Não sei dizer quando meu medo da rua começou, mas consigo apontar momentos em que ele cresceu: ao ser assaltado a 50 metros de casa; ao passar quase um ano e meio pouco saindo do meu apartamento para evitar uma pandemia. Consigo também localizar saídas em que me senti bem: indo para uma festa a pé em Goiânia; pedalando pelo meu bairro quando criança. Ou instantes em que também me senti apreensivo: em meio a carnavais ou centros urbanos – aglomerações em geral.
Convivo com esse medo há alguns anos, embora esteja mais consciente dele agora.
Conversando com amigos, lembrei que muito desse medo é alimentado pelo imaginário de violência que povoa minha relação com as cidades por onde passo. A ideia de sair de casa e ir passear pela cidade me soa insegura porque me embebi de narrativas sobre assaltos e perigos. O fato de eu saber que esses perigos existem e são possíveis, não ajuda.
Recentemente escrevi sobre incerteza. Também há pouco, li que incerteza e insegurança são coisas distintas e que é importante entendermos essa diferença para que não combinemos as duas de forma desproporcional. Há muita coisa na vida que é claramente insegura, mas há tantas outras que não o são.
Sair para a rua num grande centro urbano brasileiro traz riscos potenciais, mas eles não são certezas. Ainda assim, essa insegurança tem contribuído para que eu fique mais em casa, vivencie menos as cidades por onde passo e cultive uma ideia de morar em outros lugares (Japão incluso) onde o medo ainda não faça parte do meu imaginário.
Não faz muito tempo, incluí uma segunda senha para acessar meus aplicativos no celular. Desta forma, caso eu seja assaltado, minhas contas de e-mail (que regulam minha vida digital) e de banco (que são a base da minha vida financeira) ficarão um pouquinho mais seguras. Depois que fiz isso, me peguei pensando se estou disposto a viver a maior parte do tempo colocando o dobro de senhas para acessar meus aplicativos para que, na ocasião em que algo possa sair do seguro e eu seja assaltado (algo que até hoje aconteceu três vezes em 35 anos – se isso é muito ou pouco, creio que depende de quão naturalizado está para cada um o absurdo da violência), eu tenha menos a perder. Por ora, minha resposta é sim.
Eu achava que o medo era algo pontual, que aparecia somente quando percebo sinais de atenção: pessoas olhando muito atentamente para mim ou para os arredores, locais desertos durante a noite etc. Hoje estou percebendo como o medo e a insegurança parecem informar a maior parte da minha vida, inclusive quando recuso um convite ou uma ideia sem nem bem saber o porquê. Eles estão ali sussurrando sobre o que acho que quero ou deixo de querer.
Não quero viver seguindo os ditames do medo.
Enquanto não descubro como deixá-lo inteiramente de lado, o jeito será ir para o mundo ciente do medo e celebrar as vezes em que eu conseguir superá-lo.
Um texto: Uncomfortable is not unsafe, Chris Guillebeau
Neste texto (em inglês), o autor, que viajou por todos os países do planeta, conta que as vezes em que se sentiu inseguro não foram as mesmas em que se sentiu desconfortável com o não saber como lidar com as circunstâncias. Ele ser um homem branco estadunidense com certeza é parte disso e ele não toca nesse assunto no texto, mas isso não anula de todo o argumento.
Uma música: Trouble is a friend, Lenka
Ela canta “problema é um amigo, ele seguirá onde quer que você vá”, “e não importa o que eu o alimente, ele continua crescendo”. O problema sobre o qual ela canta, para mim, é o medo.
Uma obra: O grito, de Edvard Munch, 1893
Quando fiz especialização em Expressão Gráfica, passei muito tempo desenhando a forma do quadro O grito de novo e de novo. Agora, quando lembrei do quadro, peguei-me pensando que talvez a minha narrativa de vida seja, de novo e outra vez, a de enfrentar os medos para conseguir viver bem. Se é isso mesmo, não sei, mas guardarei essa ideia para pensar um pouco a respeito.
Uma memória: primeira vez sozinho no apartamento
Eu estava na quinta ou sexta série do ensino fundamental e, por alguma razão, pela primeira vez ficaria algumas horas sozinho no apartamento onde meu padrasto morava. Lembro-me de olhar cada canto do lugar, inclusive embaixo de armários e por trás de portas, buscando sinais de perigo. Não encontrei nada, deu tudo certo, mas o medo estava lá comigo.
Vou parando por aqui porque estou lembrando de várias outras situações em que o medo falou bem alto comigo e eu aquiesci. Tenho histórias de coragem, também, mas não vou evocá-las por agora porque quero continuar encarando o medo assim, de perto, e descobrir o que posso aprender com ele – e se ele pode aprender a falar mais baixo.
Obrigado pela leitura :)
Obrigada pelo texto e pelas referências! Eu também gosto do quadro do Salvador Dalí, chamado "A face da guerra" que, a meu ver, fala sobre o medo.