Estou assistindo a um anime (desenho japonês) chamado Spy x Family. A proposta é a seguinte: um espião conhecido como um mestre dos disfarces precisa se infiltrar em uma escola de elite. Para isso, ele adota uma criança (que ele não sabe, mas possui a capacidade de ler a mente das pessoas) e arranja um casamento de fachada (com uma assassina de aluguel). Os três escondem quem são enquanto tentam viver como uma família amorosa.
O anime é uma mistura bem equilibrada de comédia, ação e drama, com personagens cujos comportamentos são marcadamente exagerados – algo típico nesse tipo de desenho, mas que não prejudica a minha conexão com a história contada.
Embora o objetivo do espião que protagoniza a história seja concluir sua missão e a história avance conforme novas etapas do plano são concluídas, o verdadeiro fio condutor é o que acontece quando três pessoas se unem para fingir que são uma família, assumindo e ensaiando seus papéis o melhor que conseguem. Eles são fingidores, sabem que o que vivem é falso, porém, enquanto vivem a mentira de serem uma família, as experiências que estão vivendo são reais.
E essa é a história de todos nós.
No livro Problemas de gênero, a filósofa Judith Butler apresentou o conceito de performatividade, que diz respeito às ações que ao mesmo tempo repetem certos padrões e os criam enquanto são repetidos. Butler falava sobre gênero: as noções de masculino e feminino, que são essas repetições de um ideal para o qual não há uma forma inicial. Homem macho forte inteligente corajoso barbudo hoje sem mas há alguns séculos com peruca hoje sem mas há alguns séculos com salto hoje usando azul mas há alguns séculos cor de homem era rosa.
Podemos usar esse conceito para pensar além do gênero. Praticamente tudo o que vivemos é uma ficção, uma mentira da qual participamos porque não há um referencial real. Há apenas as histórias que inventamos sobre aquilo que estamos vivendo. Por exemplo, o que significa ser pai, ser mãe, ser filha? Esses são papéis que se constroem em relação, porém carregam expectativas que vêm não só de experiências anteriores como também do imaginário que outros humanos carregam sobre esses papéis.
Esses papéis que assumimos trazem uma sensação de segurança e conforto, uma ideia de que saberemos o que fazer porque basta seguir o roteiro previsto. Há na base dessas ficções a esperança de que se fizermos tudo como devemos, evitaremos problemas. Parando para refletir, é bem uma forma de pensamento mágico.
A realidade é que a vida não segue nossos planos e, portanto, com frequência desafia ideias preconcebidas sobre como as coisas deveriam ser. Chove no aniversário, um carro nos atropela na esquina onde demos nosso primeiro beijo, a receita termina com um gosto azedo. Ademais, nem todas as pessoas conseguem disputar os papéis nos quais são colocadas – desafiar as normas e expectativas de outros humanos é algo que demanda não apenas intenção e força de vontade, como também poder.
É por isso que gostei tanto da ideia de Spy x Family. Os personagens sabem que estão participando de uma ficção e ainda assim continuam porque entendem que essa ficção pode dar a eles o que estão procurando e então algo a mais, verdadeiro, bem-vindo, porém inoportuno.
Lembro de Jorge Drexler cantando:
Quien no lo sepa ya, lo aprenderá [Quem ainda não conhece, vai aprender] De prisa [Rápido] La vida no para, no espera [A vida não para, não espera] No avisa [Não avisa] Tantos planes, tantos planes [Tantos planos, tantos planos] Vueltos espuma [Viram espuma] Tú, por ejemplo, tan a tiempo y tan [Tu, por exemplo, tão a tempo e tão] Inoportuna [Inoportuna]
A vida não é como queremos.
Arrogante da minha parte falar por todos nós; reformulo. A vida não é como eu queria que fosse. O problema começa com nem saber direito como queria que a vida fosse. Só sei que algo falta, algo está fora de lugar. Com frequência, acredito fortemente que esse algo sou eu, uma peça desencaixada num mundo que já funciona como um reloginho.
Dois segundos prestando atenção ao meu redor e vejo que não, esse pensamento está profundamente equivocado, mas meio instante distraído e volto a acreditar em uma série de ideias que, assim como outros papéis que assumi ao longo da vida, me vestem e amarram: não sou bom o bastante, não sei interagir com outros humanos, não tenho o que conversar com alguns parentes, nunca viverei feliz, não tenho o que dizer para que pessoas se interessem pelos meus escritos etc.
Nessas horas, lembrar que sou um agente infiltrado me ajuda a respirar com calma.
Ou respirar com calma me lembra que sou um agente infiltrado, o que também é útil, porque aí posso olhar por detrás das miragens em busca do que há de verdadeiro e honesto na vida: os afetos, os valores, as necessidades.
Como tantos, ainda em processo, e sempre com carinho,
Tales