O ano era 2012 e eu estava nos Estados Unidos fazendo intercâmbio como parte do meu mestrado. O professor designado para me orientar era um homem gay por volta dos sessenta anos que nos próximos meses se tornaria uma referência para o tipo de homem adulto que eu gostaria de me tornar: inteligente, acolhedor e desprendido. No tempo em que convivemos, ele me contou muitas histórias sobre sua vida, inclusive uma que gostaria de compartilhar hoje.
Desde jovem meu professor se compreendeu gay e viveu ativamente sua sexualidade por meio de inúmeros relacionamentos e experiências, muitas delas marcadas pela necessidade de segredo e silêncio que caracterizam a vivência de tantas pessoas que se identificam no espectro queer. Por volta dos seus trinta ou quarenta anos, ele conheceu uma pessoa por quem se apaixonou e com quem passou a se relacionar. Para a surpresa de todos à sua volta, era uma mulher.
Eles passaram os próximos vinte anos juntos, casaram e tiveram filhos. Eventualmente, conforme o relacionamento foi dissolvendo seu lado sexual e atracando num formato mais próximo ao de uma amizade tradicional, eles encerraram o casamento. Continuaram amigos e, junto aos filhos, famÃlia.
Desse ponto em diante, meu professor voltou a se relacionar com homens. Durante toda a sua vida, continuou se identificando como um homem gay, mesmo quando casado com sua parceira. Para ele, a surpresa de apaixonar-se e envolver-se intimamente com uma mulher não era suficiente para dissoadi-lo da clareza de identidade que tinha.
Nem preciso dizer que muitas pessoas ao seu redor desacreditaram sua homossexualidade, insistindo que se ele foi capaz de se apaixonar por uma mulher, na verdade era no mÃnimo bissexual.
Muitas pessoas acreditam que palavras existem para explicar a realidade de forma definitiva e imutável, em vez de servirem como aproximações para algo que jamais pode ser inteiramente resumido. Isso é algo que toda pessoa que almeje brincar com a arte da escrita precisa saber: palavras não são suficientes.
A mesma coisa é verdade para identidades. Elas ajudam a esboçar contornos para as pessoas que conhecemos e para os modos como nos reconhecemos, mas são apenas isso, guias rápidos. No momento em que uma identidade se coloca no caminho daquilo que estamos sentindo ou vivendo, não é a realidade que precisa se curvar à identidade, muito pelo contrário.
Lembrei dessa história após ler o texto Transitions (em inglês), de
, sobre como nós continuamos mudando ao longo da vida, inclusive em termos dos nossos interesses e vontades sexuais.Enquanto escrevia o texto, ouvi essa música e achei a letra pertinente.
A música canta:
Ela vai se apaixonar outra vez
De novo e de novo
E até sem querer
E perceber que não são os outros
É perceber tudo que se é
Por tanto tempo teve que viver
Na sombra do que os outros vão entender
E não há certo
E não há errado
É sobre ser
Tudo que se é
E com essas palavras, encerro minha carta de hoje.
Com carinho,
Tales
Nossa, Tales, que texto singelo e verdadeiro. A gente tenta encontrar palavras para se entender no mundo, mas elas nem sempre são suficientes.