Minha madrasta tem uma doença degenerativa para a qual não há cura. Cada vez que a vi nos últimos três anos, ela tinha menos condições de cuidar de si mesma, primeiro com dificuldades para andar, na última vez mal conseguindo articular palavras e por vezes precisando beber líquidos com o auxílio de canudos e seringas. Em recente visita a Porto Alegre, minha cidade natal, soube que ela estava internada no hospital e fui visitá-la.
Durante meus tempos de escola, passei bastante tempo acompanhando minha avó no hospital. Ela tinha uma série de complicações de saúde que faziam com que ficasse internada durante longos períodos. Embora o dever de acompanhá-la tenha recaído principalmente sobre minha mãe, estive por lá com minha avó também um bocado.
Quando visitei minha madrasta, foi um hospital completamente diferente e por razões distintas. Ainda assim, encontrei o mesmo hospital.
Quem já esteve internado junto a, ou acompanhou pessoas idosas (não sei se o fator idade interfere, nunca acompanhei pessoas mais novas), provavelmente reconhecerá alguns elementos: a voz alta e infantilizada para conversar com as pacientes, o cheiro de comida de bebê, o som constante de respiradores, bips e televisão em canal aberto, uma iluminação de fim de tarde (a qualquer horário).
Deixei o hospital pensando sobre mil coisas, das condições dos espaços de cura à certeza da morte, da coragem e disposição de pessoas cuidadoras frente ao quebrar de corpos e espíritos até a dúvida se, sob aquelas condições, eu escolheria continuar vivo – que essa não seja uma escolha oferecida à pessoa que vive é algo que muito me incomoda, junto com a presunção de que continuar vivo é sempre o objetivo maior. Inclusive, numa aula de antropologia dos corpos certa vez ouvi que nossa relação com o poder estatal com o tempo mudou de “o rei deixa viver e faz morrer” para “o estado faz viver e deixa morrer”, no sentido de que precisamos de permissão para morrer.
Quando olho para um tema – seja morte, hospital, parquinho de diversões – me interessa pensá-lo pelo que tem sido, pelo que poderia ser e, também, pelo que já foi. Nada do que hoje é o que é foi sempre assim, e estudar os caminhos por onde a humanidade percorreu ajuda a entender as escolhas de cada período histórico, os saberes e crenças e valores e poderes que hoje informam o que podemos viver.
Sobre isso, li e indico um texto de um amigo, Rodrigo de Moura, chamado A história dos espaços de cura e suas arquiteturas. Um trecho:
Essa prática de cuidar dos enfermos foi incorporada à Igreja como parte das obras de caridade e cuidado estava muito mais ligada a garantia de uma “boa morte” do que um tratamento, além, é claro, de garantir a salvação do cuidador. Esse momento da história é bastante importante para entendermos o papel das Santas Casas de Misericórdia no sistema de saúde que temos hoje. Cuidar dos doentes não era uma responsabilidade do Estado, mas sim uma missão e um compromisso com Deus.
Esses saberes e crenças e valores e poderes informam também o que não podemos viver, mas abrem espaço para imaginarmos outros mundos possíveis.
Sobre os hospitais e espaços de cuidado, não tenho muitas ideias (ainda?) sobre como poderiam ser diferentes do que são, mais vivos, leves, conectados, menos impessoais. Ouvi sobre hospitais que são desenhados para funcionar de uma maneira diferente dos que normalmente conhecemos (recebi links para alguns exemplos: PaRx, Fundación Inspira, e esta dissertação). Quando aprender mais sobre eles, é provável que eu traga o assunto novamente aqui. Inclusive, se tu conhece algum hospital ou espaço de cura que seja diferente do usual, me conta?
Um filme: Patch Adams, o amor é contagioso
Um clássico de 1998 baseado na vida real de um médico que buscou construir formas de atendimento humanizado (um termo interessante para investigarmos no futuro). Aqui o perfil do filme no IMDB (um site que atua como banco de dados de filmes na internet) e um texto da PUCRS sobre o médico que inspirou o filme.
Uma obra: The Anatomy Lesson of Doctor Nicolaes Tulp, de Rembrandt van Rijn, 1632
Mais obras: dois sites
Enquanto buscava imagens para esta carta eletrônica, encontrei dois sites com coleções de pinturas e referências sobre a história da medicina. Ambos estão em inglês, embora as imagens já sejam potentes mesmo sem o apoio da escrita: History Of Medicine : All 45 Paintings By Robert Thom e Painting the Practice of Medicine.
Um vídeo: sobre o kanji 日
Depois que enviei minha carta eletrônica da semana passada, encontrei um vídeo cujo objetivo é explicar kanjis. Ele é parte de uma série e o primeiro trata exatamente sobre o kanji que comentei. O vídeo chama Análise de Kanji, Aula 1.
Uma visita ao hospital
Oi Tales, tudo bem? Lembro no dia que esse seu texto chegou à minha caixa de entrada e achei bonito, sensível e também respeitoso. Recentemente passei por uma experiência que imediatamente me remeteu à esta sua carta e retornei aqui pra ler.
Minha mãe esteve internada em uma casa de cuidados em São Paulo chamada Sainte-Marie que é um espaço de cuidados paliativos, bem diferente de um hospital. Um lugar lindo e muito digno. Recomendo uma visita a este vídeo pra entender mais sobre os cuidados paliativos e o trabalho da clínica: https://www.youtube.com/watch?v=xig7D-cKoMQ