com o não.
Como no módulo anterior, o ato de consentir e não consentir tem duas vias: a de fazê-lo e de recebê-lo. Estudaremos o nosso poder de dizer sim ou não e de propor condições quando julgarmos conveniente, bem como avaliaremos como lidar com os sentimentos de ouvir sim ou não. Essencial aqui será compreender que o não fecha uma porta específica e não todas as portas possíveis; afinal, todo não esconde um sim para outra coisa — e às vezes esse sim não é para a gente.
Módulo 3 — o afago do carinho
O carinho vai além das palavras: ele também pode ser físico. Neste módulo, amparados pela qualidade de elogio que desenvolvemos e na capacidade de consentir, apreciaremos a delícia do toque. Esta não é uma oficina sexual, por isso existe um limite do que está consentido dentro do espaço da oficina.
Com o consentimento de nossos parceiros, iniciaremos o módulo com o estudo do abraço. O que é um bom abraço? Quanto tempo duram nossos abraços cotidianos? O que sentimos quando um abraço “dura demais”? Dentro da perspectiva de aprender a dar e receber carinho, o abraço servirá de entrada para acolher o corpo do outro.
Por fim, nos concentraremos no carinho propriamente dito: no toque consentido, leve e prazeroso, ainda que neste momento seja não sexual. Aplicando tudo o que estudamos até aqui, vamos realizar e receber carinho, para então dialogarmos — de coração aberto — sobre os sentidos do toque, do sim, do não e do cuidado consigo mesmo e com o outro.
Quando e onde?
Esta oficina ainda não existe. Ela foi esboçada em um exercício de imaginar uma experiência de aprendizagem que julgo necessária para o mundo.
Quero realizá-la? Quero. Se tu também quiser, me dá um toque e vamos conversar para que eventualmente ela se torne real.
Terminei o texto com esse convite aberto aos meus leitores: se alguém quisesse fazer a oficina acontecer, bastava conversar comigo. Foi o que aconteceu: pessoas em quatro cidades diferentes vieram falar que tinham interesse em fazer a oficina acontecer. Até aquele momento, meus projetos foram quase sempre individuais, então me surpreendi ao descobrir que poderia criar experiências em conjunto.
Não muito tempo depois, escrevi novamente sobre o processo que estava vivendo na construção da oficina de carinho.
Por que precisamos de uma Oficina de Carinho?
E como você pode tornar o mundo um lugar mais carinhoso.
Qual é o seu projeto de futuro?
O meu projeto de futuro envolve um mundo em que as pessoas sejam acolhidas onde e como estiverem, com espaço para serem ouvidas e para conversarem profundamente sobre quaisquer temas que lhes importem.
Se você está lendo esse texto, sei que carinho é algo importante para você. Sabe por que isso me deixa feliz?
Porque não estamos sozinhos.
Há dois meses, escrevi um texto sobre como poderia ser uma Oficina de Carinho e o terminei com um convite. Eu não estou mais disposto a trabalhar sozinho e por isso propus que, se alguém quisesse ver aquela oficina acontecendo, que falasse comigo para que a realizássemos juntos.
Quatro dias depois recebi o primeiro sim.
Para tudo o que queremos colocar no mundo, o primeiro sim é o que mais importa. É nesse momento que nosso sonho deixa de ser individual e passa a ser coletivo. O que é difícil fazer acontecer por conta própria vai se tornando mais fácil para cada nova pessoa que diz sim e se junta ao movimento.
Eu disse ao mundo que quero trazer mais carinho (na forma de uma oficina) e recebi alguns sims: de Brasília (Que se Dani), do Rio de Janeiro (Gabriel Martins), de Vitória (Lara Dos Anjos) e de São Paulo (Thayna Meirelles, Fernanda Resende e Eliza Mania).
Mas por que uma oficina de carinho?
Minha vida escolar e no ensino superior foi marcada por experiências de isolamento e bullying. No Ensino Fundamental, estudantes mais velhos me perseguiam e provocavam. No Ensino Médio, poucas pessoas se dispunham a conversar comigo. Na faculdade, professores instruíam a partir de uma pedagogia violenta.
Isso não quer dizer que o mundo estava errado e eu era perfeitinho. Por não reconhecer a importância do carinho na minha vida, eu também não havia sido treinado para pedir o que eu precisava. Eu achava que a vida era aquilo e ponto final. Houve momentos na vida em que passei recreios e mais recreios imaginando complexas vinganças contra meus colegas. A linguagem da dor, da violência e do sofrimento era a única que eu sabia falar fluentemente.
E ainda assim, em meio a tantas experiências de desconexão e brutalidade, encontrei pequenas joias de carinho e cuidado que me ajudaram a continuar vivendo.
No Ensino Fundamental, eu era colega de dois irmãos gêmeos que, na medida do possível, me protegiam e cuidavam de mim. Eles estavam entre os mais populares em nossa turma e, ainda assim, cuidavam de mim. Eles me ensinaram que estar em uma posição de poder não significa que você precisa usar esse poder para pisotear os outros.
No Ensino Médio, lembro de mais uma entre tantas outras vezes que eu estava caminhando sozinho durante o intervalo das aulas. Sentei em uma escadaria escondida no meio de uma mata (o colégio era bem grande) e logo uma moça veio perguntar se estava tudo bem. Ela era uma aluna mais nova que eu, mas disse que não suportava ver alguém sozinho. Durante alguns dias, fomos bons amigos, mas a pressão das colegas dela logo a fez desistir de se encontrar comigo e paramos de nos falar.
Na faculdade, em meio à minha descoberta/conclusão de que me atraio afetiva e sexualmente por homens, tive bons amigos que me ajudaram a entender o que aquilo significava na vida.
Eu tive a sorte de, mesmo em um mundo marcado pela violência, encontrar carinho. Observe que eu digo isso de uma posição extremamente privilegiada: sou homem, branco, classe média, com acesso a educação de qualidade. Se pra mim, do alto desses privilégios, foi difícil achar carinho por onde naveguei, imagina para quem tem ainda menos privilégios.
O que você faz para criar um mundo mais carinhoso?
Cada ação que realizo no mundo nutre um determinado futuro. Se respondo violentamente a alguém que está me xingando, estou nutrindo um ciclo de violência. Se ignoro e excluo alguém que é diferente de mim, estou nutrindo um mundo de silenciamento e desconexão.
A pergunta que abre este texto é essencial: qual é o seu projeto de futuro? Qualquer que seja a resposta, suas ações estão criando um determinado futuro. A questão aqui, portanto, é de coerência e consistência.
O que eu faço, caso você esteja se ou me perguntando, é criar ambientes seguros para que pessoas possam aprender conhecimentos, habilidades, atitudes e mentalidades que considero essenciais na vida: a elaboração das nossas próprias narrativas de vida, o carinho, a sexualidade. Minha missão de vida é facilitar que outras pessoas tenham experiências mais positivas do que aquelas que vivi da infância até o início da minha vida adulta.
(…)
Encerrei o texto fazendo um convite direto para que pessoas participassem da oficina de carinho em São Paulo, a primeira edição a tomar forma.
Cerca de um mês depois, compartilhei mais um texto sobre o processo.
Você quer mais carinho na vida?
Pergunte-me como.
Estou neste momento em Vitória, Espírito Santo, pensando no quanto meu trabalho é incrível — incrível mesmo, do tipo difícil de acreditar. Eu vim até aqui a convite da minha amiga Lara Dos Anjos para ministrar uma Oficina de Carinho e viver/experimentar possibilidades de relações melhores entre as pessoas.
Quando conto deste trabalho maravilhoso, ninguém me questiona por que precisamos de uma Oficina de Carinho. As pessoas querem é saber como é possível fazer isso e que tipo de experiências são vivenciadas numa Oficina dessas.
O como é possível me parece mais fácil de responder, então vou começar daí. Sofri muitos e muitos anos com o suposto fato de que eu não era um escritor de verdade. Era uma sensação bem ruim aquela de nunca me achar o suficiente, mas eu a confirmava a cada curso ou evento para pessoas que escrevem. Foi só em 2014 que entendi que eu não precisava aceitar nem replicar uma lógica violenta de treinamento de escritores e decidi inaugurar um espaço compassivo, criativo, colaborativo e divertido no qual é possível aprender a escrever melhor. Assim nasceu o Ninho de Escritores.
Uma escola de experimentação literária e acolhimento para quem quer escrever, essa é a descrição mais enxuta do Ninho de Escritores que consegui inventar até hoje. Quero destacar o acolhimento como fator central que torna o Ninho esse espaço seguro e inclusivo para trocas e experiências de aprendizagem. Todas as pessoas são bem-vindas a colaborar com a construção de um campo de cuidado, afeto e descoberta.
Muito na linha de O mestre ignorante, de Jacques Rancière, fui descobrindo que meu trabalho maior é criar espaços seguros, campos para aprendizagem, ou bolhas de utopia. Nesses espaços, as pessoas são convidadas a explorar projetos de existência distintos daqueles que costumam encontrar no cotidiano. Minha expectativa é que, aos poucos, as bolhas de utopia cresçam tanto que cheguem a englobar a realidade — e daí a desconfiança, desconexão e violência que marcam muitos cotidianos é que virarão pequenas bolhas.
Estou longe de ser o praticante perfeito da compaixão, da não-violência e do carinho. Com frequência não consigo escutar ativamente ou estar presente no momento. Tem horas que pareço estar de carona na minha própria vida. Mas está tudo bem porque cada vez mais eu tenho a sensação de que tudo o que as pessoas precisam para viver e criar experiências melhores são bons convites. Bons convites eu consigo fazer, mesmo desse meu jeito torto, falho, humano.
Você quer mais carinho na vida? Aqui está como.
Ajude a espalhar essa ideia. Isso pode ser feito de incontáveis formas. Uma delas é criar pequenas bolhas de utopia com as pessoas que amamos. Outra forma é divulgar esses eventos legais como a Oficina de Carinho ou grupos de prática de comunicação não-violenta ou vivências de autoconhecimento. Outra ainda é apoiar a realização de uma Oficina de Carinho onde você mora: basta conversar comigo e a gente faz acontecer juntos.
Qualquer que seja o caminho que você optar para trazer mais carinho para a sua vida e para as pessoas ao seu redor, estou disposto e animado em conversar, trocar ideias e histórias.
Descobri que sou sou movido a acolhimento e conexão. Vamos conversar?
Nessas últimas semanas, ando trazendo aqui no Olhar de Raposa alguns textos antigos, num processo que é meio reciclagem, meio reencontro com elementos que seguem gravitando ao meu redor.
Um dos motivos para esse meu foco no passado é o fato de estar pensando no futuro, em quem eu quero ser quando estiver vivendo no Japão. Eu gosto de ser esse Tales que vai e cria projetos, que inventa jeitos diferentes de conectar as pessoas e de propor mais carinho, criatividade e amor.
A escrita é meu jeito de não perder isso de vista, de continuar me lembrando daquilo que é precioso para mim.
Muito obrigado por fazer parte disso!
Com carinho,
Tales