Tenho refletido muito sobre como minha cabeça funciona. Sempre cultivei o hábito de olhar para dentro, mas especialmente depois de descobrir minha aphantasia, passei a investigar os modos como meus pensamentos e sentimentos tomam forma.
O que é aphantasia?
Escrevi sobre essa descoberta da aphantasia no Instagram em setembro de 2019. Segue o texto na íntegra:
Ontem confirmei que existe um nome para uma característica minha: não consigo visualizar coisas com minha mente. Um elefante. Uma maçã. Um dinossauro correndo pela sala. Aquelas meditações com praias, florestas, eus do futuro.
Quando leio livros, não imagino as coisas acontecendo. Eu entendo conceitualmente. Nunca me espantei, por exemplo, com personagens de filmes que "são diferentes do que eu havia imaginado". Porque eu não havia imaginado.
Quando penso em uma estrela, não visualizo nenhuma estrela. 🌟 Eu apenas penso verbalmente na ideia estrela e sei como ela funciona porque tenho repertório conceitual.
Quando tento desenhar, não consigo antecipar as relações entre traços que ainda não existem. Desenhar copiando modelos até funciona, é uma questão olho-mão... Desenhar de cabeça é sempre uma aventura rumo ao desconhecido que aos poucos vai ganhando forma.
Estou feliz em saber que isso existe. Três décadas sem nem saber que minha maneira de interagir com o mundo era diferente daquela da maioria das outras pessoas. Uau 💕
Vozes daninhas
Percebi, por exemplo, que não tenho uma voz falando o tempo inteiro comigo. Minha mente é razoavelmente silenciosa na maior parte do tempo.
O que tenho são ecos de vozes que ouvi de outras pessoas e ensaios do que eu falaria ou gostaria de ter falado. Esses ecos se costuram em ideias já enraizadas em outras partes de minha mente, em geral julgamentos moralizadores e narrativas de dominação e controle, e aí é todo um trabalho de jardineiro da mente para podar e remover essas vozes-ervas daninhas.
Ofereço alguns exemplos.
Chefe
No trabalho, entrei em um novo projeto. Como sempre acontece, uma série de passos são necessários para que eu receba acesso a todas as ferramentas que utilizarei. Já passei por esse processo outras vezes e sei que com frequência, por inúmeras razões, etapas são puladas, esquecidas ou dão errado. Por isso, pedi para que o processo fosse iniciado antes do prazo.
Como sempre acontece, houve um erro. Em resumo, meu contrato informava que eu trabalharia não apenas em inglês, mas também em espanhol, um idioma no qual eu não presto serviço. Quando informei ao gerente sobre isso e pedi que o contrato fosse corrigido, recebi sua resposta dizendo que estava ocupado, que aquilo não era urgente, que seria resolvido quando ele tivesse tempo sobrando e que eu precisava respirar para me acalmar.
Ele tinha razão, precisei respirar muitas vezes para não responder atravessado.
Quando li aquela mensagem, me enchi de raiva, mas não só de raiva. Alguns novos pensamentos ganharam forma dentro de mim, incluindo a ideia de que aquele gerente é um imbecil que não sabe se comunicar. Junto com esses pensamentos, vieram as vozes.
Desde aquele momento, já conversei mentalmente com a mensagem diversas vezes, elaborando formas distintas de respondê-la. Nos momentos em que pensei em comunicar algo para esse gerente, minha mente produziu respostas possíveis – todas elas baseadas na interação com esse personagem do homem raivoso que não entende como se comunicar efetivamente com as outras pessoas.
Afeto
Desde que vim para o Japão, minha comunicação com o Ayrton – que habitualmente menciono como namorado, mesmo que não utilizemos oficialmente essa alcunha – tem acontecido nas manhãs e noites. Quando acordo já é início da noite no Brasil. Quando ele vai deitar é início da tarde aqui. Às vezes falamos mais, às vezes falamos menos, a depender do que estamos fazendo cada um em seu lado do planeta.
Nós mantemos essa qualidade de comunicação porque queremos. Não temos nenhum acordo estabelecido sobre termos que conversar todos os dias, mas o fazemos porque é algo que nos nutre.
Tenho me relacionado afetiva e sexualmente com outras pessoas aqui em Tóquio. Nos três anos em que convivemos próximos em São Paulo, Ayrton e eu conseguimos manter uma conversa aberta sobre as pessoas com as quais flertamos ou ficamos. De todas as pessoas com as quais me relacionei até hoje, sem dúvida ele é quem mais me ofereceu abertura e tranquilidade para falar a respeito dos meus desejos e experiências com outras pessoas, me ouvindo com curiosidade e interesse.
Entretanto, no passado convivi com outras pessoas cujas reações foram menos abertas e acolhedoras. Pessoas que, ao saberem que interagi sexualmente com outros humanos, ficavam amargas e buscavam formas de “competir” comigo. E também pessoas que, na tentativa de reforçar um acordo monogâmico, me xingavam se eu ousasse conversar com outros homens. Sem contar que, no passado e no presente, a maioria dos artefatos culturais propõem e defendem um viés monogâmico e romântico como única possibilidade de afeto verdadeiro entre humanos.
Por conta disso tudo, sempre que penso em compartilhar com Ayrton sobre alguma pessoa com a qual eu tenha ficado, imagino respostas tenebrosas, violentas, enraivecidas.
Essas respostas não resistem ao mais simples cheque de realidade. Não tenho motivos para acreditar que receberia essas respostas, considerando tudo o que já vivi até agora em meu relacionamento atual com Ayrton. Ainda assim, essas vozes do passado seguem costuradas em mim e demandam grande esforço para que eu consiga me desfazer delas, mesmo que temporariamente.
Corpo
Como tantos outros seres humanos, tenho uma relação complexa com meu corpo. Aprendi que é possível me achar um grande gostoso ao mesmo tempo em que desprezo minha imagem.
Parte desse paradoxo nasce das múltiplas vozes que habitam em mim. Uma das fontes dessas vozes é minha mãe, o que torna tudo ainda mais complexo.
Eu sei que, quando aponta pra mim e comenta “está criando uma barriguinha, né?” ou “tem que fazer exercício para dar forma no corpo” (e suas variações), ela está me oferecendo atenção e cuidado para que eu possa melhorar aspectos de mim mesmo. Eu sei que essas falas são revestidas de uma intenção amorosa.
Saber disso, entretanto, não previne que novas vozes se instalem em minha mente, repetindo de novo e outra vez que uma parte de mim é ou está inadequada. Essa voz papagueia toda vez que, por um instante, percebo uma postura que saliente minha barriga, ou quando tiro a roupa em público, ou ou ou…
Como lidar com as vozes daninhas?
Por alguma razão, essas vozes daninhas são mais intensas e barulhentas do que aquelas que sussurram coisas boas. Se deixadas soltas, as vozes em minha cabeça ganham força e até passo a acreditar que meu chefe é um imbecil, que corro risco de perder amor se falar abertamente sobre meus afetos e que meu corpo não presta.
O caminho que tenho trilhado para lidar com elas é o caminho da autocompaixão. Há alguns dias fui dormir com a cabeça em polvorosa por causa de algumas interpretações de mundo que estavam ganhando força. Precisei recorrer a um mantra sobre o qual escrevi anteriormente (inclusive, reli o texto e o recomendo porque ele continua muito atual): que eu possa ser leve, lúcida e amorosa.
Aliás, na outra noite ampliei esse mantra para incluir não apenas os princípios do Olhar de Raposa (leveza, lucidez e compaixão) como também a frase que tenho utilizado como slogan pessoal de escritor (escrevo sobre como criar uma vida mais livre, honesta e conectada). Ficou assim:
Que eu possa ser livre e lever, lúcida e honesta, amorosa e conectada.
Repetindo esse mantra algumas vezes, consegui silenciar algumas das vozes que estavam gritando em meu ouvido. Nem sempre funciona, nem sempre tenho o tempo ou a consciência de que posso utilizar minha própria voz para coordenar esse coro de influências que reverberam em mim.
Desta vez funcionou e sinto-me grato por isso.
Um vislumbre do futuro
Tenho alguns planos para 2023, uns mais concretos que outros. Aqui vai uma lista viva, portanto não definitiva:
completar mais um trimestre de aulas de japonês aqui em Tóquio, na esperança de destravar minha habilidade de comunicação oral;
encontrar oportunidades de trabalho que me paguem melhor (para isso tenho estudado em paralelo para desenvolver novas habilidades);
definir qual (e onde) será meu próximo lar;
refletir e escrever mais sobre questões relacionadas a experiências LGBTQIA+;
refletir e escrever mais sobre autocompaixão e não-violência;
retomar o cultivo do Ninho de Escritores.
Os movimentos impulsionados por esses objetivos hão de impactar o que escrevo por aqui no Olhar de Raposa, então achei justo sinalizá-los.
Por aqui me despeço e, como sempre, te agradeço pela leitura.
Com carinho,
Tales