Olhar de Raposa

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Relacionamentos de ficção

talesgubes.substack.com

Relacionamentos de ficção

Tales Gubes
Jul 30, 2022
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Relacionamentos de ficção

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Bom dia,

Eu sou uma daquelas pessoas que responde de verdade quando alguém lança um “oi, tudo bem?”. Aliás, tenho o costume de compartilhar mais do que seria o socialmente esperado em determinadas situações.

Talvez por isso, nesta semana durante uma reunião de trabalho, quando uma cliente contou que estava grávida, eu achei perfeitamente normal, enquanto minha colega ficou encafifada que a moça estivesse compartilhando essa informação de forma tão aberta e indiscriminada. Eu não entendo nem concordo com a ideia de tratar pessoas de formas distintas dependendo dos papéis sociais que ocupam.

Se vou tratar um ser humano com respeito e deferência, não será porque se trata de um juiz ou de um policial e sim porque é algo que eu queira oferecer a um outro ser humano. Aplico a mesma lógica para considerar a maneira como converso com qualquer pessoa, o que costuma me deixar mais leve, pois não preciso ficar pensando sobre qual ficção levar em conta antes de me dirigir a alguém.


(Embora, para ser honesto, eu às vezes fique me questionando se, justamente por ser tão aberto e despretensioso, já não causei alguns mal entendidos e frustrações… É provável que sim.)


Em algum nível, todas as relações são ficcionais. Uma amizade ou um casamento são histórias que contamos sobre duas ou mais pessoas. Elas ganham força à medida em que as pessoas envolvidas confirmam e reforçam essas narrativas, mas nada além da reinterpretação e atualização contínua delas as sustenta.

Ah, mas casamento tem um papel lá confirmando!

Sim, e daí? Se eu sair para comprar cigarro e nunca mais voltar, o que essa história de casamento terá de real além da memória de um acordo realizado no passado e nunca mais atualizado?

Perceba que não estou dizendo que as pessoas não entram nos papéis das histórias que contam de si mesmas e das outras. Pelo contrário, a gente faz muita coisa e deixa de fazer um tanto de outras coisas com a intenção de encaixarmos nas histórias que contamos e que contam sobre nós mesmas.

Inclusive, eu acho que muito da minha capacidade de confiar em outros seres humanos depende de eles cumprirem acordos que tenham firmado – histórias de que, num determinado futuro, agiriam de uma determinada forma. E é aqui que as coisas começam a ficar complicadas.

Certa vez briguei com um amigo porque ele, quando viajava, ficava com outras pessoas a despeito de se manter em um casamento monogâmico. Para ele, era conveniente continuar casado, porém o marido encerraria o relacionamento se soubesse dessas experiências.

Em outra ocasião, fui engolfado por uma crise de ciúmes enquanto estava viajando, longe de um moço com o qual havia começado a me relacionar poucos meses antes, e propus a monogamia como uma forma de restringirmos nossa liberdade de estar afetivossexualmente com outros seres humanos. Com base neste acordo, passei o restante da viagem sem me envolver de forma significativa com outros homens em nome da expectativa de que isso fizesse nosso relacionamento perdurar. Spoiler: não funcionou e até hoje não acredito que o acordo tenha sido inteiramente cumprido pelo outro humano envolvido.

Nunca saberei e, francamente, não importa.

Porém, dizer que não importa não é que eu não me importe, pelo contrário, me importei o suficiente para carregar isso como mágoa por algum tempo e ainda hoje lembrar e colocar em palavras. Dizer que não importa é reconhecer que eu jamais saberei “a verdade” sobre o que aconteceu enquanto eu não estava com o meu então namorado. Digo mais: eu jamais saberei de verdade o que aconteceu em qualquer tempo ou espaço no qual eu não estivesse presente. É provável que eu nem saiba direito o que aconteceu onde e quando eu estava presente, também, tão limitada que é a capacidade humana de absorver a realidade por inteiro.


Na minha busca por lucidez, venho tentando reconhecer quais são as narrativas que quero manter na vida, pois elas dizem sobre o que estou disposto a fazer e deixar de fazer enquanto vivo.

A monogamia, por exemplo, é uma história que não quero repetir, pois ela se sustenta em limitar possibilidades de afetos e experiências entre pessoas em nome de uma pretensa segurança que, sabemos, é fictícia. O mesmo vale para o capitalismo e o colonialismo, bem como quaisquer outras histórias que se pautem na dominação e exploração de outras pessoas.

As histórias que quero manter na vida são aquelas que, para tomar uma expressão que aprendi com a Mari Pelli, geram mais vida, mais possibilidade, mais encantamento, mais modos de fluir e fruir o fato de estarmos vivos – histórias que me convidem a viver e cuidar melhor de mim e das pessoas que amo.


Sugiro dar uma olhada 🧐

Algumas das coisas para as quais andei dedicando atenção.

Mario e as ilusões da mente

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Cheesemeister 😷💉💉💉 @Cheesemeister3k
"Mario games teach us that even if something is essentially the same, psychologically it can be completely different. This example is very easy to understand."
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4:40 AM ∙ Jul 14, 2022
168,532Likes22,766Retweets

Tradução livre: “Mario nos ensina que mesmo se algo for essencialmente a mesma coisa, psicologicamente pode ser completamente diferente. Este exemplo é muito fácil de entender”.

Assombro

Outra vez recomendo a newsletter de O lugar, um grupo/comunidade de estudo e prática sobre budismo com uma perspectiva engajada. Eis um trechinho do que compartilharam semana passada:

Eu acredito muito em um trabalho muito vinculado ao amiudamento das questões cotidianas. Trabalhar com quem está na minha esquina, trabalhar com quem está na encruzilhada mais perto de mim, trabalhar com quem está na minha praça. É perceber que por mais que isto aqui esteja uma merda absoluta, por mais que a gente tenha um Estado assassino, genocida, vivendo esse momento tenebroso, eu não consigo acreditar numa política que não seja poética e nem numa poética que não seja profundamente política. Então a construção cotidiana de sentido de vida está acontecendo na minha esquina. Ela está acontecendo na esquina de cada um. Eu não sei o que vai acontecer no futuro – eu não tenho a menor ideia, eu não sei nem se tem jeito para isso tudo, mas eu acredito numa pedagogia do assombro.

Casamento no olho dos outros é pimenta

Li uma notícia (em inglês) sobre um sujeito nos Estados Unidos que é parte do congresso, votou contra proteção federal ao direito de casamento entre pessoas do mesmo gênero e, três dias depois, celebrou o casamento do filho com outro homem. Como confiar em alguém que diz estar feliz em receber o novo genro na família, mas não age em defesa da possibilidade desse casamento acontecer em qualquer lugar?


Obrigado pela leitura!

Com carinho,

Tales

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