Eu estava no ônibus com uma colega do curso de francês. Enquanto conversávamos sobre nossos planos de futuro, contei que no ano seguinte mudaria para São Paulo. Ela respondeu “uau, com trinta anos você terá morado em três cidades diferentes!”. Até aquele momento, eu não havia pensado nas mudanças como algo extraordinário, era simplesmente algo que eu queria fazer, algo que qualquer pessoa poderia fazer.
No texto O narrador, Walter Benjamin fala sobre dois tipos de contadores de histórias: aqueles que viajam e portanto têm muito a contar de lugares diferentes e encontros inusitados, e aqueles que ficam no mesmo lugar e conhecem as tradições e histórias com maior profundidade. Desde que li este texto, me entendi como um viajante, alguém sempre de passagem, pronto a mudar de casa e de rumo ao sabor do vento, tal qual as mulheres do filme Chocolate, fadadas a se mudarem quando chega o vento norte.
Nos quatro anos que vivi em Goiânia, minha segunda cidade, fiz poucos esforços para decorar minha casa. Eu não sabia quando partiria outra vez, mas tinha convicção de que não continuaria morando lá para sempre, então pra que me esforçar em cultivar um lar? Bastava-me um quarto.
Quando deixei Porto Alegre, tentei também deixar para trás porções de mim mesmo. Eu queria me livrar do menino assustado, metódico e preso no armário, mas não percebi que, embora minha mala estivesse vazia, eu sempre iria junto comigo aonde quer que o vento me levasse.
Eu queria me livrar de mim, e embora isso não fosse possível, eu estava certo ao constatar que poderia elaborar um eu diferente em um contexto diferente. O ambiente molda as pessoas, afinal.
Para sair de Goiânia rumo a São Paulo, vendi ou doei quase todos os livros que comprei ao longo de quatro anos. Livros raros, livros caros, marcadores preciosos dos meus interesses e movimentos neste mundo. Aquilo que me atrai e me constitui, de uma forma ou de outra, acaba sempre encontrando jeitos de se manifestar, e no futuro eu me veria novamente procurando pelas mesmas coisas que nessa ocasião escolhi deixar pra trás.
Antes de ir para Tóquio pela segunda vez, talvez para sempre, coloquei objetos queridos em uma caixa e enviei para a casa dos meus pais em Porto Alegre. Lá eles estarão seguros, pensei comigo. Lá, um pedaço de mim estará para sempre conservado, pronto para ser reencontrado quando eu voltar.
Alguns meses depois, minha cidade natal alagou, a água cobrindo mais de 60% de sua área. Meus familiares e amigos passaram por essa tragédia sem consequências permanentes, e em meio aos sentimentos inúmeros, percebi o quão frágil era a ideia de se ter um porto seguro, um porto alegre.
Ao sair de Tóquio para retornar a São Paulo, coloquei numa caixa objetos que juntei com carinho e também presentes para distribuir entre pessoas queridas. Memórias desse ano incrível e fabuloso que vivi do outro lado do planeta. Enviei a caixa por correio aqui para o Brasil e, alguns dias depois, iniciei minha longa viagem de retorno.
Eu cheguei, a caixa não.
“Não é nada”, tentei dizer a mim mesmo. “São apenas alguns brinquedos e presentes, nada demais”, continuei repetindo. E é verdade, perder essa caixa de memórias não há de desviar o rumo da minha vida. Mas é triste. Há uma parte grande de mim que torce para que uma Amélie Poulain decida fazer sua missão de vida me reconectar com essa caixa. Não há nada de valioso dentro da caixa, exceto as histórias e os afetos que foram investidos em cultivar seus conteúdos.
Minto, portanto. Há muito de valioso dentro da caixa.
Com carinho e tristeza,
Tales