Recebi uma questão no Pergunta de Raposa (um formulário no qual qualquer pessoa pode fazer perguntas ou sugerir temas de escrita) e gostaria de compartilhar contigo.
Primeiro gostaria de dizer como já te disse em alguns e-mails que adoro recebê-los, parece que eu estou recebendo uma carta. Adorava quando isso existia... você escreve maravilhosamente bem e saber uma pouco de sua vida aí no Japão é muito legal. Sempre fico esperando pelo próximo e-mail. Agora vai a pergunta 😉 Estou escrevendo um livro e precisava criar um conflito e estou bloqueada e isso me frusta. Já escrevi um livro mas o livro era sobre imigração. É a história da vinda de meus avós do Líbano para o Brasil. Então não era um livro sobre ficção digamos assim. Se eu te contasse sobre meu livro você me daria uma luz para criar um conflito interessante para minha história? Um abraço se cuide
A mensagem veio de Lua e minha resposta será a carta digital de hoje.
Em primeiro lugar, obrigado pelo elogio! Eu gosto de cartas, apesar de nunca ter sido muito bom em respondê-las. Acredito que elas traduzem materialmente o que temos a dizer e a expressar de forma muito melhor do que um e-mail ou mensagem eletrônica é capaz de fazer. Se não pelas curvas da tinta no papel criadas específica e unicamente por aquela mão em particular, todo o tempo envolvido na produção e no envio de uma carta sugere um significativo investimento de tempo e atenção – duas das coisas mais preciosas às quais temos acesso enquanto vivos.
Quando escrevemos para alguém, estamos oferecendo tempo e atenção na produção de algo. Quando escrevemos para o mundo – seja uma carta digital com uma lista específica de leitoras, seja uma história a ser lida por um número desconhecido de viventes ao longo do tempo – há aí um ato de esforço, cuidado, tempo e atenção. Esse algo que produzimos se completa no encontro com o outro, com a leitora das nossas palavras.
Se a carta que escrevo nunca chega a ninguém e nunca é lida, ela perde parte de sua função de existir. Se o que escrevo é produzido com a intenção de ser lido, a escrita deixa de ser um exercício puro de expressão e passa a ser o que chamo de design de experiência de leitura. Escrevo para informar, entreter ou inspirar? As palavras que escolho são parte de um léxico acessível para quem me lerá?
Todas as histórias são ficção, incluindo o que “aconteceu de verdade”. Para relatar algo que aconteceu é preciso traduzir em palavras a realidade complexa daquilo que fomos capazes de perceber e pensar. No final das contas, tudo sempre parte de pontos de vista e lugares de fala específicos.
A maior diferença entre escrevermos o que aconteceu de verdade e o que imaginei é que a ficção assumida enquanto ficção não é sobre verdade, é sobre parecer verdade – aquilo que na literatura chamamos de verossimilhança. Não interessa que humanos não são capazes de falar com gatos e que gatos não são capazes de responder: no livro Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami, há um personagem que conversa com gatos e, para ler o livro, faço um contrato com o autor de que suspenderei a minha descrença sobre o que ele tem a me contar desde que ele me ofereça algo em troca. Esse algo há de ser muitas coisas, mas gosto de pensar que geralmente se resume a uma mistura entre informar, entreter e inspirar.
Histórias nos ensinam a lidar com certas situações sem que precisemos passar diretamente por elas. Seres empáticos que somos, conseguimos nos colocar no lugar dos personagens cujas histórias acompanhamos, sentimos suas dores e alegrias e, se tudo der certo, aprendemos e nos inspiramos com suas experiências.
Isso me traz à ideia de conflito. Literariamente, é uma das muitas ferramentas que temos à nossa disposição para construir histórias. O conflito é central na ideia de narrativa que aprendemos no mundo ocidental e tem a ver com obstáculos que os personagens tentarão superar enquanto se movimentam rumo a algum objetivo.
Uma história sem conflitos tende a ser entediante porque sem risco para os personagens temos menos razões para sentir curiosidade sobre o que vai acontecer em seguida. Podemos estar interessadas no que vai acontecer em seguida sem conflitos evidentes – por exemplo, posso ler sobre um templo budista e me encantar com as descrições do que acontece ao redor da personagem, as pinturas nas paredes, as pessoas meditando e vestindo robes laranjas etc. Entretanto, poucas coisas agarram tanto a nossa atenção quanto querer saber como uma situação complicada vai se desenrolar. Se consigo imaginar que algo vai dar problema, já começo a imaginar como há de se resolver, e então, quando menos espero, estou amarrado à história.
O que é um bom conflito para uma história depende de muitos fatores, incluindo o gênero que adotamos. Histórias de romance têm a ver com as dificuldades para encontrar ou sustentar o amor. História de terror têm a ver com o incomensurável sombrio que podemos enfrentar na vida. Histórias de ação têm a ver com superar obstáculos concretos. E assim por diante.
Se pensarmos como designers de experiência de leitura, podemos assumir a postura de testar possibilidades. Um bom conflito é aquele que faz as leitoras ficarem curiosas sobre como ele será resolvido. Nossa primeira leitora somos nós mesmas, então como nos sentimos frente a um conflito específico pode ser um bom termômetro para a qualidade do conflito sobre o qual estamos escrevendo. A partir daí, podemos mostrar o material escrito – nunca a ideia, porque ideia e texto escrito são coisas diferentes e a habilidade de escrever tem a ver com ser capaz de transformar ideias em sequências de palavras que evocam imagens, reflexões e sentimentos – para outros humanos e perguntar sobre a experiência de leitura deles.
Há muitas considerações que eu gostaria de fazer sobre esse processo de mostrar nossos textos em produção para outras pessoas a fim de “testar a qualidade” do que escrevemos, mas esse é um tópico para o futuro.
Dei algumas voltas e não respondi direito à pergunta sobre um “bom conflito”. A verdade é que não tenho uma resposta definitiva para isso. O que posso sugerir é brincar com ideias e ver quais delas mexem mais contigo em relação a essa história específica que tu quer contar. Que dificuldades e problemas te deixariam mais empolgada em ler ou escrever essa história? Na fase da criação o cimento ainda não secou, então tu pode brincar com caminhos diferentes, fazer uma lista, escrever capítulos inteiros para ver como ficam… Alternativamente, tu pode copiar alguma escritora que tu gosta. Não palavra por palavra, óbvio, mas a estrutura.
O que quer que tu faça, minha sugestão é que tu termine a história. Mesmo que fique ruim, mesmo que tu nunca mostre pra ninguém. O Neil Gaiman tem um curso online no qual ele fala que a gente aprende quando termina as coisas, e ele é o mais próximo de ídolo que tenho no universo da escrita, então faço minhas as palavras dele.
Inclusive, nada impede de retomar uma história finalizada no passado e editá-la ou reescrevê-la. Apenas certifique-se de terminar o que começou.
🙂
Com carinho,
Tales
Gratidão
Amigo
Sigo suas postagens, tenho prioridades em que dedico meu tempo á leituras, e você conquistou este espaço, sou grato pela dedicação de seu tempo, atenção e conhecimento.
Parabens pelo compartilhar, uma virtude de poucas consciências e de grande importância para o cosmo.
Tenho curiosidade pela cultura, trafores e trafares desta comunidade e deste país
Abraços fraternos e energizados