Recentemente, depois de um período internada no hospital, minha madrasta faleceu. Ela esteve ao lado de meu pai por quase três décadas – eu tinha cerca de oito anos quando meus pais se separaram –, então durante a maior parte da minha vida, encontrar com meu pai significava também encontrar com minha madrasta.
Pensando agora, foram pouquíssimas as vezes em que estive sozinho com meu pai.
Verdade seja dita, nunca fomos muito próximos, algo que por bastante tempo carreguei comigo na forma de mágoa e ressentimento. Eu queria que nossa relação fosse diferente, que tivéssemos mais coisas em comum, mas a realidade não está nem aí para os meus caprichos.
Quero abrir parênteses para dizer que sei que minha relação com meu pai é melhor que a de muitos amigos: nunca apanhei, nunca tive meu telefone hackeado em busca de conversas comprometedoras (em outras palavras, que comprovassem que sou gay), nunca fui expulso de casa, nunca fui trancado em casa. Entretanto, essas foram algumas das coisas que aconteceram com amigas gays, lésbicas e trans, ocorrências que infelizmente são estatisticamente comuns.
Ali por 2018, viajei com minha mãe e meu padrasto para Portugal. Estávamos em Lagos, uma cidade litorânea no sul do país, quando minha mãe perguntou:
– Tem falado com o teu pai?
Respondi que não, que havia finalmente feito as pazes com o fato de que ele e eu tínhamos tão pouco em comum que não fazia sentido tentar sustentar um relacionamento vazio, que tudo o que fazíamos era compartilhar mensagens protocolares em algumas datas comemorativas distribuídas pelo calendário do ano (dois aniversários, dia dos pais, natal e ano novo). Inclusive, no ano anterior, pela primeira vez eu havia deixado de ligar num natal e, em vez disso, apenas mandei uma mensagem de texto e tudo continuou igual, o que interpretei como uma prova definitiva de que nossa relação jamais seria mais do que vinha sendo: protocolar.
Minha mãe me contou a respeito da relação dela com o meu avô, um homem que exercia muito poder sobre as mulheres da casa (minha avó, minha tia, minha mãe). Ela começou a trabalhar cedo e logo casou com meu pai, em parte como forma de alcançar algum nível de liberdade pessoal, um plano que foi atravessado pela gestação e nascimento do meu irmão e, cinco anos depois, pela surpresa do meu surgimento. Meu avô faleceu antes que eu pudesse conhecê-lo, então pouco sei sobre ele além de que minha mãe gostaria de ter vivido uma outra relação com ele, algo que ela via que eu poderia experimentar com o meu pai, já que apesar de qualquer distância, nosso relacionamento não era marcado por atitudes machistas e violentas.
Naquele momento, eu estava firme em minha decisão de não mais procurar meu pai além de algumas mensagens ocasionais, e foi o que comuniquei à minha mãe. Nesse desencontro de perspectivas, deixamos o assunto de lado e continuamos a curtir o calor português naqueles dias de setembro.
Alguns meses depois, estava na casa de duas amigas e conversávamos sobre nossas famílias. Ambas tinham relações complicadas com seus pais e relatavam suas tentativas frustradas de contato e conexão, as decepções por posições políticas e as atitudes difíceis de compreender porque, afinal, cada ser humano tem sua própria história de vida.
Nessa conversa, algo dentro de mim se deslocou. Percebi que, embora fosse participante de uma infância e adolescência em que não tive um pai presente como gostaria, eu não sabia como era para esse homem em particular que, aos vinte e poucos, teve dois filhos, separou-se da esposa e tinha ainda toda uma vida pela frente para levar. Eu sabia o que era não ter um pai cujos gostos alinhassem com os meus, eu sabia o que era não me sentir compreendido, mas não fazia ideia qual era a sensação de ter um filho que também não parece se esforçar para se conectar, que gosta de livros e não entende nada de carros nem de futebol, que aliás ainda hoje se atrapalha com uma bola nos pés apesar de ser filho de uma pessoa em cuja vida o futebol sempre foi um esporte central. Eu sabia o que era ver um pai orgulhoso durante minha formatura, mas não sabia de onde vinha esse sentimento de orgulho demonstrado num gesto silencioso – uma mão fechada em frente ao coração – lá da plateia.
Saí da casa das minhas amigas com um sentimento novo de curiosidade crescendo dentro de mim. Queria saber quem era aquele homem que, por obra de um acaso inefável, também era meu pai. Quais seus sonhos, medos e histórias de vida? O que ele sentiu quando teve um filho, quando teve um segundo filho, quando foi um pai super presente na vida do afilhado? Será que ele sabia do meu ciúme em relação ao menino que parecia receber tudo o que eu achava que não tinha recebido?
Dotado deste sentimento de curiosidade, decidi que faria um movimento para me aproximar de meu pai novamente. Encontraria um tempo para sentar com ele e conversar sobre a vida. Será que eu poderia apreciar a companhia dele por ser uma pessoa bonita, disposta a apoiar os amigos, sempre presente em sua comunidade? Será que, se ao menos eu conseguisse tirar de cima dele a expectativa de que ele tivesse levado uma vida diferente, priorizando o rótulo de “pai” e o que quer que isso significa na minha cabeça, nós poderíamos viver um futuro no qual faria sentido passarmos tempo juntos por querer em vez de por obrigação?
Destituído desse apego a quem eu gostaria que ele tivesse sido – esse passado já zarpou e nunca será como poderia ter sido –, passei a aproveitar melhor nossos encontros, perguntar mais, estar ali com ele não só de corpo e obrigação, mas também com minha atenção. Foi nesse mesmo período que minha madrasta começou a sofrer os sintomas debilitantes da esclerose múltipla, que nos últimos anos foi reduzindo sua autonomia e aumentando a dependência ao apoio de meu pai.
Quando enfim ela faleceu, viajei a Porto Alegre e dormi uma noite na casa do meu pai. Enquanto o afilhado dormia no sofá da sala, deitamos na cama e conversamos. Falamos sobre os últimos tempos, sobre a tristeza e o alívio trazido pela morte, sobre a separação de minha mãe, sobre meus ciúmes, sobre nossa relação de pai e filho, sobre como era importante aceitarmos que a vida era o que era e que, se pudéssemos voltar no tempo e fazer algo diferente, o faríamos, mas nós tomamos as decisões que conseguimos tomar na época em que as tomamos.
Desde então, nossa relação tem se transformado aos poucos. Trocamos algumas mensagens a mais ao longo dos últimos meses, nos ligamos e nos vimos mais do que nosso usual. Não foi uma mudança radical, não somos melhores amigos, não sabemos todos os segredos um do outro. Talvez nunca venhamos a saber.
Ainda assim, hoje penso no meu pai com leveza e afeto. Nós temos uma relação possível, real, humana, cheia de peculiaridades que são resultado dessa mistura complexa entre dois seres humanos. Não é algo a ser resolvido. É algo que podemos viver.
Se eu pudesse voltar no passado e mudar algo, duas coisas me vêm à mente. A primeira é dizer para o Tales criança entristecido ou para o Tales adolescente decepcionado que o tempo tem seu jeito de bagunçar a vida e que talvez a poeira possa se reajustar de um jeito melhor. A segunda seria, lá em Portugal, confortar minha mãe com o conhecimento de que ainda há chance de que algumas dores do passado não sejam passadas adiante pela árvore genealógica.
O que sei é que neste domingo estarei desejando um feliz dia dos pais com todo o amor que há em meu coração. 😊
Sugiro dar uma olhada 🧐
Algumas das coisas para as quais andei dedicando atenção.
Sobre ter dois pais
Desde criança, tive na vida mãe, pai, madrasta e padrasto, o que em muitos aspectos foi uma experiência bastante privilegiada de formação familiar. Para mim, dia dos pais não é apenas um dia para celebrar meu pai, mas também meu padrasto, com quem tive e tenho a oportunidade de cultivar memórias e experiências de vida que contribuíram imensamente para que eu me tornasse o ser humano que sou hoje.
Há algum tempo, fiz uma história em quadrinhos (em inglês) e achei que ela combinaria com o texto de hoje, então fica aqui o convite para lê-la:
Sandman
Chegou à Netflix a adaptação da história em quadrinhos chamada Sandman, sobre Sonho, uma entidade antropomórfica que, após passar um século presa por humanos, precisa redescobrir ou reinventar um sentido para sua própria existência.
Escrita por Neil Gaiman, essa história em quadrinhos se desdobra em 75 edições elaboradas e costuradas de forma magistral, apresentando personagens fabulosos lidando com questões profundamente humanas.
A versão da Netflix é diferente, como há de ser qualquer tradução transmidiática, mas continua valendo a pena e recomendo com força. Se ainda não assistiu, assista. Se ainda não leu, leia. E se já assistiu ou leu, estou aqui para conversar e trocar impressões. 🤗
Com carinho,
Tales
Que lindo, Tales. Seu texto me emocionou bastante. Acho que é um lugar comum na vida de muitos dos nascidos dos anos 70/80 terem seus pais mais afastados. Eu também sou um produto disso e entendi perfeitamente o seu sentimento ao longo do texto. 😘✨