🦊 Por uma vida com mais jogos

O que podemos aprender com jogos para viver melhor

jul 27, 2024

Recentemente, voltei a jogar RPG (um hobby que cultivo desde criança), fui picado pelo mosquito da inspiração e comecei a planejar um jogo de cartas e tabuleiro. Quero contar mais sobre esses processos, mas eles ainda estão muito frescos e irrefletidos, portanto decidi requentar alguns textos meus do passado sobre como elementos de jogos podem influenciar nossa vida positivamente.

São três textos em um. Se tu me lê desde a época em que eu escrevia no Medium (até 2019, mais ou menos), talvez já tenha lido esses textos antes, mas escolhi compartilhar mesmo assim porque alguns textos são bons de reler.

Pequeno manual para o jogo da vida

Em resumo, como meus 20 anos de um hobby nerd podem ajudar você a dar sentido pra vida e viver melhor.

Eu tinha 10–12 anos quando meu irmão apareceu em casa com um livro chamado Dungeoneer. Ele já havia comprado uns dois ou três livros-jogo, daqueles em que o leitor participa da história, faz escolhas para o personagem principal e vive uma aventura diferente dependendo do que decidir. Diferente dos livros-jogo, Dungeoneer era um RPG.

RPG significa RolePlaying Game, ou jogo de interpretação de papéis. Um grupo de pessoas se reúne para cocriar uma história, porém com algumas regras. Uma das pessoas será o mestre ou narrador, a pessoa responsável por controlar absolutamente tudo no jogo que não sejam os personagens dos demais jogadores. Os outros jogadores, por sua vez, terão personagens próprios com habilidades, objetivos e características próprias.

De modo geral, a dinâmica dos jogos de RPG é sempre mais ou menos a mesma: quem narra apresenta uma cena e pergunta “o que vocês fazem?”. Os jogadores realizam perguntas para esclarecer as informações sobre o que os personagens sabem ou podem e então dizem o que farão. O narrador responde com o resultado dessas ações e pergunta novamente o que será feito. Assim o ciclo se perpetua durante toda a sessão de jogo.

Sabe o que é incrível nisso? A vida é uma grande sessão de jogo.

O que é um jogo?

De acordo com o curso Gamification Design 2015, realizado pelo Iversity, um jogo tem quatro características:

é uma experiência artificial;
com interação voluntária;
regras definidas; e
objetivos claros.

Esta é uma boa definição, especialmente se desejamos utilizá-la de forma aplicável em processos de gamification. Essa é uma definição que se concentra em como jogos se relacionam com pessoas. Olhando por aí, vida e jogo têm muito pouco a ver um com o outro. Será que podemos encontrar uma definição a partir de como pessoas se relacionam com jogos?

De acordo com Jesse Schell, no livro The art of game design, “um jogo é uma atividade de resolução de problemas realizada como uma brincadeira” (a game is a problem-solving activity, approached with a playful attitude). Já que viver é basicamente resolver problemas o tempo inteiro (estou com fome, o que faço?; estou sem dinheiro, o que faço?; estou carente, o que faço?…), o que diferencia vida de jogo nesta definição é apenas a abordagem brincante.

Gosto muito da definição de Schell porque ela me devolve o poder de tornar a vida um jogo: basta eu abordá-la como se estivesse brincando.

O que os RPGs ensinam sobre viver melhor

Existem pelo menos cinco aprendizados que nos RPGs que podem ser transferidos diretamente para a vida. Eles são: ganhar experiência, montar um grupo diverso, definir objetivos claros, cuidar da energia e fazer alguma coisa.

Ganhar experiência

A maioria dos jogos de RPG começam com personagens fracos que, à medida que vão se desenvolvendo, se tornam mais poderosos e aptos a lidar com desafios maiores. Esse desenvolvimento acontece por meio do XP, a experiência ganhada resolvendo problemas.

Cada sistema de jogo tem suas regras para desenvolver os personagens, mas de modo geral a mecânica é a mesma: quanto mais problemas você resolve, mais você é capaz de desenvolver determinadas habilidades. Na vida, se você deliberadamente pratica um conhecimento, uma habilidade ou uma atitude, você melhora.

A curva de desenvolvimento não é linear. Demora mais / custa mais experiência evoluir aquelas competências que já estão mais avançadas. Quanto mais experientes, mais experiência precisamos para realmente evoluir.

Na vida, esse processo costuma acontecer sem que tentemos exercer qualquer controle. Já pensou que legal se você parasse para refletir sobre quais competências fazem mais sentido para a vida que você deseja alcançar? Oliver Emberton, em seu texto-manual de regras para o jogo da vida (que por anos foi um dos meus textos favoritos na internet), diz duas coisas legais sobre ganhar experiência:

algumas competências são mais valiosas que outras (habilidades em informática podem se desenvolver para vários lados, enquanto quicar bolinhas no joelho tem um escopo mais limitado);
o mais eficaz é a combinação de competências diferentes (conhecimento de negócios + autoconfiança + conhecimento em psicologia = empreendedor, por exemplo).

Mesmo buscando uma combinação de competências, o tempo é um recurso limitado, por isso nenhuma pessoa/personagem será excelente em tudo. É necessário fazer escolhas sobre onde gastar nossos pontos de experiência. Que bom que não precisamos jogar sozinhos!

Montar um grupo diverso

Colaborar dá trabalho, mas abre a possibilidade de combinarmos as competências que desenvolvemos com outras que optamos por não trabalhar. Se eu sei escrever e você sabe criar imagens fantásticas, nossas competências complementares podem nos levar mais longe se trabalharmos juntos.

Lembrando que competências são conhecimentos, habilidades e atitudes, às vezes um grupo precisa daquela pessoa que não sabe nada, mas mantém a energia e a motivação em alta. Ou daquele sujeito altamente especializado em tecnologia, mas que falha um pouco no quesito social. Ou a pessoa que tem contatos poderosos. Ou a pessoa que sabe recitar todos os livros sobre um dado assunto.

O que vai indicar quais são as competências que valem a pena trazer para dentro de um grupo são os objetivos (mesmo o nosso amigo da embaixadinha com o joelho pode entrar num time de futevôlei).

Definir objetivos claros

Quando paraliso frente a situações de complexidade, o que me falta é definir objetivos claros. A vida é essa coisa gigantesca com infinitas possibilidades e nenhuma delas está intrinsecamente correta, por isso é fácil paralisar. O que os jogos fazem para resolver isso é trazer um problema de cada vez: agora é isso que temos para lidar.

Com a vida pode ser igual. A multiplicidade de problemas possíveis continua existindo, mas podemos escolher um problema específico para lidar agora. Pela própria mecânica do jogo (narrador põe a cena, jogador responde, narrador indica o resultado e põe nova cena, jogador responde…), não dá pra fazer muita coisa ao mesmo tempo.

Eu sou o narrador do meu grupo de RPG. Em um jogo recente, os personagens estavam presos em uma ilha tomada por aranhas gigantes e sendo caçados por guerreiros bárbaros. Sem saber para onde ir, a primeira coisa que eles fizeram foi considerar suas opções: ou tentar roubar o barco dos guerreiros e voltar para casa, ou seguir por um portal mágico misterioso. Ambos os caminhos envolviam promessas de perigos incomensuráveis e ainda mais desafios, mas o grupo fez uma escolha. A partir daí, as ações poderiam ser pensadas na direção de resolver o problema escolhido e alcançar o objetivo definido.

Sem um objetivo definido, mesmo que a curtíssimo prazo, é fácil ficar perdido. Isso é particularmente verdade quando estamos cansados e sob pressão.

Cuidar da energia

Muitos jogos de RPG pressupõem que os problemas serão resolvidos com violência, portanto os personagens frequentemente perdem “pontos de vida”, o que os deixa mais vulneráveis frente a novos perigos. Muitos jogos também limitam a quantidade de vezes que os personagens podem usar determinadas habilidades — poderes mágicos, por exemplo.

Isso é bem parecido com a vida. Além da nossa saúde, que precisa ser cuidada com sono, alimentação, calor e afeto, temos também nossa força de vontade, que vai diminuindo ao longo do dia conforme ela é utilizada (também devo esse entendimento ao texto do Oliver Emberton).

Comer direito, dormir bem, proteger o corpo e dar/receber carinho são relativamente fáceis de saber como resolver.

A questão da força de vontade é um pouco mais trabalhosa. Nós gastamos um pouco de força de vontade a cada vez que precisamos fazer uma escolha. Quanto mais difícil a escolha, mais força de vontade gastamos.

O melhor jeito de preservar nossa força de vontade e fazê-la durar mais tempo é reduzir o número de escolhas que precisamos fazer ao longo do dia. A função dos hábitos é exatamente essa: agir sem gastar energia. (Tenho um texto aqui se você quiser aprender mais sobre criar hábitos.)

Fazer alguma coisa

Outro dos meus escritores favoritos na internet é Mark Manson, que escreveu The “do something” principle, um texto sobre como encontrar motivação para agir. (Outro texto que recomendo é meu e chama A arte de agir.) Tanto Mark Manson quanto Gregg Krech, do livro The art of taking action, concordam que o melhor jeito de sair da procrastinação e permitir que a vida aconteça é fazer alguma coisa.

O simples ato de começar algo nos coloca na inércia de continuar fazendo. Não preciso sentar para escrever dez páginas, posso apenas sentar para escrever uma frase e a inércia vai me ajudar a continuar escrevendo.

Nos jogos de RPG isso fica muito claro. Se você não faz nada, nada acontece. Se você faz nada por muito tempo, a experiência de jogo será chata. Eventualmente o narrador fará com que alguma coisa perturbe seu estado de paralisia, assim como de vez em quando a vida vem e nos tira da zona de conforto, mas a coisa louca nisso tudo é que na vida (e às vezes também no jogo) nós ficamos paralisados em situações que são tudo, menos zonas de conforto.

Nessas horas, o jeito é fazer alguma coisa. Se já está fazendo e nada mudou, isso significa que a resposta que estamos oferecendo para o problema que temos em mãos não é suficiente, então precisamos testar outras possibilidades. Se fazer alguma coisa não está funcionando, então temos que fazer outra coisa.

Ah, mas como saber o que fazer? Simples: volte duas casas e relembre o objetivo definido. A qualidade dos objetivos que definimos para nossas ações ditará o tipo e a amplitude dos resultados que podemos almejar. Se meu objetivo é comer, talvez seja suficiente trabalhar em uma cadeia de fast-food que me paga o almoço em hambúrguer. Se meu objetivo é comer de forma saudável, até posso trabalhar nesse mesmo restaurante, mas com a atenção focada na busca por outras ações que me deixem mais próximo de resolver o problema da alimentação.

Um comentário rápido sobre minha própria escrita de alguns anos atrás: eu estava lendo muitos textos sobre empreendedorismo e muito pouco preocupado em reconhecer limitações sociais e institucionais. Vê-se pelo meu exemplo sobre escolher onde trabalhar, como se essa fosse uma escolha simples e livre de complicações adicionais dependendo de múltiplos fatores como classe, etnia e gênero, entre outros.

Do Jogo pra Vida: mais motivação

Ganhe pontos extras de Energia cuidando da sua motivação intrínseca com esses quatro elementos.

Meu irmão é o cara dos jogos. Seja para salvar o mundo ou para vencer os adversários, ele dedica muitas horas se desenvolvendo nos jogos que escolhe e tem muitos amigos com os quais pode contar na comunidade de jogadores. Qualquer jogo que for colocado nas mãos dele será vencido em uma questão de horas.

Jogos são construídos para produzir engajamento e prender a atenção das pessoas por meio da diversão. Quando falamos na Vida Real, assim com iniciais maiúsculas, parece que não há espaço nem para a diversão, nem para a atenção plena, quanto mais para o engajamento.

Mas aí eu paro pra pensar: será que tem como piratear o Jogo da Vida? Desvendar quais são os elementos utilizados para conquistar o engajamento do meu irmão nos inúmeros jogos nos quais ele se envolve e aplicá-los na vida real? Em vez de O Jogo da Vida, pensar Do Jogo pra Vida? Esse tem sido meu projeto atual e a razão pela qual estudo gamification: a aplicação da mentalidade de jogos para tornar coisas que não são jogos em experiências mais engajadoras e divertidas.

A tal da motivação

Estar motivado significa basicamente que nossa energia flui com mais facilidade na direção de realizar determinadas ações. Querer fazer algo é um tempero poderoso na constituição de uma experiência prazerosa e bem-sucedida. Querer fazer nos dá energia para efetivamente fazer.

Se não queremos fazer alguma coisa, provavelmente encontraremos milhares de desculpas até que essa coisa deixe de fazer parte de nossas vidas. Meus dois últimos empregos formais foram assim: eu tanto não queria estar neles que resisti apenas cinco meses em cada um antes de pedir demissão. Os dois empregos, cinco meses; esse foi meu limite.

A motivação pode aparecer de forma extrínseca ou intrínseca. Quando falamos no chicote (punição) ou na cenoura (recompensa), estamos falando de motivação extrínseca, aquela que vem de fora. Ela tem o seu lugar, especialmente quando falamos de resultados rápidos em trabalhos que não exigem pensamento divergente, ou seja, naquelas operações menos criativas.

Neste texto, estou mais interessado em encontrar a motivação intrínseca, aquela que vem de dentro e nos deixa cheios de vontade de agir. Ela está dividida em pelo menos quatro quatro elementos, os quais já escrevi neste texto, ao falar do meu irmão, e vou recuperar agora:

Seja para salvar o mundo ou para vencer os adversários (sentido), ele dedica muitas horas se desenvolvendo (maestria) nos jogos que escolhe (autonomia) e tem muitos amigos com os quais pode contar na comunidade de jogadores (relações).

Sentido

A narrativa é a linguagem da experiência. Nós contamos histórias para dar sentido para qualquer coisa que façamos ou sejamos. Esses dias me perguntaram por que eu seria um “game expert” (aviso: eu não me considero assim, mas fui apresentado nesses termos) e eu precisei contar uma história que oferecesse um sentido para isso.

Narrativas têm início, meio e fim. O que o sentido faz é nos apontar uma direção para esse fim, mesmo naquilo que fazemos pelo prazer de fazer. Eu estudo narrativas e ficções porque acredito que elas são a base da organização do nosso mundo. Eu estudo gamification porque desejo piratear a forma como penso e pratico educação. Eu pratico aikido porque encontro nesta arte marcial uma tradução corporal para a comunicação não-violenta (e porque meu corpo fica mais leve e gostoso, também).

O sentido aponta uma direção para onde caminhar. Sem a percepção desse sentido, caímos sentados de braços abertos perguntando “pra quê?”.

No meu último emprego, quando fui tutor na educação a distância em uma grande universidade particular de São Paulo, eu era responsável por 1500 estudantes. Com que qualidade eu conseguia avaliar as atividades realizadas por eles? Quase zero, meu trabalho era corrigir atividades o mais rápido possível para cumprir o prazo — sem uma verdadeira preocupação com o processo pedagógico —, então não via sentido naquilo.

Maestria

O ciclo da motivação é mais ou menos o seguinte: eu faço algo, tenho sucesso, sinto-me motivado a fazer mais. Ser bom em alguma coisa nos ajuda a querer fazer mais. Esse ciclo pode começar em qualquer ponto. Talvez eu seja reconhecido por um sucesso que nem alcancei ainda (alguém falou game expert?); para dar sentido a esse nome e para ser bom o bastante e merecer o título, eu me sinto motivado a estudar e a praticar.

Eu tenho facilidade para escrever e isso sempre me trouxe de volta à escrita, mesmo após sete anos parado. Eu era bom o suficiente em aikido para que mesmo depois de doze anos sem treinar eu tenha me sentido motivado a voltar. Não fui começar kung fu nem karate porque precisaria iniciar do zero, mas voltei para o aikido e me sinto super bem em saber que já tenho alguma habilidade treinada.

Estar motivado, portanto, parece envolver a prática daquilo que consigo fazer bem. Ou achar um jeito de aprender rápido. Eu sou o tipo de pessoa que desiste frente a desafios que parecem complicados demais, então a coisa mais inteligente que posso fazer é encontrar modos de facilitar meu aprendizado, aumentar a diversão e diminuir a ansiedade frente a um problema complexo, pelo menos até que minha habilidade cresça e eu possa chegar ao estado de fluxo (dois textos meus sobre isso: os 8 elementos do estado de fluxo e caminhos do flow).

No último emprego, eu levei duas semanas para dominar o Blackboard, o ambiente virtual de aprendizagem que utilizávamos. A parte da correção das atividades não levou muito mais do que isso. O desafio da correção, para além do tempo escasso, se mantinha relativamente estável, então logo minha habilidade era muito maior que o desafio e o meu estado de humor era o tédio. Daí não dava, né?

Autonomia

Nós somos criaturas livres num espaço amplo, já disse o Gustavo Gitti no CreativeMornings sobre amor. Quando somos obrigados a fazer alguma coisa, especialmente se não tem sentido e se está além ou aquém das nossas habilidades, a tendência é nos sentirmos presos.

Esse é um elemento básico dos jogos: eles sempre são voluntários. Se eu sou obrigado a jogar, a diversão se perde.

Hoje em dia eu tenho o privilégio de querer fazer tudo o que faço — o que é muito diferente de só fazer o que eu quero. Eu quero treinar aikido, trabalhar com jogo de mobilização social, escrever, jogar RPG, estudar japonês, organizar e participar de grupos de estudos, namorar, encontrar meus amigos, organizar e facilitar encontros e oficinas de escrita.

Isso não quer dizer que não haja coisas chatas no meio desse caminho: tem horas que é um saco fazer divulgação dos meus cursos. Eu reviro os olhos (e quem já me encontrou pessoalmente sabe exatamente a frequência com a qual eu faço isso) quando tenho que lidar com pessoas indispostas (é contagiante, inclusive). Por aí vai: mesmo os trabalhos mais fantásticos da vida terão partes chatas.

Como tutor na educação a distância da grande universidade, eu tinha muito pouco poder de atuação para mudar qualquer questão relevante no processo que estava acontecendo. Essa experiência basicamente indicava que meu lado humano e criativo estava fora da equação, o que para mim foi um grande “não” na hora de decidir continuar trabalhando lá.

Relações

Estar com outras pessoas é um grande motivador. Pessoas que nos entendem, que compartilham nosso senso de sentido, que reconhecem nossas habilidades e são habilidosas por si só.

Dizem por aí que somos a média das pessoas com as quais convivemos, então procuro me relacionar com pessoas que provocam e estendem meus limites de compreensão do mundo. Isso é algo que procuro em qualquer lugar. No caso do meu último emprego, era o principal motivador intrínseco que sustentava minha permanência para além do primeiro ou segundo mês: eu convivia com pessoas fantásticas que me faziam sorrir, aprender e me divertir — dá pra pedir mais?

Como trazer isso tudo para a vida?

Tudo muito lindo, tudo muito gostoso, mas como a gente aplica isso na vida? O que funcionou para mim foi encaixar pouco a pouco práticas, lugares e situações nas quais encontro sentido, maestria, autonomia e relações. Eu não comecei minha vida atual toda ao mesmo tempo.

Há três anos, criei o Ninho de Escritores, um espaço que reunia os quatro elementos. Uma vez por semana, apenas três horinhas preciosas, e fui descobrindo nelas uma via de escape para as coisas que não funcionavam na vida. Minha missão passou a ser trazer mais daquela sensação para meu cotidiano. Achei um outro espaço na vida e voltei a jogar RPG, depois a treinar aikido. Aos poucos, fui recuperando espaços que me nutriam para viver de forma mais motivada.

Comentário: em algumas semanas farão 10 anos que criei o Ninho de Escritores.

O que faz de Zelda um jogo incrível

Ou: como Zelda nos ensina a se divertir sem desistir

Dediquei parte do meu final de semana a jogar The Legend of Zelda: The Wind Waker e estou completamente entregue ao jogo, querendo usar todos os meus minutos disponíveis de vida para continuar jogando. The Wind Waker foi lançado em dezembro de 2002 pela Nintendo, roda em GameCube e Wii U e é parte da série The Legend of Zelda, que desde 1986 já possui dezenas de títulos lançados.

Neste texto, quero observar alguns dos elementos presentes no jogo que o tornam uma experiência incrivelmente engajadora.

De modo geral, o jogo é feito para você se divertir sem desistir.

Essa é uma questão fundamental para mim: como cuidar para que as pessoas não desistam? Escrevi sobre esse tema anteriormente aqui. The Wind Waker faz isso a partir de quatro modos: missão clara e com sentido, desenvolvimento de maestria, esperança de sucesso e autonomia.

Missão clara

Em qualquer momento do jogo, eu sei o que devo fazer. Ir encontrar minha irmã, falar com minha avó, resgatar minha irmã (para isso, preciso de um escudo [que já vi na casa que partilho com a avó] e uma espada [que posso receber com o mestre guerreiro da vila]), encontrar as pérolas mágicas que me darão o poder (e a experiência) para enfrentar a criatura gigante que me derrotou etc.

Durante todo o jogo, a grande missão está clara: salvar a irmã. É para isso que todos os esforços estão sendo empreendidos — mas tenho a leve sensação que em algum momento do meio do jogo terei a oportunidade de salvar o mundo, já que todos os personagens que encontro falam sobre o mal causado pelo retorno do vilão Ganon.

Essa clareza de próximos passos é algo que em geral falta à vida real, por isso jogos são tão sedutores. Mas não é só saber o que fazer em seguida. Qualquer lista de tarefas me dá isso. É também saber por que cumprir esses próximos passos. O trabalho é gratificante (para usar as palavras da designer e pesquisadora de jogos Jane McGonigal, no livro A realidade em jogo) porque tenho ciência do que ele significa a longo prazo.

Os desafios me ensinam a jogar melhor

À medida que avanço no jogo, vou descobrindo como cada comando ou item pode me ajudar nas missões que preciso cumprir, tudo dentro da história.

Ao encontrar o grande espírito da árvore Deku, ela promete me entregar a pérola mágica que preciso para desafiar o poder maligno de Ganon. Entretanto, há uma cerimônia mágica que está prestes a começar e um dos participantes caiu na floresta proibida: ele precisa ser salvo! Para chegar até lá, porém, é preciso voar e eu não sei como. Por isso, preciso ganhar um novo item: a folha mágica, que me permitirá planar (já que sou pesado demais para voar). Para alcançar a folha mágica, porém, será necessário subir até os galhos mais altos da árvore Deku por meio de um rápido desafio que começa a me preparar para controlar meus movimentos no ar. Quando eu finalmente encontro a folha, é hora de usá-la para chegar até a floresta proibida, mas primeiro devo usar o que aprendi em desafios anteriores e mudar a direção do vento com minha batuta mágica, senão a empreitada falhará. E assim a aventura continua…

Cada desafio apresenta um grau de complexidade ligeiramente maior do que os anteriores, algo mais difícil do que já fui capaz de fazer, mas possível a partir de tudo o que aprendi até então. Cada novo item conquistado é utilizado em seguida, tornando-o não apenas útil e necessário como também justificado.

Na vida real, os desafios dificilmente são tão gostosos e oportunos. Eles apenas são. Isso significa que aquela prova de matemática, a burocracia para tirar um visto e a dificuldade para preparar um almoço dificilmente se tornarão habilidades úteis para os desafios futuros.

Sem medo de fracasso

Por trás de The Wind Waker e de basicamente qualquer outro jogo há uma certeza oculta, porém sempre presente: é possível vencer. O jogo foi criado para ser desafiador, mas possível. Quando caio num buraco e meu personagem morre, ele volta no início do labirinto ou da sala (e a “punição” é perder parte de sua energia de vida), pronto para tentar de novo. Falhar é só mais um aspecto do jogo, não é o fim da linha.

A falha é até engraçada: o personagem grita, há um sonzinho divertido que informa “você falhou” e pronto, você está de volta ao jogo, sem maiores tretas ou complicações.

Outro ponto essencial: você sabe perfeitamente quando obtém sucesso em uma missão. Resolveu o quebra-cabeças e abriu a porta que estava trancada? Um som vai anunciar que você conseguiu, a câmera mostrará a porta abrindo e pronto, você saberá que pode continuar. O feedback é imediato.

Se cada vez que eu concluísse acertadamente um exercício de matemática a minha experiência fosse parecida, minha relação com a área de exatas seria muito mais amigável hoje em dia. Aliás, se cada vez que eu errasse um exercício de matemática isso não significasse uma perda permanente de nota no final do jogo, talvez eu tivesse mais disposição para experimentar e eventualmente acertar, em vez de paralisar diante do medo de errar.

Minhas escolhas importam

Uma das partes mais frustrantes de The Wind Waker é logo no início, quando o barco falante que leva você pelos mares informa que algumas áreas não devem ser visitadas ainda. Ele simplesmente dá a volta e vira, impossibilitando o seu acesso. Fora esses momentos, porém, que são raros e estão circunscritos ao início do jogo, você pode fazer o que quiser (dentro de algumas limitações clássicas: é impossível bater nas pessoas [mas quem desejaria fazer isso, né?] ou destruir certos itens [mas de novo, quem…?]).

Se você vai para uma ilha e não consegue remover aquela pedra gigante que impede a entrada de uma caverna, você saberá que pode voltar lá depois. Ou nunca mais voltar e ficar sem aquele item, que não é essencial, mas poderia ser bem bacana.

No mundo do jogo, todas as minhas escolhas importam e impactam minha experiência de jogo. Se eu tento planar de uma ilha para a outra sem mudar a direção do vento, isso significará ter que subir tudo de novo. Se eu enfrento um monstro e insisto em golpes de espada que evidentemente não estão causando nenhum efeito, ou escolho tentar outra coisa, ou provavelmente falharei (mas não antes de um item mágico apitar e me sugerir, de forma ligeiramente críptica, qual é a melhor forma de solucionar o enigma).

Nem preciso dizer que na vida as consequências de algumas das minhas escolhas jamais serão percebidas, né?

Uau, esse acabou sendo um texto bem grande, porém acho que a combinação dos três fez muito sentido. Estou aqui vibrando intensamente com minhas últimas semanas, durante as quais tenho aprendido melhor o japonês, desenhado, criado e encontrado pessoas para compartilhar momentos divertidos.

Obrigado pela leitura!

Com carinho,

Tales