Bom dia!
Quero começar a carta de hoje com um comentário sobre um guilty pleasure: eu adoro filmes de super-heróis. Se for da Marvel, então, não perco um.
Vou te dar uns parágrafos para digerir essa informação.
Enquanto isso, deixa eu comentar sobre essa ideia de guilty pleasure, ou “prazer pelo qual sinto culpa”: acho péssimo que eu tenha internalizado um sistema moralizador que me informa que alguns dos meus prazeres são indignos de serem vividos ou devem ser vividos em segredo porque fariam de mim um ser humano menor.
Como homem gay, por exemplo, por muitos anos tive (e ainda tenho, para ser completamente honesto) vergonha de dizer (quase usei o verbo admitir) que gosto de ser penetrado durante o sexo (e agora estou sentindo uma vontade gigantesca de completar com “mas também gosto de outras coisas”, como se precisasse atenuar a culpa/vergonha de admitir algo tão censurável.
Lembro de uma vez em que estava numa parada gay, em Goiânia, e um amigo me ofereceu uma placa na qual estava escrito “abaixo à passivofobia”. Em outras palavras, “vamos parar de tratar mal quem dá e de enaltecer quem come”. Se hoje, muito mais estudado e melhor resolvido com minha sexualidade, ainda me sinto mal em falar abertamente sobre sexo e o que me dá prazer, dez anos atrás era muito pior. Atento e cuidadoso, meu amigo percebeu e trocou de placas comigo, mas a memória e a reflexão sobre aquele momento seguem comigo.
Obviamente, guilty pleasures não precisam estar apenas relacionados a prazeres e experiências sexuais, portanto voltemos aos super-heróis.
Por que considero filmes de super-heróis como guilty pleasures? De forma geral, porque são histórias que promovem a resolução de conflitos por meio de violência física e subjugação dos dissidentes, além de enaltecerem a ideia de que alguns poucos escolhidos são os únicos que podem lidar com os desafios do mundo e de serem produtos enriquecendo ainda mais empresas capazes de modular os produtos culturais que consumimos.
Preciso fazer outra pausa, mas vai valer a pena, confia.
Quando estudei jornalismo, falávamos bastante sobre publicidade também. Uma das questões que surgiam com frequência era por que os meios de comunicação não utilizavam seu poder de influência para promover pautas mais alinhadas aos direitos humanos. Poderosas como são, poderiam mostrar realidades mais diversas e inclusivas, não? Não?
Pois ocorre que os meios de comunicação, tal qual hoje os influencers, vivem uma delicada balança entre influenciar e continuar recebendo a atenção de seu público. Quando uma marca ou pessoa famosa se comporta de uma maneira que desvia demais das expectativas de seu público, existe a possibilidade de esse público recusar a influência, esvaziando (ou ao menos reduzindo) o poder simbólico da marca ou pessoa.
Poder é uma força dinâmica que, na maior parte das vezes, precisa ser legitimado por outras pessoas para ser atualizado. Se o chefe manda e as pessoas obedecem, ele tem poder. Se o chefe manda e ninguém obedece, ele perdeu respeito e legitimidade e seu poder virou apenas uma fantasia (o que, na realidade, sempre foi).
Por isso, quando falo em empresas “capazes de modular os produtos culturais que consumimos”, acho importante fazer esse comentário. A Disney, responsável pelos filmes da Marvel, tem muito poder nas mãos e tem sido bem sucedida em aumentar seu capital cultural – sua presença e capacidade de influenciar pessoas por meio da cultura –, o que em parte explica por que é tão hesitante em desagradar o público que a legitima, um público em geral marcadamente machista e homofóbico.
Recentemente assisti a dois filmes de super-heróis que não fugiram muito à lógica da violência física como resposta, mas que também levantaram algumas questões interessantes sobre poder: Black Panther 2: Wakanda Forever e Black Adam.
Vou contar um pouco sobre ambos os filmes. Mesmo sem spoilers significativos sobre as histórias, hei de revelar aspectos dos dois. Se tu ainda não assistiu e pretende assistir aos filmes sem ler nada a respeito deles, sugiro retornar ao texto no futuro.
Ao terminar de assistir Black Panther 2: Wakanda Forever, saí do cinema pensando qual seria a melhor resposta caso eu fosse responsável por outras pessoas e precisasse defendê-las de uma ameaça capaz de subjugá-las ou exterminá-las. A resposta do filme é a superação pela violência física, forçando o agressor a reconhecer que ele tem mais a perder do que ganhar caso ataque os meus novamente, correndo o risco de enfrentar inclusive o extermínio que ele próprio teria iniciado.
Às vezes me preocupo com o que aconteceria comigo se estivesse numa situação semelhante. “Ah, Tales, mas tu nunca vai ser o rei de um país ultra avançado tecnologicamente”, alguém pode dizer. Não, mas sou um homem gay e os meus são frequentemente atacados, violentados e assassinados, destituídos do direito de amar ou até existir – há países em que “propaganda LGBTQIA+” é proibida (oi, Rússia e Catar) e há outros tantos em que homossexualidade é punida com a morte (oi, Arábia Saudita).
Aliás, não preciso nem ir tão longe para encontrar algo que possa também te preocupar, caso tu não seja parte do Vale: no Brasil vivemos um risco muito real de rompimento com a democracia e retorno de uma ditadura militar, com pessoas ainda hoje fazendo campanha e acampamento para que isso aconteça.
Nas situações em que alguém se coloca em uma posição de usar força física (ou mesmo simbólica) contra mim e contra os meus, seja ela legitimada ou não, qual é a melhor resposta?
Eu não sei.
Em Black Panther 2: Wakanda Forever, a resposta passou por lutar, matar e, eventualmente, propor uma trégua forçada. No meu mundo ideal, quaisquer diferenças seriam resolvidas com diálogo honesto e contínuo. No mundo real, cada situação é radicalmente distinta e nunca há como saber que tipos de soluções trarão quais respostas, especialmente quando o que está em jogo é a vida também de outras pessoas.
Lembro de muitas conversas com meu padrasto, nas quais ele dizia “no dia em que eu me tornar imperador plenipotenciário do Brasil…” e aí seguia com uma mudança que faria em nossas leis ou instituições. Embora eu rejeite o contexto imperialista necessário para que isso aconteça, acho que esse é um exercício interessante de ser praticado. Se eu pudesse comandar uma nação, como ela seria? O que eu pediria ou demandaria dos meus súditos?
(E, talvez mais importante, quanto tempo eu duraria até que outras pessoas se articulassem para usurpar meu poder ou me deslegitimar até a falência?)
Embora eu queira pensar na não-violência como uma conduta ética necessária para o mundo, sempre me questiono sobre o que acontece quando o embate acontece no terreno da violência. Não há tempo de conversar com alguém que entra armado num clube e dispara um fuzil contra as pessoas. Na prática da comunicação não-violenta, fala-se sobre uso protetivo da força, que é quando aplicamos força sobre outras pessoas para interromper violências. A ideia não é punir, vingar, fazer sofrer, mas interromper a possibilidade de que continuem ameaçando ou causando dor e morte. Gosto muito desse conceito, mas não me escapa a dura realidade de que, nas condições atuais, provavelmente não sou alguém que teria muita força para exercer como ferramenta de proteção.
Esse, porém, é um parêntese maior – e há de ser tema de outro texto.
Em Black Adam, também há uma discussão interessante sobre poder. No filme, quando o personagem titular desperta de um sono de cinco mil anos em um país pobre tomado por uma ditadura, um grupo de super-heróis norte-americanos vai até lá para prendê-lo, pois ele é muito poderoso e, portanto, visto como uma ameaça. Eles não ligam nem nunca ligaram para a ditadura, mas bastou aparecer alguém que, se quisesse, poderia subjugá-los, e pronto, a resposta foi tentar interrompê-lo o quanto antes.
Quando assisti ao filme, não havia percebido o quanto esse é um pensamento imperialista. Até então, estava apenas incomodado com a inação de pessoas super-poderosas perante o sofrimento do povo no país tomado por uma ditadura violenta.
Está aí um outro elemento que forma meu guilty pleasure em relação a histórias de super-heróis: elas quase nunca questionam o lugar dos heróis enquanto pessoas usando seu poder para subjugar aqueles que agem de uma forma diferente daquela que eles acham correta ou adequada.
Normalmente, essa discussão se resume a matar ou não matar os bandidos?
Porém, creio que há uma pergunta mais importante e que normalmente é deixada de lado: qual é o dever dos poderosos? Sei que o Homem-Aranha tem aquela frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, mas na maior parte das histórias essa premissa é utilizada como motor de sofrimento psíquico e culpabilização para o personagem, em vez de ser uma análise profunda sobre como alguém com super-poderes poderia impactar o mundo.
Aliás, um miniparêntese: nós temos pessoas com super-poderes no mundo. Elas se chamam bilionários. E, assim como os canalhas em The boys (outro seriado de super-heróis), são parte importante, se não causa principal, das atrocidades que dizem combater.
Mais do que me imaginar como um imperador plenipotenciário, por esses tempos recentes tenho me perguntado o que eu faria caso tivesse os poderes do Super-Homem. Aquele pacote inteiro: super força, velocidade, sentidos aguçados, voo, invulnerabilidade etc etc.
Com todos esses poderes ao meu dispor, o que eu faria?
Não sei. Apesar de muito tentadora, a ideia de exercer meus valores sobre as outras pessoas porque acredito que eles são melhores é algo que vai contra esses próprios valores… Afinal, como seria possível forçar pessoas a serem livres? Impor respeito e cuidado? No máximo, penso que conseguiria impedir algumas violências mais diretas, mas como lidar com aquelas mais sutis, institucionalizadas e marcadas na cultura de um povo?
Uma outra reflexão que faço às vezes veio do anime Death Note. Nele, um caderno mágico tira a vida de qualquer pessoa cujo nome é escrito. Fico me perguntando: eu usaria um Death Note caso pudesse?
Meus princípios éticos me sugerem que não, mas uma parte de mim genuinamente acredita que o mundo seria um lugar melhor sem algumas pessoas habitando nele. Seria “um caminho mais fácil” ao remover pessoas questionáveis de posições de poder. Ou de qualquer posição.
Entretanto, nesse caso, qual seria a diferença entre mim e legisladores que consideram a existência de pessoas LGBTQIA+ um crime punível com a morte? “Ai, Tales, mas no teu caso tu estaria matando apenas as pessoas que prejudicam as outras”, alguém poderia dizer – eu mesmo já me disse isso mil vezes. O princípio da coisa toda, porém, é igualzinho: eliminar quem pensa ou age diferente daquilo que acho certo.
Enquanto escrevia esse texto, cruzei com uma imagem que articula articula para onde as reflexões têm me levado.
O post diz: “Nós precisamos perceber que questões de saúde mental não são individuais. Eles são um problema social devido ao sistema capitalista. A causa é a pobreza, inflação e falta de comunidades geradas por esse sistema. Não é meramente um caso de desequilíbrio químico em nossos cérebros”.
Mudança coletiva não é algo passível de ser realizado individualmente, não importa quanto poder se tenha à disposição. O caminho para uma transformação genuína é se juntar com outras pessoas e lutar para construir o mundo em que queremos viver, do jeito que queremos viver.
Essa talvez seja a maior falácia – e razão para guilty pleasure – das histórias de super-heróis: a manutenção de que está nas mãos de uns poucos escolhidos a oportunidade de transformar o mundo.
Esse precisa ser um movimento coletivo.
Juntos, talvez a gente consiga até parar de sentir culpa pelos nossos prazeres.
Muito obrigado pela leitura!
Se algo nesta carta digital te tocou, agradou ou incomodou, me deixa um comentário? E se ainda não assina, fica aqui o convite:
Com carinho,
Tales
Também tenho esse guilty pleasure. Sou fascinado por filmes de super-heróis. O que me irrita nesses filmes é que sempre um estadunidense é o salvador, o herói. Mesmo que o filme passe em outros países, é sempre um herói americano que salva todo. Fico também intrigado com a falta de capacidade em se defender que as comunidades dos filmes têm.