Eu quero ser uma pessoa melhor. Aliás, imagino que uma boa maioria dos seres humanos queiram essa mesma coisa.
Mas o que, na prática, significa ser ou tornar-se uma pessoa melhor? Para mim, tem a ver com buscar coerência entre aquilo que acredito e aquilo que pratico. Perceba que, ao menos aqui, não tenho interesse em definir quais crenças colocadas em prática contribuem para um mundo melhor – estou propositalmente limitando essa reflexão à esfera do indivíduo.
Para dar um exemplo, estou lendo um livro chamado Manual de mindfulness e autocompaixão. Em um dos exercícios propostos, os autores sugerem uma meditação de bondade amorosa na qual desejamos algo para nós, para as outras pessoas e, eventualmente, para todas as vidas. A sugestão do livro é:
Que eu possa ser feliz e livre de sofrimento.
Embora tenha gostado dessa frase, percebi que ela não estava me tocando genuinamente. Se eu meditasse repetindo-a para mim, seria mais um ato mecânico do que uma expressão real de como eu penso. A minha frase da meditação de bondade amorosa é:
Que eu possa ler leve, lúcida e amorosa.
Essa frase condensa os valores que hoje me são essenciais na vida: leveza, incluindo aí estar livre de sofrimento, que os autores do livro sugerem que seja a multiplicação da dor e da resistência a senti-la por inteiro; lúcida, para que eu mantenha não só um pé, porém todo o corpo e atenção, na realidade; e amorosa, tanto na busca por não causar dano quanto na tentativa de facilitar que pessoas sejam felizes.
Essa frase e esses valores condensam o que tenho buscado aqui na vida e, portanto, aqui no Olhar de Raposa. Na contramão dos incontáveis livros sobre como ligar o foda-se, me interessa aprender e praticar amor incondicional, gentileza e carinho.
É por causa disso que, nesta semana, me senti um hipócrita.
Tenho uma relação delicada com sair de casa. Ir para a rua, da decisão ao ato propriamente dito, me custa um bocado de energia. Embora isso seja mais verdade em alguns lugares do que em outros, ainda é um elemento que compõe fortemente minha experiência de vida.
Moro em uma região central em São Paulo, perto de vários supermercados e um alguns shopping centers, na frente dos quais habitualmente há pessoas em situação de rua pedindo dinheiro, comida ou fraldas. A uma esquina de casa, por exemplo, há um moço que vive em uma barraca; costumo vê-lo lendo, ajudando os entregadores da padaria local, dormindo ou varrendo a rua.
Durante a semana, fui a uma padaria no caminho da qual há um mercado. Em frente a ele havia uma pessoa sentada, enrolada em um cobertor cinza grosso e com as costas apoiadas em um poste. Eu já a havia visto outras vezes naquele mesmo ponto, ora sentada, ora caminhando de um lado para o outro.
Eu fiquei com medo de ser abordado e passei rápido. Medo de que, eu não sei, em momento algum considerei que ela fosse fazer algo comigo além de conversar, perguntar ou pedir algo.
Na volta para casa, considerei fazer um caminho mais longo para evitar passar pelo mesmo ponto. Considerei passar pelo outro lado da rua. Considerei o quanto estava sendo ridículo com esses pensamentos e decidi voltar pelo caminho que fazia mais sentido, sem inventar desculpas para mim mesmo.
Enquanto caminhava de volta para casa carregando um sanduíche de croissant e um cookie de pistache em minha sacola ecológica de pano, avistei a pessoa em frente ao mercado. Desta vez ela estava voltada para mim enquanto eu passava e me chamou. Não lembro agora como ela chamou, se foi um “oi” ou um “com licença” ou outra coisa. O que quer que tenha sido, eu sabia claramente que ela estava se dirigindo a mim.
Eu mal olhei para ela antes de responder. Virei o rosto o suficiente para indicar que estava respondendo a ela, mas não a olhei por mais de meio segundo, não queria cruzar olhares. Murmurei um “não” baixinho e segui caminhando. Ainda ouvi ela perguntar “não o que…?” e como não tenho um registro claro de como ela me abordou, não sei de que forma esquisita, além de insensível, o “não” que respondi soou.
Pensando agora, arrisco que pode ter sido muitas coisas, mas não inesperado. Não tenho dúvida de que a experiência de ser ignorada seja comum e recorrente para pessoas que vivem na rua. Sei bem que eu mesmo tenho uma cota significativa de contribuições para essa exata experiência.
Inclusive, já escrevi algumas vezes sobre isso. Em uma ocasião, deixei de escutar a um moço que pedia comida ao mesmo tempo em que achava que estava sendo empático:
Quando ele me perguntou por refeição da primeira vez, eu estava com uma ideia fixa: não tenho o que oferecer para o mundo. Por isso, disse não. A maçã tinha uma mensagem que me dava permissão para fazer (e ser) diferente, então pensei que ela era tudo o que eu precisava oferecer. Eu não estava disponível a descobrir o que o moço precisava porque estar disponível significa estar vulnerável. (Link para o texto completo)
Em outra ocasião, deixei de oferecer alimento para outras pessoas, com mil pensamentos passando pela cabeça:
Infindáveis motivos para não parar e não dar dinheiro pipocaram na minha cabeça. É tarde. Estou com dificuldades para pagar meu aluguel. Tenho medo de ser assaltado – se não por eles, por outras pessoas. Quero chegar logo em casa. Vai saber para o que usarão o dinheiro. Eu não posso mudar a vida deles. Preciso cuidar de mim primeiro para depois poder ajudá-los. Eu. Eu. Eu. (link para o texto completo)
É claro, essas experiências não resumem a inteireza das minhas interações com pessoas que moram e pedem na rua. Houve situações em que parei e comprei comida em restaurante, comprei ração para o cachorro, ofereci dinheiro de coração aberto.
O que me parece costurar esses momentos é uma dificuldade de parar, escutar e me abrir às possibilidades. Costumo caminhar pelo mundo com planos definidos sobre o que fazer e o que deixar de fazer. Minha primeira reação ao chegar em casa depois de ignorar a moça em frente ao mercado foi pensar em um orçamento que eu pudesse dedicar a oferecer para pessoas que pedissem coisas para mim na rua, como se a questão fosse ter ou não dinheiro para oferecer. A questão não é essa.
A questão é minha atual inabilidade de viver o momento presente, escutar quem estiver falando – de verdade, não só no espaço assegurado de uma sala de aula ou de Zoom. A questão é de fato escutar pessoas e me colocar disponível e vulnerável quando não tenho um plano definido, justamente porque é impossível ter um plano definido quando se trata de empatia. O meu mapa não é o território, seja o mapa de passar reto dizendo não, seja o mapa de oferecer uma maçã para quem está pedindo água.
Eu quero ser uma pessoa melhor, mais leve, lúcida e amorosa, e isso para mim significa também oferecer às pessoas uma escuta verdadeira e cuidadosa. Não dá para escutar passando com pressa, não dá para amar vivendo com pressa. Eu sei disso na teoria, porém ainda tropeço bastante quando é o momento de colocar em prática. Às vezes consigo, seja com pessoas próximas ou desconhecidas. E outras tantas vezes passo reto sem nem oferecer um instante da minha atenção.
Tenho um bocado a continuar melhorando nessa vida.
Obrigado pela leitura.
Com carinho,
Tales
Penso ser bastante importante termos a noção do que somos e onde precisamos melhorar, não apenas para os outros, pelo amor ao próximo, pela empatia etc., mas por nós. Para que façamos seja lá o que com a consciência de que temos muito a melhorar. Hoje, depois de ter passado e ainda passar por tantas coisas, é assim que encaro. Não me cobro como antes, procuro sim melhorar a cada dia, mas no meu tempo, respeitando minhas limitações. Tornei-me mais leve agindo assim.
Para além da questão da empatia, encarar a miséria não é fácil, porque ela nos faz lembrar do pior de nós mesmos. E eu acredito que a (auto)compaixão só é possível quando abraçamos não só o que é bom em nós mesmos, mas também as nossas sombras, reconhecendo que somos imperfeitos. Como encarar então a face da fome? No meu caso, eu sei que poderia muito bem ser eu ali pedindo comida em papéis trocados. Mas também há dias em que é difícil lidar com tanta realidade. Queremos viver o ideal de mundo sem dor. Quando viajei para SP, vi muita desesperança no olhar das pessoas, como se estivessem mortas vivas (e não só nas pessoas que moram na rua), mais do que aqui no Rio. Não podemos deixar de sentir e refletir. A maioria se anestesia para não sentir essa contradição, porque ela é dolorosa mesmo, mas necessária para não virarmos hipócritas. O medo de encarar o outro é sempre o medo de encarar nosso olhar refletido. O ideal de nós mesmos despedaçado.