Amo a expressão “parece que tem um rei na barriga” para falar de alguém dá muita importância a si mesmo. Além disso, é uma imagem perfeita para considerar a tendência de controlar não apenas as próprias possibilidades como também as das outras pessoas.
E esse é o tema da carta digital de hoje.
Certo dia no Japão, passei o sábado com meus amigos. Primeiro, subimos o Monte Takao, o que foi um momento delicioso de contato com a natureza e de conversas com pessoas queridas. Depois, fomos a um bar estilo pub inglês. O objetivo era todos ficarmos bêbados – um desses amigos disse que nunca havia me visto alcoolizado e que gostaria de ver isso acontecer.
Faz alguns anos que diminuí meu consumo de álcool, especialmente após perceber que não gosto do meu comportamento quando bebo. Enquanto inebriado, torno-me menos cuidadoso comigo e com as pessoas ao meu redor, algo que contraria o que quero para a vida. Quando meu amigo sugeriu que queria me ver bêbado, expliquei isso e, ainda assim, ele insistiu em sairmos para beber até que todos nós estivéssemos bêbados.
Pensei com meus botões: por que não?
Aliás, amo essa ideia de pensar com os botões, inclusive porque aqui no Japão, em particular durante o inverno, tenho usado muitas roupas com botões junto aos quais posso pensar. 😁
Tudo estava indo bem no que parecia ser uma noite regada a risadas e bebidas, até que três dos meus amigos ficaram bastante alterados. Neste momento, eu e o amigo que originalmente fez o convite decidimos parar de beber, já que estávamos entrando na função de babás do grupo.
Se estivesse mais alcoolizado, talvez não ligasse para o que estava acontecendo e encontrasse graça na situação como um todo, mas cada vez menos sinto prazer em aloprar de forma descontrolada. Aprecio a liberação de amarras que o álcool pode oferecer – até porque posso ser uma pessoa bem contida – porém também aprecio saber que as pessoas ao meu redor estão em condições de cuidar das próprias vidas.
Dos três amigos bêbados, dois foram simples de lidar. Um queria comer e comer e comer, e apesar de no dia seguinte ficar espantado com o quanto gastou em comida, não criou problemas. Outra amiga estava passando mal e sofrendo enquanto tentava controlar a ânsia de vômito, o que resolvemos indo a um outro bar, sentando e oferecendo água enquanto ela se recuperava o suficiente para voltar para casa – nós a levamos até lá.
O terceiro amigo foi o mais complicado. Em outras vezes que saímos juntos, eu já havia percebido que, quando começa a beber, ele costuma querer mais e mais e se torna agressivo. Enquanto estávamos no bar esperando nossa amiga se recuperar, ele tentou pedir mais bebidas, mas eu o impedi. Tentou ler o menu digital usando o QR code? Escondi o QR code. Chamou uma garçonete para pedir uma cerveja? Pedi a ela que não trouxesse, pois ele estava alcoolizado demais. Tentou provar da minha bebida? Tirei meu copo do seu alcance. Em todas essas ocasiões, ele me xingou e reclamou e bateu na mesa e falou alto e o que mais.
Na hora, achei que estava fazendo a coisa certa®.
(No livro O desafio poliamoroso, a autora Brigitte Vasallo usa o símbolo de marca registrada ® para se referir a ideias e conceitos carregadas de valores e expectativas sociais e que aprendemos a repetir, por vezes sem criticá-los. Decidi usar também porque achei genial.)
Na hora, achei que era meu dever® proteger meu amigo dele mesmo, usando minha força e poder pessoal (sobriedade, maior domínio do idioma etc.) para interromper seu consumo de álcool.
No dia seguinte, fiquei pensando sobre essa situação e a (tentadora) posição de ser a pessoa que sabe® o que é melhor para os outros.
Meu amigo não me pediu para ajudá-lo a controlar a quantidade de álcool que beberia; minha ação de interrompê-lo foi fundamentada em meu incômodo de lidar com ele naquele estado agressivo. Eu tinha poder à minha disposição e o utilizei.
Na comunicação não-violenta se fala sobre uso protetivo da força, uma modalidade de ação direta sobre a autonomia de outras pessoas que é feita com a intenção de protegê-las de um mal imediato ou despercebido. Tipo puxar uma criança distraída que correu para o meio de uma avenida.
Não era isso que eu estava fazendo.
Meu amigo não corria nenhum perigo óbvio. O pior que aconteceria seria ele ter que voltar caminhando para casa, se por acaso ficasse sem dinheiro. Algo que, em Tóquio, é absolutamente possível, mesmo que cansativo.
Usei meu poder sobre ele porque não estava a fim de lidar com ele bebendo mais e com o que imaginei que aconteceria nesse caso (gritaria, agressividade, xingamentos).
O rei na minha barriga, que adora estar no controle das situações, viu ali uma oportunidade de colocar as garrinhas de fora e agir.
Às vezes me pergunto como eu seria, caso me tornasse pai. Quanto controle tentaria exercer sobre a vida de um filho sob a desculpa de estar protegendo seu futuro?
Quando a nova semana começou, meu amigo me agradeceu por haver impedido que ele bebesse mais e pediu desculpas pelos xingamentos.
De algum lugar na minha barriga, o rei sorriu como quem tem razão.
Pulos da raposa 🦊
Um apanhado da vida por aí.
Story Jam
No próximo sábado vai acontecer a quarta edição do Story Jam, um evento virtual do Ninho de Escritores cujo propósito é propor um tema de escrita e dar 24 horas para que as participantes escrevam um conto dentro desse período.
Publiquei os detalhes no Instagram do Ninho de Escritores. Para participar, basta estar no grupo do Ninho no Telegram no sábado, dia 23 de março, às 17h.
A gay fox in Japan
Embora esteja escrevendo muito menos do que gostaria na minha newsletter em inglês sobre a vida no Japão, aqui vão alguns dos meus textos recentes:
Só que nem sempre
Esse texto da
tocou em um lugar importante por aqui e achei por bem compartilhar: Só que nem sempre.Tudo bem não procurar o sentido da vida
Li um livro chamado It’s okay not to look for the meaning of life nas últimas semanas e gostei bastante. É um olhar zen sobre algumas das pressões que nos colocamos enquanto vivos. Parece niilista, mas acho libertador lembrar que não preciso estar correndo atrás de criar uma narrativa coerente e empolgante sobre essa experiência doida que é estar vivo.
Vamos conversar?
(Escolhe um e responde nos comentários 😊)
Qual foi a última vez em que tu te deixou levar pelo rei (ou rainha) na barriga?
Tu leu algum livro legal recentemente?
Como anda a vida artística por aí?
Com carinho,
Tales 🦊
Vou falar de algo que assisti, a minissérie Feud: Capote vs The Swans. No auge da sua carreira, Truman Capote era o melhor amigo de um grupo de dondocas de NY e lá ele se sentia no topo do mundo. Aí ele tem a "brilhante" ideia de escrever um livro sobre elas, chamado Preces Atendidas (Answered Prayers). Ele solta um capítulo bem bombástico do livro em uma revista e o que era amizade virou declaração de guerra, porque elas odiaram a forma que ele as retratou. Acho que eu nunca vi algo tão profundo sobre a morte de uma amizade e como isso pode ser devastador por toda uma vida. Todo mundo entende o luto do fim de um namoro/casamento, mas quase não se fala sobre o mesmo sentimento em relação a amizade. Também fica a pergunta: até onde você iria pela sua arte? Você teria coragem de escrever o que você sente o clamor de escrever, mesmo que isso vá ferir pessoas que você ama?
A série já chegou ao fim, mas eu vou ficar pensando nela por muito tempo.
as vezes a gente só quer proteger a pessoa da própria agressividade, eu achei tua atitude tão compreensível... mas entendo a autocrítica ;) hehe