Semana passada, participei de uma oficina de consentimento somático. Um dos meus interesses atualmente tem sido explorar minha relação com o corpo e com meus desejos, então me pareceu apropriado participar. Eu não sabia bem o que esperar, então me inscrevi e fui para descobrir.
Na carta de hoje, quero contar um pouco sobre essa experiência e algumas das reflexões que venho fazendo desde então.
O curso aconteceu em uma casa aqui em São Paulo. Toquei a campainha, alguém abriu e me informou que eu devia descer as escadas pelo corredor lateral até chegar num espaço nos fundos. Lembrei dos tempos da Laboriosa 89, uma casa colaborativa aqui em São Paulo na qual o Ninho de Escritores nasceu lá em 2014.
Antes de 2014, eu provavelmente teria estranhado o ambiente. Como assim um curso acontecendo num fundo de casa? Mas hoje, depois de já ter oferecido cursos na minha sala de estar com o grupo sentado em roda no chão, em biblioteca e até em uma estação de metrô, meus critérios sobre quais lugares são possíveis para o aprendizado foram bem expandidos.
O ambiente para o curso seguiu o formato tradicional que encontro (e muitas vezes utilizo) quando a proposta envolve autoconhecimento e criatividade: círculo, almofadas, uma mesa com frutas e bolos, um objeto no centro da roda para marcar o meio, calças folgadas de tecido fino e conversas sobre energias e gratidão.
Eu não conhecia ninguém lá, mas reconhecer o formato me aliviou um pouco da pressão de processar a novidade. Como tenho dificuldade em operar com tranquilidade em ambientes novos cujas pessoas e expectativas desconheço, qualquer familiaridade ajuda bastante.
Sentei na roda antes do começo da oficina. O convite falava para levar caderno e caneta, caso quiséssemos fazer anotações, e eu praticamente só existo se tiver um jeito de anotar meus pensamentos e sensações, então obviamente estava lá com meu caderninho.
Numa roda de vinte pessoas, eu era o único com papel e caneta.
Um moço que estava ao meu lado reparou no caderno e perguntou: “você é um bom aluno?”.
“Depende, o que é um bom aluno?” respondi, devolvendo a pergunta.
“Me diga você…” ele respondeu. Fiquei um pouco decepcionado, não aprecio quando pessoas me fazem perguntas que envolvem conceitos abstratos e não estão dispostas a alinhar o que esses conceitos significam.
Não lembro bem o que respondi, mas fiquei pensando sobre essa coisa de ser bom aluno. Acho que sou sim o que convencionalmente se chamaria de bom aluno, aprendi bem a obedecer e seguir as regras impostas pelas figuras de autoridade. Mandaram trazer um caderno? Eu trouxe. Garrafinha de água, também.
Na época da faculdade, primeira semana de aula, tivemos trote a semana inteira. Tinta no corpo, cachaça, pegadinhas humilhantes, pedir dinheiro no sinal, essas coisas todas. No último dia, os veteranos nos mandaram trazer uma vassoura e um balde.
Eu levei os itens.
Não serviram para nada além de destacar a propensão para servidão. Até hoje penso sobre isso, nota-se.
“A gente conversa primeiro para brincar com mais segurança”, disse a facilitadora. Adorei essa ideia, acho que faz muito sentido.
Na oficina, consentimento era um elemento essencial de todas as práticas. Quer tocar em alguém? Peça consentimento. Quer dançar uma música? Peça consentimento. Quer? Peça.
E consentimento não é nada menos que um sim convicto. Se tem dúvida, se tem hesitações, se tem um talvez, então a resposta é não. Consentimento de verdade é sim e apenas sim.
“Qual é o seu parquinho de diversões? O que te excita? Com o que você quer brincar?”. Essas perguntas da facilitadora ainda estão ecoando em mim. Durante a oficina, não reconheci nada que eu quisesse com ou das pessoas lá presentes. Em algumas das atividades, nem me envolvi – e fiquei contente por estar em um espaço que reconhece o silêncio como parte da conversa e o ato de observar como participação.
Não sei o quanto eu não saber o que pedir veio de não saber o que eu quero ou da minha dificuldade em me vulnerabilizar. É algo para seguir investigando.
A a oficina foi dividida em dois momentos. Primeiro, mais dialogada e com exercícios práticos de fazer pedidos e responder a eles. Depois, uma parte mais laboratório, em que o grupo ficou livre para fazer pedidos no círculo e, caso aceitos, realizá-los com as pessoas envolvidas.
O formato dos pedidos era sempre o mesmo: “eu posso …?” ou “você pode…?”, e o acordo era que esses pedidos seriam feitos para cuidar de nosso próprio prazer. Não que ofertas para outras pessoas sejam problemáticas por qualquer razão – apenas não eram o foco da prática que estávamos fazendo.
Enquanto quem pede foca no próprio prazer, quem responde estabelece seus limites. Num dado momento, rolou a seguinte interação, enquanto um dos participantes pedia para fazer uma massagem numa moça:
“Eu posso fazer uma massagem em você, pode ser com mais força, ou talvez mais leve…”.
A facilitadora interrompeu: “o que você quer?”. Como o pedido era para o prazer dele, a escolha do tipo de pressão também era dele.
“Mas eu sinto prazer oferecendo prazer”, ele respondeu.
Neste momento a facilitadora explorou a diferença entre prazer direto, aquele que experimentamos com nossos próprios sentidos, e prazer indireto, aquele que é informado pela maneira como nossas ações chegam a outras pessoas. De novo, nada de errado com prazer indireto, mas não era o que estávamos praticando.
Um dos pontos mais marcantes da oficina, para mim, foi considerar que os pedidos e nossas respostas não precisavam passar pela via do significado. Se eu quisesse algo, podia pedir mesmo sem entender o porquê. Se eu não quisesse algo, podia simplesmente dizer não – como posso sempre, mas a oficina estava lá para funcionar como um espaço de segurança para experimentar mais livremente os pedidos e limites, e bem sei que às vezes pedir e dizer não podem ser coisas bem difíceis.
Na segunda parte da oficina, quando as pessoas estavam livres para fazer seus pedidos, imaginei que não receberia nenhum pedido. Eu estava lá com meu caderninho e não havia participado ativamente em parte dos exercícios, então imaginei que ninguém sentiria vontade de conectar comigo.
Eu também não tinha nenhum pedido a fazer para ninguém, então pensei que passaria a última hora do evento observando, anotando e refletindo. Eis que uma das pessoas cofacilitadoras perguntou se eu poderia passar três minutos contando sobre minhas intenções ao participar da oficina e que reflexões estava fazendo. Ponderei por um segundo, buscando ouvir o corpo, e disse sim ao perceber que me senti bem com o pedido. Mais tarde, atribuí esse bem-estar a me perceber visto e reconhecido como parte daquele grupo.
Quando o evento acabou, fiquei um tempo pensando se dava tchau para cada um dos seres humanos lá e também se procurava a pessoa que me fez o pedido para compartilhar o quanto receber a pergunta havia sido importante para mim.
Acabei não fazendo nem um nem outro e saí à francesa, sem dar tchau a ninguém, porque não estava com energia para iniciar interações sociais, por mais breves que fossem. Além disso, não quis me forçar a fazer algo que não estava me sentindo a fim de fazer. Afinal, havia passado quatro horas em uma oficina sobre dizer sim ou não para cuidar dos nossos prazeres e limites, então me pareceu apropriado colocar em prática já ali na saída.
Neste relato-ensaio, me concentrei mais em falar sobre minhas impressões do que propriamente descrever como foi a oficina e o que aconteceu nela.
Talvez no futuro eu participe de outras edições e formatos, e estou muito curioso para saber se eu teria mais vontade de pedir e participar se houvesse outros homens gays no grupo – meu entendimento foi que eu era o único, o que pode ter contribuído para que eu me sentisse menos conectado com as pessoas.
Não sei, não sei. Parte de mim pensa que estou me limitando. Outra parte está reconhecendo esse pensamento e simplesmente deixando-o existir. Por ora, não quero esmiuçá-lo, mas como ele estava presente em minhas anotações durante toda a oficina, achei honesto compartilhar também.
Vou ficando por aqui. Te agradeço pela companhia e leitura, e fique à vontade para responder ou comentar caso queira conversar mais sobre como foi a oficina ou caso tenha te reconhecido em algum dos pontos que discuti.
Com carinho,
Tales