Recebi pelo Instagram mensagem de uma mãe preocupada porque o filho de onze anos contou que é gay e que está em um relacionamento. Ela me procurou porque assistiu uma palestra minha em que mencionei o fato de ser um homem gay.
No Brasil de 2022, ser gay (ou qualquer outra letra que represente identidades de gênero e sexualidade) ainda é muito perigoso. Isso varia com o contexto, é claro. Ser gay e caminhar de mãos dados com outro homem tende a ser mais seguro na Avenida Paulista do que em cidades do interior gaúcho, por exemplo. Ser um homem branco que, mesmo que às vezes delicado, não foge muito dos padrões de masculinidade é menos perigoso do que ser uma bixa preta lida como afeminada.
Pensar sobre ser gay (ou lésbica, bi, trans…) é pensar sobre privilégios sociais. Gosto de entender privilégios como a possibilidade de não se preocupar com algo. Eu me preocupo quando na rua vejo homens que leio como machos (fortes, grosseiros, às vezes sujos ou desalinhados) vindo na minha direção porque já sofri ataques desses tipos de sujeitos.
Quando contei à minha mãe que estava namorando um rapaz, lá em 2006 ou 2007, ela me disse algo que ficou comigo: “estou preocupada porque o mundo não é fácil para quem é gay”. Isso é um fato: o mundo não é projetado para pessoas LGBTQIA+. Nem preciso ir até a violência que outras pessoas cometem para “corrigir” o erro dos afetos que não recaem na cis-hetero-normatividade, basta pensar nas expectativas sociais que nos circundam e que são reforçadas continuamente.
“E as namoradas?”
“Não pretende casar?” (até alguns anos, nem podia, legalmente)
“Não vai ter filhos?” (não sei a quantas anda a possibilidade de adoção por parte de casais homoafetivos)
“Quem é a mulher do casal / quem é o homem da relação?”
Pessoas se sentem autorizadas a perguntarem essas coisas, e dentre as LGBTQIA+ essas estão longe de serem as piores perguntas. Há quem insista em atribuir o gênero incorreto para pessoas trans mesmo após elas indicarem como querem ser tratadas, há quem insista em perguntar sobre órgãos genitais – quando jamais ousariam fazer o mesmo com seus comparsas cis-gênero.
Eu nasci em 1986 e cresci achando que aquela vontade de estar afetiva e sexualmente com outros homens era algo que não tinha cabimento, que não tinha lugar no mundo. Eu genuinamente acreditava que podia gostar de homens só dentro de casa, mas que na rua eu seria normal. Normal. Tem ideia da violência que é uma sociedade contribuir para que uma criança acredite que ela não é normal pela forma como ela se sente atraída por outros seres humanos?
Eu passei minha infância e adolescência coletando migalhas de representatividade em livros, revistas e filmes, quase sempre tropeçando nas representações trágicas (gay morre no final, lésbica é explodida no shopping) ou paródicas (gay que só serve para alívio cômico). Eu ansiava por encontrar, conhecer e me aproximar de pessoas que me provassem que outras formas de existir eram possíveis.
Com o tempo, encontrei essas pessoas e foi a partir desse momento que comecei a realmente achar que estava vivo, que a vida tinha um lugar para mim. Até então, eu existia, mas me faltava algo, me faltava um lugar.
Hoje com onze anos o filho da moça que me escreveu no Instagram tem uma chance muito melhor de encontrar um mundo que o acolha. Ainda há, não se engane, uma parcela muito grande de pessoas no mundo que desviarão do seu caminho para violentar aqueles que sejam lidos como diferentes (para não dizer inferiores) , mas há também mais espaços, comunidades e possibilidades de se reconhecer em livros, revistas, filmes, seriados, animes, canais do YouTube, podcasts, blogs, perfis na internet.
Os tempos são diferentes em vários sentidos. O mundo está mais seguro para pessoas LGBTQIA+, mesmo que um pouquinho. Se eu fosse criança hoje, talvez minha infância tivesse sido melhor porque, talvez, eu tivesse a oportunidade de me reconhecer e me afirmar aos onze anos. Só sentir-me representado não seria o suficiente, é claro; ter uma família e uma rede de amigos que me acolhesse e me protegesse ajudaria muito – e isso eu não só tenho como acredito que, se tivesse mesmo me reconhecido e afirmado gay mais cedo, teria desde então. Nesse e em tantos outros sentidos, reconheço-me muito privilegiado. Tenho amigos foram ameaçados, agredidos, expulsos de suas casas porque seus familiares falharam no exercício do amor.
O Brasil é um lugar complicado, poderia ter leis e instituições mais seguras para mim e para as demais pessoas LGBTQIA+, porém já estamos melhor do que as pessoas que nasceram em países nos quais homossexualidade é punível com a morte.
A moça que me escreveu no Instagram estava preocupada com o filho, em especial porque não sabia muito como ajudá-lo, como guiá-lo, como ser um porto seguro para ele. Arrisco dizer que não tem fórmula, mas uma boa pista está em buscar apoio, ajuda, conhecimento, comunidade. Amar, acolher, escutar, apoiar no que for possível. Entender que outro ser humano será o que for independentemente de nós – podemos ajudar ou atrapalhar, só isso.
E já que estou falando em ajudar, eis alguns links e referências que podem contribuir nesse início de caminhada.
Carta aos pais de um filho gay - texto de Ruth Manus
Queer Eye - se tiver Netflix, vale a pena dar uma olhada nesse seriado em que cinco homens gays ajudam pessoas a se valorizarem
Orações para Bobby - este filme baseado em fatos reais põe uma pergunta poderosa para pais e mães: o quanto estamos dispostos a amar nossos filhos?
10 frases que um filho ouve dos pais quando conta que é gay - uma matéria simples e boa, bem melhor do que o título sensacionalista sugere (até que a lista realmente começa, aí vira mais uma dessas listas de internet, apesar de bem acertada)
Mãe sempre sabe? - não li, mas encontrei na matéria anterior esse livro e parece ser uma leitura interessante para quem tem filhos LGBTQIA+ e não sabe como proceder
Para continuar caminhando, estou aqui, aberto e disposto a conversar com quem quiser ou precisar de ajuda para ser ou apoiar pessoas LGBTQIA+.
Obrigado e até a próxima carta digital.
Com amor,
Tales
Seu texto é profundo, real, esclarecedor. Só tenho a agradecer o universo por tê-lo como amigo nesse mundo tão cruel. Obrigada.