Há quem diga que existem certos temas que não se discutem, como futebol, religião, salário e política. Como o título da carta digital de hoje já entregou, discordo dessa ideia e quero compartilhar como vejo e penso sobre política, esse tema espinhoso que se torna mais visível em período eleitoral.
Antes de qualquer coisa, me parece importante reconhecer que política é um tema complexo, não importa a partir de que nível a gente olhe. De um nível mais interpessoal, tem a ver com reconhecer as dinâmicas do exercício de poder, o que envolve alto grau de subjetividade e teorização. Se olharmos em uma perspectiva mais macro, social ou institucional, política se envolve com cargos, dinâmicas, regras, leis, alianças, discursos, narrativas e uma complexa teia que costura história, geografia e tantas outras coisas.
De novo, política é um tema complexo.
Além de complexo, eu não tenho interesse em dedicar muito tempo da minha vida para acompanhar as notícias e os eventos internacionais e traçar comparações e análises que sejam lúcidas, profundas e cuidadosas. Sabendo disso, o que é o melhor que posso fazer para realizar decisões minimamente informadas, não paralisar frente a esse universo de novas informações contínuas e manter uma postura crítica?
É sobre isso o texto de hoje.
Poder
Desde que comecei a estudar comunicação não-violenta, um aspecto que me incomoda bastante é a ausência de discussões sobre poder nas abordagens mais básicas da CNV, em particular aquelas escritas pelo fundador Marshal Rosenberg. A proposta da comunicação não-violenta passa por reconhecermos pelo que somos responsáveis (nossos sentimentos, necessidades e ações).
Por exemplo, minha resposta a algo depende de como interpreto e me sinto em relação ao que está acontecendo. O problema é que, nas formulações básicas da CNV, a reflexão para por aí.
É raro ver pessoas discutindo a CNV conectada com questões importantes como racismo (sugiro acompanhar o trabalho da Silvia Silva neste campo), misoginia, homofobia e tantas outras formas de opressão sistêmica. Às vezes a CNV até nos ajuda a perceber que estamos segregando humanos e que isso “não cria uma vida mais maravilhosa para todo mundo”, mas sem um amparo mais elaborado sobre como as relações sociais se dão e têm se dado historicamente, nossas reflexões ficam autocentradas e esvaziadas.
Um aspecto muito relevante nessas reflexões é o papel do poder e como ele é distribuído de forma desigual entre pessoas diferentes a depender de fatores que vão além da escolha pessoal. A loteria genética, por exemplo, prenuncia vidas completamente diferentes para alguém nascido negro, pobre e deficiente no interior do Norte brasileiro ou alguém nascido branco, rico e em um país do oeste europeu.
Recentemente encontrei esse vídeo, parece que é de um seriado chamado Yellowstone:
No vídeo, a personagem da professora apresenta uma definição de poder como “a habilidade de direcionar ou influenciar o comportamento de outrem ou um curso de eventos”. Gosto dessa definição porque é simples e, ainda assim, precisa o suficiente para ser útil.
Em um nível pessoal, todos temos algum poder, especialmente sobre nós mesmos. Com frequência esse é o foco da comunicação não-violenta, e é um foco que aprecio muito, pois entendo que uma única pessoa agindo e lidando com o mundo de forma ao mesmo tempo firme e gentil já pode causar um impacto tremendo. Quando começo a olhar para outras pessoas e relações sistêmicas, as tramas do poder começam a ficar mais complexas, a ponto de parecerem infinitamente complicadas.
Poder está presente em todas as nossas relações, em maior ou menor grau.
Quando um presidente candidato à reeleição, durante um debate, diz para uma mulher que ela é uma vergonha para o jornalismo brasileiro e que deve sonhar com ele à noite, há vários níveis de poder aparecendo. Há o poder presidente versus jornalista e há também o poder homem versus mulher. Nossa sociedade é patriarcal, portanto homens gozam de mais poder do que mulheres. A violência é um ato de poder, seja ela física, verbal, emocional, moral etc.
Infelizmente, poder muitas vezes é invisível. Ele está lá, sempre atuante, mas se dispersa assim que paramos de prestar atenção. Enxergar as relações de poder demanda lucidez intencional. Do contrário, vira só uma gracinha, uma piada, uma coisa boba “que no fundo não é bem assim”.
Então como olhar para o poder?
Valores e princípios
Como disse, acho política um tema complexo e não tenho disposição para acompanhar tudo o que precisaria para entender o cenário político brasileiro. Por conta disso, preciso encontrar outras âncoras para estabilizar o que penso e tomar decisões. Estou aqui pensando especificamente nas eleições, mas uso essa mesma abordagem para tantas outras coisas.
Frente à complexidade, me apoio em valores e princípios.
Um desses princípios é não apoiar discursos segregacionistas e violentos. Se uma pessoa está propondo ações e ideias que trazem mais separação e limitação às possibilidades de vida das pessoas, é provável que essa pessoa não terá meu voto.
Essa é a principal razão pela qual não votei nem pretendo votar em nosso atual presidente. Quando falei sobre isso com uma amiga que o defende como a melhor opção política, ela sugeriu que eu “perdoasse suas falhas”. Eu não tenho nada contra o homem em si. Quero que ele tenha a melhor vida possível, porém não quero que ele tenha poder sobre mim e outras pessoas porque as atitudes que vi me sugerem que o uso que ele fará desse poder será para criar um mundo diferente daquele em que eu gostaria de viver. Acredito, inclusive, que as pessoas devem assumir tanto mais responsabilidade pelos impactos de suas escolhas e ações quanto poder tiverem em mãos.
Eu aprecio e valorizo honestidade e transparência. A mentira é uma estratégia e um ato de poder, pois por meio da enganação é possível guiar pessoas para tomarem decisões diferentes. Às vezes a mentira é tanta que cria bolhas de realidade paralela, em que a narrativa sobre os acontecimentos públicos é distorcida e reorganizada pra satisfazer interesses específicos.
Mentir e enganar ficou particularmente fácil com o avanço da tecnologia e a paralela desconfiança de instituições tradicionais de saber e conhecimento. Fabricar imagens e narrativas tem um custo baixo e um impacto alto, tornando-a uma estratégia com alto potencial de alienação.
Eu defendo autonomia, inclusive intelectual. Aliás, mais do que defender, me interessa estimular. Esse é meu projeto como educador: que as pessoas sejam capazes de pensar por si próprias, mesmo que porventura discordem de mim como resultado dessa autonomia. Fico preocupado com discursos que recusam o pensamento alheio ou que, pior ainda, tencionam as relações rumo à violência.
Nesta semana, um homem tentou disparar uma arma de fogo contra o rosto da vice-presidente da Argentina Cristina Kirchner. Essa foi uma tentativa muito direta de usar poder para silenciar, de forma permanente, outro ser humano.
Diálogo, para mim, é um princípio fundamental, e me interessa usar todo e qualquer poder que eu tiver a meu dispor para facilitar e garantir que os espaços sobre os quais possuo influência operem por esse princípio. Não quero tolerar a intolerância.
Esses e tantos outros valores e princípios informam a minha maneira de pensar e de avaliar para quais pessoas quero emprestar poder. O voto é uma maneira de fazer isso, de emprestar e legitimar poder, a despeito de todas as suas falhas e limitações institucionais.
Por favor note que não estou dizendo para não ler notícias ou estudar a história de um candidato ou de outro. Pelo contrário. Contudo, me parece importante entender como encontrar fontes confiáveis para se informar, já que há muitos interesses emaranhados por trás de cada publicação.
Verdade e ignorância
Durante meu mestrado em cultura visual, estudei a noção de ignorância de uma forma diferente daquela que estava acostumado:
A ignorância, num entendimento queer, não se trata do oposto ao conhecimento ou da falta deste. Ela é, na verdade, um efeito do modo como se conhece, uma relação com as informações que opera de tal maneira a colocar o sujeito em posição de não interagir com determinados conhecimentos. Portanto, antes de se perguntar por que um indivíduo não compreende algo que cremos que ele deva aprender, é essencial buscar de que saberes ele dispõe e quais considera pertinentes para a sua vivência.
Quando retiro a ideia de ignorância de um binário em relação a conhecimento, posso abordar as diferentes maneiras de saber sem recair na lógica do certo ou errado e do bom ou ruim – caso em que ter conhecimento é bom e correto enquanto ser ignorante é ruim e errado.
Se não há um conhecimento único para ser elevado ao status de verdade, já que pessoas diferentes experimentam suas vidas de modos subjetivos e abertos a variações incontáveis, o que fazer?
No meu caso, gosto de usar uma pergunta para ancorar minhas leituras de realidade: como sei disso que acho que sei?
É uma pergunta boba, mas poderosa, porque me convida a reconhecer as origens do meu pensamento e do meu entendimento de realidade. Um exemplo simples: se digo “Fulano é corrupto”, de onde vem esse entendimento? Eu sei apontar como formei esse conhecimento? Se não sei, reservo a mim mesmo o dever de ponderar melhor antes de fazer esse tipo de afirmação.
E digamos que eu saiba como construí esse conhecimento. Talvez eu tenha ouvido alguém que respeito e admiro dizer isso ou li um texto na internet falando de corrupção. Será que esses elementos são suficientes para que eu construa uma caixa “corrupto” e aprisione a pessoa lá? Qual é a condição para removê-la dessa caixa? Ou é uma caixa permanente?
Ademais, quanta fé eu deposito no julgamento alheio?
Minha formação superior é em comunicação social com ênfase em jornalismo. Embora nunca tenha trabalhado diretamente com veículos de mídia, estudei seu funcionamento o suficiente para compreender que há um jornalismo ideal – transparente em relação aos próprios interesses e limitações, engajado com a busca pela verdade e independente do aval de forças externas – e há um jornalismo real, realizado por instituições patrocinadas por grandes empresas. Para me informar, tenho preferido buscar veículos que não são patrocinados por corporações, incluindo agências de checagem de fatos – empreendimentos jornalísticos cujo propósito é verificar se o que está sendo dito e compartilhado publicamente possui lastro na realidade.
Um exemplo disso é o Aos Fatos, que avalia informações circulando pela internet e traz documentos e dados de pesquisas para corroborar suas leituras de mundo.
É sabido que, dentre os muitos vieses cognitivos dos quais todos nós somos reféns, está o de acreditar mais facilmente em pessoas em posição de autoridade (que reconhecemos) e em narrativas que confirmem nossa visão de mundo. É ridiculamente fácil nos enganarmos porque queremos acreditar em alguma coisa e bastante dolorido termos que admitir, em especial para nós mesmos, que estivemos equivocados. Creio que essa seja a causa de paradoxos recorrentes, como cristãos defendendo amor e comunhão e, ao mesmo tempo, pedindo por mais armas e pelo expurgo dos pobres.
Não ajuda o fato de vivermos num mundo em que pessoas sem preparo nem cuidado com a verdade como valor fundamental são alçadas ao estrelato como “influenciadoras”, ganhando autoridade e muitas vezes falando para audiências que acabam acatando passivamente o que lhes é dito. Quem se informa sobre as ações do atual presidente e governo apenas a partir de suas lives, tuítes e memes na internet fatalmente estará exposto apenas a uma versão de realidade muito específica e da qual fica cada vez mais difícil de sair, pois questionamento e autonomia intelectual não são valores que vejo defendidos e estimulados nesses meios.
Quando comecei a escrever esta carta digital, pretendia trazer comparativos de capas de revistas e jornais para falar um pouco sobre posicionamento, opinião e como instituições jornalísticas por vezes atuam de forma nefasta. Porém, essa é uma discussão mais longa, então deixarei para outro momento.
Reflexões sobre poder, política e verdade continuarão aparecendo aqui no Olhar de Raposa, pois entendo que sejam essenciais para imaginar futuros melhores – mais livres, honestos e conectados.
Para olhar por aí 🧐
Para ler mais sobre política
A Gama Revista fez um compilado de matérias sobre política, cheias de referências e ideias para ajudar a refletir sobre esse tema.
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Espaço público
Nesta entrevista (também para a Gama Revista), a geógrafa Maria Encarnação Sposito discute o efeito da proliferação de condomínios fechados nas relações urbanas, incluindo nossa percepção de segurança. Bom pra pensar em que cidade queremos viver.
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Sobre comprar apartamentos com dinheiro vivo
Uma sequência de tuítes explica com calma qual é o problema de uma família comprar cinco dezenas de imóveis utilizando dinheiro vivo.
Se algo nesta carta digital te tocou, agradou ou incomodou, me deixa um comentário? E se ainda não assina, fica aqui o convite:
Com carinho,
Tales