Quanta coisa cabe em uma semana
Quanta coisa cabe em uma semana, né?
Peguei um serviço extra de edição de texto para apoiar um amigo que está nos finalmentes da tese de doutorado e, como consequência, a maior parte do meu tempo essa semana está dedicado a concluir o trabalho em tempo. Cheguei a considerar não enviar esta carta hoje, para redirecionar meu uso do tempo, mas preferi cumprir o compromisso que fiz comigo mesmo.
Em paralelo, desde minha última carta digital Brasília foi tomada por uma horda de pessoas depredando espaços públicos, sendo presas, mentindo sobre pessoas morrendo e fazendo comparações descabidas com campos de concentração.
Conversando com companheiras de jornada nos meandros da comunicação não-violenta, compartilhei um par de mensagens que gostaria de transcrever aqui. Para contexto, estávamos conversando sobre a demanda, importância ou necessidade de nomear atitudes e escolhas fascistas.
Vou traçar um paralelo entre homofobia e fascismo para explicar a minha perspectiva a partir de um ponto que é mais próximo de mim.
[1] Entendo que nomes são essenciais para descrever a realidade e ajudam a reconhecê-la de forma compartilhada. Se defino um entendimento comum de amor, de fascismo ou de homofobia, consigo me relacionar com eles. Sem utilizar esses nomes, acho que não conseguiria costurar sentidos compartilhados entre ações e reflexões. Gosto desses nomes em particular para me perceber e reconhecer. Por exemplo, só depois que passei a me entender como homem gay é que comecei a perceber as estruturas e recorrências ao meu redor que produziram experiências que vivi.
[2] Ao mesmo tempo em que nomes descrevem, eles também criam realidades. Se sou "homem", sou homem porque fui descrito assim, mas ser descrito assim cria e reforça (ou rompe com) a ideia do que é e do que não é um homem.
[3] Nunca vivi uma experiência em que nomear outro alguém ou ser nomeado por outra pessoa tenha gerado mais conexão, ainda mais se o nome utilizado tem uma conotação negativa. Ter aprendido o significado de homofobia me ajudou a perceber muitas coisas sobre como pessoas aprendem, sentem, pensam e agem, mas em minha experiência denunciar pessoas como homofóbicas jamais as ajudou a se perceberem assim.
[4] Por conta disso, hesito em nomear pessoas como homofóbicas. Acho importante delimitar a homofobia e percebê-la nas atitudes, discursos e narrativas, porém não vejo vantagem estratégica em posicionar pessoas dessa forma – porque me parece que fica mais difícil de apoiá-las a saírem dessa posição. Nomes cristalizam coisas.
[5] Pensando aqui, acho que entendo a turma do "mas nem todo mundo" ou "não vamos generalizar". Talvez isso venha de um cuidado para não aprisionar pessoas conceitualmente, ou de um medo de serem aprisionadas nessas posições. Que essa turma normalmente seja composta por pessoas brancas de classe média alta heterossexuais não é acidente nem coincidência; como principais beneficiários dos privilégios desses aprisionamentos de outros, o medo de sofrer o mesmo me parece significativo (e em nossa sociedade punitivista, acho que é um receio até bem lúcido).
[6] Tudo isso para dizer que me importa nomear fascismo porém não quero nomear fascistas. Quero tratar nomes como verbos: transitórios, dançantes, capazes de mudança. Quando nomeio pessoas, percebo que tenho dificuldade de fazer ou permitir esse movimento. Quando nomeio ações, pensamentos, discursos e narrativas, acho que a brecha para deslocamentos é um pouco maior.
Daí, pensando sobre como esse movimento se organiza na prática, adianta na conversa complementei:
Penso que uma educação crítica e compassiva esteja na base do que é necessário para melhorar a sociedade que temos. Entendo fascismo, homofobia, racismo etc. não como fatos e sim como lentes com as quais podemos (e devemos) olhar para o mundo, modos de entender e classificar o que existe para que possamos agir em uma direção ou em outra. Nesse sentido, concordo que nomear é importante. Essencial, até.
O que não quero perder de vista é que essas são categorias de análise temporárias. Tenho muita facilidade em repetir a ideologia fascista/homofóbica da dominação e erradicação quando começo a pensar que eles precisam ser corrigidos caso queiram viver entre os meus. Perceba que não estou dizendo que não quero ou não vou nomear atitudes e escolhas como fascistas ou homofóbicas. O que me importa, na construção do mundo em que quero viver, é que eu não utilize as mesmas estratégias daqueles dos quais quero interromper o poder. E eu não sei qual é o jeito de fazer isso.
Da mesma forma, eu não sei o que é, na prática, "estabelecer o que aceitamos ou não como sociedade." Partilho reflexões com pessoas que, como eu, estavam cientes e abertamente conversando, escrevendo e alertando sobre o perigo de um Bolsonaro existir impune enquanto deputado homofóbico desde muitos anos de começar a corrida presidencial. Se dependesse de mim, ele não teria acesso a poder político. Não depende de mim, depende de toda uma articulação de sociedade – articulação essa que não sei como pode se dar senão no esforço contínuo e cotidiano de pessoas que estejam dispostas a partilhar um olhar crítico e compassivo.
Passei os últimos trinta minutos reelaborando essa mensagem sem encontrar as palavras que melhor traduzem o que penso a respeito desse momento. Em parte porque ainda não as tenho e nem acho que as terei de forma definitiva. Estou grato por hoje encontrar neste grupo mais pessoas dispostas a movimentar essa conversa e reflexão 😊
E mais ainda:
O que me parece um caminho – longo, senão infindável – é o de apresentar alternativas, exemplos, contato. Ajudar a pensar criticamente, onde e tanto quanto for possível. Criar espaços seguros de escuta – o que é diferente, sabemos, de concordância, mas ninguém se abre pro outro enquanto se sente ameaçado e a base do fascismo é sentir-se amedrontado pelo fantasma do Outro. Se digo "tu está sendo fascista", não vejo possibilidade de uma mudança acontecer. Se vou por esse outro caminho, vislumbro uma pequena, minúscula, infima, quase insignificante brecha, por onde talvez um tantinho de ar possa fluir. Um nadinha, mas na minha imaginação, melhor do que nada.
Isso tudo sem negar o uso da força para interromper abusos e violências, razão pela qual acredito que é necessário ocupar posições de poder e visibilidade e fazer o trabalho de formiguinha onde tivermos possibilidade (e condição)
(…)
Quando falo em educação crítica, penso em aprender, praticar e compartilhar esse processo, sabe? Porque eu não tenho respostas e, nas várias vezes em que tive, acabei repetindo estratégias de controle, colonialismo (quero transformar o outro!) e afins. Estratégias que não criam o mundo em que quero viver – talvez criem para mim e para os meus, mas há uma parte de mim que quer que sejam todos meus, essa parte danada. E aí me quebra e revela o quanto sou incoerente.
É também por isso ☝️ que hesito em usar nomes para classificar pessoas. Porque eu gosto deles. Porque eu sou bom com eles (sou escritor, lembra? Nomear as coisas é parte do meu ofício). Porque eu com muita facilidade acredito neles e passo a encará-los como verdade. Muitas vezes, o mapa me seduz mais que a realidade. 😥
Essas reflexões vêm como continuidade de uma série de outras que, inclusive, já compartilhei em cartas digitais anteriores:
Esse é, claramente, um tema que continuará aparecendo aqui no Olhar de Raposa.
Entretanto, quando olho para isso, reconheço a pequenez de ter passado os últimos dias refletindo também sobre não monogamia, ciúmes e inveja nos meus relacionamentos afetivos atuais.
Esse é um tema sobre o qual quero dedicar uma carta inteira ou até mais, porque suspeito que também será um tópico recorrente no futuro, mas em resumo, percebi que quando me relaciono sexualmente com pessoas, uma parte de mim se agarra aos ensinamentos monogâmicos de que a única possibilidade de conexão existe se as pessoas se relacionarem apenas comigo, e quando aprendo que, como eu, elas também se relacionam com mais pessoas, toda uma série de sentimentos turbulentos borbulham em mim.
Ao que parece, na raiz desses sentimentos turbulentos está a ideia de que estou perdendo algo, deixando de viver algo que seria bom. Esses sentimentos afloram mais forte quando estou mergulhado em trabalho, como nesta semana.
O que quero: sentir-me feliz quando aprendo que pessoas que quero bem estão vivendo experiências de prazer, mesmo sem mim.
Como acho que posso alcançar isso: tirando o foco de atenção do meu umbigo (como eu me sinto quando aprendo sobre a felicidade de outras pessoas) e genuinamente olhando e apreciando a experiência das outras.
O difícil é lembrar disso no meio dos turbilhões emocionais.
Quando me percebo atentando para esses temas, quase esqueço que minhas aulas de japonês voltaram nesta terça-feira – agora estou no nível intermediário, o que representa um avanço do grau de dificuldade dos estudos e, sinceramente, um aumento na minha empolgação, pois percebo meu crescimento de habilidade com o japonês nesses últimos meses.
Vida é essa mistura doida, né?
Sinto muito por não organizar meus pensamentos de forma mais cuidadosa nesta semana, te agradeço por estar aqui comigo.
Com carinho,
Tales