Li em algum lugar que nós somos a média das pessoas com as quais passamos mais tempo juntas. Para mim, faz sentido: estar em contato com um mundo amplo aumenta o alcance do que percebo, e partilhar experiências com quem cria me dá vontade de conhecer e criar também.
Nesta semana, estive em dois eventos que me inspiraram: um global queer speed networking e uma feira de jogos eletrônicos.
Global queer speed networking
Um dos projetos de futuro que tem germinado em meus pensamentos é oferecer um curso de escrita com temática queer (algo que fiz por três edições em 2016 em São Paulo) online e em inglês. Com isso em mente, comecei a navegar a internet em busca de organizações voltadas para o público queer e descobri a We Create Space.
A organização se apresenta assim:
Somos uma plataforma global liderada pela comunidade, consultoria e coletivo com a missão de melhorar a vida de pessoas LGBTQ+ e outros grupos profissionais sub-representados em todo o mundo, conectando nossas comunidades e aliados com ferramentas, conhecimento e uma rede de apoio para o crescimento pessoal, desenvolvimento de liderança, aliança e autocuidado. Fazemos isso por meio de experiências compartilhadas, conteúdo, pesquisa e trabalho consultivo.
(Original: We’re a global community-led platform, consultancy and collective on a mission to improve the lives of LGBTQ+ people and other under-represented groups of professionals around the world by connecting our communities and allies with tools, knowledge and a support network for personal growth, leadership development, allyship and self-care. We do that through shared experiences, content, research and consultative work.)
Logo que encontrei esta organização, vi que eles tinham um evento online bem interessante agendado: o global queer speed networking.
Desde que vim para o Japão, tenho me concentrado em conhecer pessoas para amizades (razão pela qual criei um grupo para pessoas queer nerds se encontrarem), deixando meu lado profissional restrito ao trabalho que realizo como consultor de gestão de projetos e comunidades em uma empresa estadunidense. Entretanto, não sou estranho ao universo dos eventos para conhecer pessoas profissionalmente: não apenas fui voluntário do CreativeMornings São Paulo1 durante anos, como também criei eventos voltados para conversas profundas e um grupo de conversa sobre masculinidade para homens gays.
Por isso, quando vi essa ideia de speed networking voltada para o público queer, decidi experimentar. E foi fabuloso. Há algo muito especial em estar cercado de pessoas que estão interessadas e ativas em questão que me são caras. Vi gente trabalhando com educação, pesquisa, consultoria etc., todas, cada uma à sua maneira, agindo para criar um mundo mais seguro, inclusivo e comunitário.
E talvez o mais empolgante: pessoas interessadas em se conectar e descobrir novas formas de trabalhar em conjunto em prol dessa visão compartilhada.
Espero no futuro ter mais a contar sobre isso. 💕
Tokyo Game Show 2024
Graças a um amigo que trabalha na indústria dos jogos eletrônicos, ganhei um ingresso para o Tokyo Game Show 2024, um dos maiores eventos anuais de videogames no mundo inteiro. Minha ideia inicial era só passear e ver as coisas sem realmente participar de nada. Aproveitando que muitas das pessoas nas estandes me evitavam – homem branco caminhando no Japão sempre gera uma de duas reações: surpresa e vontade de chegar perto, ou surpresa e afastamento –, caminhei pelos estandes de empresas gigantes no mercado e também desenvolvedores indie.
Eu pretendia só olhar, mas aí fiquei curioso com o estande da Google Play e entrei na fila para ver. Após vinte minutos de espera, lá estava eu jogando contra outros sete jogadores para disputar prêmios. Fiquei em primeiro lugar, ganhei uma camiseta e alguns pontos para comprar aplicativos online, e de quebra fiquei mais disposto a tentar outros estandes.
Daí pra frente é que a diversão realmente começou.
Experimentei alguns jogos e estandes, ganhei brindes, conversei com desenvolvedores e me maravilhei ao ser lembrado do tamanho vasto do nosso planeta: quantas pessoas criando experiências incríveis! Eu adoraria passar mais um ou dois dias por lá, explorando jogos novos e descobrindo o que desenvolvedores em inúmeros países estão inventando.
Ao final do evento, fiquei com essa vontade de quero mais e me peguei pensando sobre a potência dos jogos e de se ter uma atitude brincante. Esse é um conceito que me acompanha há alguns anos e sobre o qual escrevi em 2017 – a seguir, compartilharei o texto original.
Você é responsável pelos jogos que escolhe criar e participar
No livro A theory of fun, Raph Koster diz que diversão (fun) equivale a aprendizagem (learning) e que, portanto, jogos e brincadeiras são uma ferramenta básica para aprendermos a fazer coisas essenciais para a nossa sobrevivência.
Esconde-esconde, por exemplo, é sobre como caçar melhor e evitar sem caçado. Pega-pega tem a ver com controle físico do corpo e combate. Angry Birds ensina sobre pontaria e estratégia. Xadrez simula uma batalha complexa. Super Mario ensina a pular e a calcular a mecânica do pulo.
Gosto muito da ideia de diversão como aprendizagem (embora Koster enfatize que não é a única forma de diversão possível). Ela indica que devemos observar com cuidado o que estamos fazendo com os jogos que criamos e dos quais participamos. Jogos não são inocentes, mas ferramentas pedagógicas. Eles ensinam formas de ser e estar no mundo e, por isso, temos responsabilidade sobre eles.
O meu conceito de jogos
Até a leitura de A theory of fun, duas noções orientavam meu entendimento de jogos:
a ideia de Jesse Schell de que “um jogo é uma atividade de resolução de problemas realizada com uma atitude brincante”;
a maior parte das nossas relações culturais são pautadas por ficções compartilhadas e reproduzidas.
Koster entende que jogos são como a vida, mas com consequências menores. Essa definição de forma alguma me convence, porque as consequências de um jogo podem ser muito palpáveis e reais (pensei direto em Jogos Vorazes ou Jogos Mortais).
Quando li esta definição oferecida por Koster, meu cérebro me presenteou com o que agora é o meu conceito para a palavra jogo (valeu, cérebro, te amo!). Estou convicto de que um jogo é “um recorte simplificado da vida”.
Dos jogos mais simples aos mais complexos, existe um recorte em relação à vida. Mesmo que o jogo acontece na vida, o tempo em que jogamos se distingue do restante do tempo em que estamos vivos. É a tal da atitude brincante. O recorte é simplificado porque dentro do jogo há um conjunto de normas e expectativas que reduzem drasticamente o número de possibilidades, escolhas e consequências para um determinado momento.
Em uma brincadeira de pega-pega, você pode correr (geralmente dentro de uma área com fronteiras delimitadas), talvez tenha um “ferrolho” (que protege de ser “pego”), você perde se quem está pegando encostar em você, você alcança o objetivo quando escapa de ser pego e, se pego, quando encosta em outra pessoa. A roupa das pessoas não importa. As relações prévias de amizade não importam (e quando começam a importar, interferem com o círculo mágico do jogo). A única coisa que importa é alcançar o objetivo.
Em uma relação BDSM, a lógica se repete. Há o mestre e tudo o que ele pode fazer com seu escravo, há o escravo e tudo o que ele deve fazer pelo seu mestre. Em meio a isso, há acordos e expectativas do que não vai acontecer aí no meio, bem como toda uma série de questões e ansiedades que são deixadas de fora do jogo por não pertencerem a ele.
Entendo que o poder engajador dos jogos deriva da sua simplicidade. Por serem mais fáceis/acessíveis, os jogos nos colocam em estado de fluxo com mais facilidade e abrem portas para experiências diretas de aprendizagem e empatia.
Jogos como forma de arte
Se entendermos jogos como experiências de aprendizagem que nos revelam padrões que podemos utilizar na vida e que eles deixam de ser interessantes quando dominamos esses padrões (outra ideia desenvolvida por Koster e que também aparece em Schell), então a pergunta — para qualquer jogo — passa ser “o que este jogo está me ensinando sobre a vida?”.
Divertido ou não, um jogo está me ensinando a viver e reforçando determinados valores e crenças.
Assim como livros, filmes e músicas, jogos podem ser mais do que entretenimento. Sim, eles podem ser apenas entretenimento, mas isso nós já sabemos e esperamos. O que estou propondo aqui (ainda alinhado com Koster) é que jogos podem ser uma forma de arte.
Para que isso aconteça, o objetivo de um jogo deve migrar do puro entretenimento para o questionamento da condição humana. Na minha cabeça, essa era uma ideia abstrata e, francamente, bem idealista… até que eu conheci um jogo chamado Mainichi.
A descrição do jogo é a seguinte:
Mainichi (“todos os dias”, em japonês) apresenta alguns dos conflitos sociais que a desenvolvedora enfrenta diariamente como uma mulher transexual mestiça durante o simples ato de encontrar uma amiga para tomar um café. Quando o jogador volta para casa, acorda novamente no mesmo cenário, que muda sutilmente com base em como você escolhe se preparar para o dia. É uma experiência de “fatia de vida” curta, porém muito pessoal.
Joguei por dez minutos e passei muito mais do que isso refletindo sobre o que havia acabado de acontecer. Até Mainichi, eu estava convencido de que uma boa história era a ferramenta mais poderosa para fazer com que alguém se coloque nos sapatos de outra pessoa. Afinal, nossos neurônio espelho cuidam do trabalho de nos fazer sincronizar com a experiência que vemos ou ouvimos, fazendo com que sintamos o que o personagem sente. Ainda acho que uma boa história seja a ferramenta mais poderosa para criar empatia, mas agora penso essa história em um lugar muito específico: dentro de um jogo.
No jogo, eu que fiz as escolhas para o dia do café, portanto o peso das consequências não é apenas algo que observo e crio empatia. O peso das consequências deriva diretamente das minhas escolhas, então me sinto responsável pelo que acontece — e isso é terrível, porque na verdade uma mulher trans não é responsável pelo ódio gratuito, pela indiferença, pela curiosidade nem pelo preconceito que sofre. Como eu senti isso, mesmo que por um breve instante, tenho uma experiência muito mais palpável com a qual me relacionar.
Dez minutos de jogo me levaram a essa reflexão profunda.
Eventos também podem ser jogos
Durante o Tokyo Game Show, decidi agir como se estivesse em um jogo: quando visse algo interessante, me aproximava aberto à possibilidade de conversar com outros personagens. Quando alguém me oferecia participar de um jogo, eu decidia se queria aquela missão ou se não. Quando um jogo estava difícil, continuava tentando para adquirir mais experiência e eventualmente vencer.
Um evento como o global queer speed networking também pode funcionar como um jogo. Tivemos três ou quatro rodadas de 10 minutos para conhecer de duas a quatro pessoas a cada vez, e nesse jogo ganhamos todos quando encontramos interesses em comum e razões para admiração mútua.
Um bom evento simplifica a realidade para alcançar um objetivo específico. É isso que farei essa semana na oficina de escrita que oferecerei aqui em Tóquio: criar um espaço brincante e compassivo onde possamos nos conectar e experimentar com a escrita. O que eu espero é fazer pelas pessoas o mesmo que o Tokyo Game Show e We Create Space fizeram por mim: avivar essa chama da inspiração para viver e compartilhar exuberância.
Com carinho,
Tales
O CreativeMornings é um café da manhã com palestra que acontece uma vez por mês em mais de 200 cidades ao redor do planeta, cujo propósito é conectar a comunidade criativa local. Super recomendo!