A Disney vai lançar uma nova versão de A pequena sereia usando atores reais em vez de uma animação. No papel de Ariel estará a atriz Halle Bailey.
Ao que parece, pessoas ficaram descontentes com a escolha de uma Ariel negra.
(pausa para respirar)
É racismo e não é nada de novo. Muito pelo contrário, fãs brancos cis-gênero heterossexuais reclamam quando suas preciosas memórias são atravessadas por uma reinterpretação de personagens que conheceram no passado. Seja um Homem-Aranha negro, uma Thor mulher ou um Wolverine beijando outro homem, basta alguma coisinha pisar fora das normas de raça, gênero ou sexualidade e pronto, cai o mundo (dos brancos cis héteros).
“Ai mas a Ariel tem cabelo ruivo”, “ai mas o Miranha é branco”, “ai mas o Thor é homem na mitologia nada a ver isso daí”, “ai mas o Wolverine sempre foi hétero nos quadrinhos”, as rejeições sempre seguem um padrão semelhante de conservadorismo de imagens e ideias muito específicas sobre quem os personagens podem ser.
O curioso nessas histórias é que quando a situação é invertida, normalmente a comoção dos mesmos fãs não é a mesma, nem remotamente parecida. Ou seja, há um critério para a indignação e esse critério é informado por racismo, transfobia, homofobia, misoginia etc.
“Ai mas eu não sou _____” (Preencha aqui a etiqueta que quiser: racista, transfóbico, homofóbico, misógino etc.), costumam dizer. Todos nós somos tudo isso. Nós nascemos e somos aculturados em uma sociedade que é pautada por valores de exclusão. Se tu não reconhece que também pode e provavelmente muito já foi racista, transfóbico, homofóbico, misógino, capacitista etc., te convido a polir a tua lente e tentar enxergar de novo.
Vou dizer de novo: todos nós somos tudo isso. O que a gente pode fazer é passar o resto da vida tentando limpar do nosso sistema esses aprendizados nocivos sobre quem as pessoas são ou podem ser.
Não só as pessoas, aliás, como também os personagens – lembrando que nenhum deles existe senão na nossa imaginação.
Um convite a uma imaginação mais inclusiva
Esse vídeo e tantos outros estão circulando pela internet mostrando reações de crianças negras assistindo ao teaser da nova versão de A pequena sereia:
Uma amiga, conversando com outra pessoa, ouviu que a indignação frente à Ariel negra vinha de memórias afetivas construídas na infância. “Quando menina, eu queria ter cabelo vermelho por causa da Ariel”, a pessoa disse.
Acho super bonito que alguém tenha se reconhecido na personagem e é exatamente por isso que pergunto: por que não convidar mais pessoas a viverem experiências semelhantes? É tão difícil imaginarmos um mundo verdadeiramente plural e inclusivo, em que celebramos nossas memórias e criamos para abarcar e acolher cada vez mais possibilidades de representação? Se a minha infância foi tocada por um personagem e agora tenho a oportunidade de compartilhar essa magia com outras pessoas mais, por que não?
Cresci praticamente sem ver personagens gays na televisão ou no cinema. Mesmo antes de entender que eu poderia ser gay e que isso não era um problema, eu me agarrava avidamente nos poucos exemplos de não-conformidade sexual ou de gênero que encontrava. Por não me sentir representado, cheguei a pensar que eu não fazia parte, que eu não merecia fazer parte.
Para pessoas brancas cis héteras, ver-se representado é tão cotidiano que parece dado, parece que todo mundo tem isso.
Não é todo mundo que tem isso e já passou da hora de isso mudar.
Disney, a benfeitora?
A Disney é uma empresa que ganha dinheiro vendendo imagens e histórias. Pelo tanto de poder e alcance que têm nas mãos, penso que deveria fazer muito mais do que apenas em 2022 apresentar uma segunda protagonista negra na sua linha de princesas. Digo mais: espero que nessa nova versão a Ariel não se submeta a uma ideia submissa do que é amor para mulheres e não aceite deixar de lado a sua voz, aquilo que para ela era o mais precioso, para entregar-se ao “amor verdadeiro” de um macho qualquer que ela viu um punhado de vezes.
A escolha da Disney de trazer uma protagonista negra pode ser lida como positiva? Sem dúvida, meu texto inteiro foi sobre isso. Ao mesmo tempo, não sejamos inocentes: isso é possível hoje porque alcança um público e lança uma imagem que ajudarão a Disney a ganhar mais dinheiro. E se o resultado não for lucro, provavelmente aguardaremos mais sei lá quantos anos até que isso seja tentado novamente.
Ou seja, o jeito é celebrar a inclusão sem perder a criticidade. 😊
Para olhar por aí 🧐
Sobre ser interessante e cultivar nossas relações
Na última edição da newsletter da Priscila Mayer, ela conta sobre algo que ouviu do filho: “você não é tão interessante, mãe”. Já disse para a Priscila o quanto penso que o moço estava equivocado ao dizer isso – afinal, o máximo que podemos declarar é o quanto alguém nos interessa e importa; ninguém deveria ser juiz do valor alheia. Recomendo a leitura do texto dela, o qual ainda quero responder em um texto futuro aqui do Olhar de Raposa. 🥰
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Kit saiu do Twitter
O ator Kit Connor (the Heartstopper) saiu do Twitter após receber críticas sobre a possibilidade de estar fazendo queer baiting. Esse termo é usado para indicar quando obras brincam com a possibilidade de relacionamentos não-heterossexuais, mas só da boca pra fora, se aproveitando da mobilização do público LGBTQIA+ sem de fato entregar essas histórias e experiências.
No caso do Kit, o povo está dizendo que porque ele não diz se é hétero, bi, gay ou o que, ele está fazendo queer baiting. Como é difícil deixar as pessoas viverem em paz, deve pagar bem ser fiscal de cu alheio.
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Jesus não era branco
E eu ri bastante com esse tuíte:
Se algo nesta carta digital te tocou, agradou ou incomodou, me deixa um comentário? E se ainda não assina, fica aqui o convite:
Com carinho,
Tales
Confesso que eu fiquei chocada quando vi a Ariel negra. Chocada com os comentários, com tremenda falta de noção, com o racismo explícito em tantos e tantos comentários. E mais do que chocada, fiquei com vergonha de pertencer a esta maioria tão execrável. Sou branca, neta de europeus que ajudaram a construir esta cultura lamentável de exclusão em que vivemos hoje. Triste demais. Queria contribuir mais para uma efetiva mudança.