Não faz muito tempo, acordei assustado com um terremoto e pensei se seria dessa vez que eu pagaria o preço pelo meu despreparo. As precauções de segurança para um eventual terremoto devastador são relativamente simples: montar um kit que inclua comidas fáceis, água, documentos pessoais, produtos de higiene básica, lanterna e bateria para carregar o celular.
Nessa semana, outra vez acordei com o planeta chacoalhando. “É só um terremoto”, pensei. Logo ele passou, eu virei para o lado e voltei a dormir.
Embora considere positiva a ausência de preocupação e ansiedade sobre um possível terremoto intenso, pois não me vejo paralisado frente ao que pode vir a acontecer algum dia, há aí também um componente de imprudência que talvez seja um traço de personalidade mais profundo.
De acordo com a NHK,
O Comitê de Pesquisa sobre Terremotos do governo japonês afirma que existe uma possibilidade de 70% a 80% de que um terremoto de magnitude de 8 a 9 pode ocorrer na área dentro dos próximos 30 anos.
Ou seja, esse pode vir a acontecer algum dia parece bastante palpável.
Aproveitando o tempo livre concedido pelas férias na escola, me envolvi em uma série de atividades novas, incluindo encontros para praticar o idioma. Usei o site Meetup para encontrar um grupo de language exchange, ou troca de idiomas.
Funciona assim: cada pessoa vai ao encontro com um idioma que pretende aprender (no meu caso, japonês) e com um ou mais idiomas que pode compartilhar (português e inglês). Durante o evento, o facilitador divide as pessoas em duplas ou trios e estipula qual é o idioma daquela mesa naquela rodada. Em uma noite, conversei em japonês por duas rodadas de 15 minutos e depois em inglês em outras duas. Noutra vez, foram duas rodadas de japonês, uma em português e mais outra misturando inglês e japonês.
Na escola, o foco das atividades está na aprendizagem de estruturas gramaticais. Embora escutemos e falemos com alguma frequência, não há uma prática deliberada voltada para o uso do idioma de forma mais cotidiana. Essa é uma metodologia ótima para testes: tenho um amigo que passou no segundo nível mais difícil de um teste de proficiência em língua japonesa. O teste envolve leitura e escuta e é realizado por meio de questões de múltipla escolha. Esse meu amigo é incapaz de sustentar uma conversa em japonês, mesmo possuindo um conhecimento de vocabulário e gramática muito mais extenso que o meu.
Durante os encontros do grupo de troca de idiomas, muitas vezes me vejo sem saber como dizer aquilo que quero dizer. Como explico meu trabalho? Como conto que escrevo na internet desde meus doze anos? Como explico o que é comunicação não-violenta? Tentar conversar sobre esses temas é difícil, porém me oferece uma pista importante para meu processo de aprendizagem: uma noção realista de quais são os limites atuais da minha habilidade.
Ciente desses limites, posso estudar o vocabulário e as estruturas gramaticais que preciso para conseguir falar sobre essas coisas da próxima vez.
Educação é uma das minhas paixões na vida. Passei os últimos dez anos ajudando pessoas a aprenderem a arte da escrita criativa e da comunicação não-violenta, entre outras coisas. Se tem algo que me empolga, é pensar e conversar sobre didática, processos pedagógicos e aprendizagem como um todo.
Aqui no Japão, tenho encontrado bastante dificuldade em absorver os conteúdos das aulas de japonês. Por dia, aprendemos 2-4 novas estruturas gramaticais, 6-7 kanjis, além de inúmeros vocabulários novos. São três horas por dia na escola, mais 1-3 horas por dia fazendo a preparação para o dia seguinte e os deveres de casa, muitas vezes sem conseguir realmente dedicar atenção de qualidade para o material estudado. Isso tudo, é claro, além das 4-6 horas de trabalho, dos encontros sociais e das atividades de manutenção de vida, como cozinhar, fazer exercícios, tomar banho, limpar a casa etc.
Buscando aprender a aprender melhor, comecei a ler o livro Make it stick (a versão em português chama-se Fixe o conhecimento). Tenho gostado das reflexões proporcionadas por ele, algumas contra-intuitivas. Algumas notas a partir da leitura:
Nossa habilidade é definida pela capacidade de recuperar o conhecimento que precisamos no momento em que precisamos – por exemplo, as palavras e estruturas para responder em japonês durante uma conversa.
Testes são úteis como ferramentas de avaliação de habilidade e, também, como exercícios de recuperação de conhecimento. Quanto mais difícil recuperar um conhecimento de memória, mais duradouro será o aprendizado.
Reler um texto conhecido nos faz acreditar que temos maestria sobre o conteúdo, porém essa é apenas uma ilusão de familiaridade similar ao que acontece quando vemos uma pessoa várias vezes nas redes sociais e passamos a acreditar que elas têm alguma autoridade sobre o que estão dizendo.
A forma como praticamos é a forma como conseguiremos fazer “na vida real”. Se pratico apenas uma resposta pronta para uma pergunta definida, terei dificuldade em expandir o conhecimento e aplicá-lo em outras situações.
O aprendizado se torna mais eficaz quando entendemos regras gerais e estruturas, em vez de casos isolados. Estabelecer relações entre diferentes elementos nos ajuda a compreender suas particularidades.
Nossa memória se apoia em “pistas” para ser recuperada mais facilmente. Quanto mais vívidas e concretas forem essas pistas, mais fácil será ativar a memória para recuperar os conhecimentos que precisamos.
Quero aplicar essas ideias ao meu estudo do idioma. Meu plano é dedicar mais tempo a atividades que possam me render melhores resultados, especialmente quando fora da sala de aula. Não estou particularmente interessado nos testes de proficiência, mas sim no “teste da vida”: quero ser capaz de me comunicar apenas em japonês sem usar outros idiomas ou aplicativos como muletas.
Viver sob o capitalismo torna aprender um novo idioma e se preparar para desastres muito mais difícil do que precisaria ser. Encontrar ou produzir os recursos para continuar vivo e saudável é um desafio considerável que demanda grande parte do meu tempo e energia. Essa é, obviamente, uma realidade para a maioria dos seres humanos, muitos dos quais enfrentam condições piores que as minhas.
Não acredito que seja possível derrubar tudo e começar do zero, então o jeito é cultivar pequenas bolhas de utopia onde pudermos.
Muitas dicas e truques de memória envolvem a visualização criativa de ambientes e cenários, associando elementos a eles para que, depois, seja mais fácil recordar dessas imagens. Porém, o que sobre para pessoas como eu, que têm aphantasia, ou seja, a incapacidade de visualizar coisas com o olho da mente?
Se alguém souber de dicas e truques para aprimorar a memória que não dependam de visualização, por favor compartilhe comigo.
No domingo, fui caminhar no parque e vi um moço fazendo uma performance com ioiô e outros objetos. Fui atraído pela curiosidade e fiquei pela maestria com que ele realizava as acrobacias e o carisma que manifestava ao comandar a audiência. Durante todo o período, me vi sorrindo feito bobo, encantado com a maravilha daquele momento.
Eu quis ser como ele, exuberante.
Depois de anos, finalmente voltei a cozinhar em casa. As férias da escola têm me permitido esse tempo extra para cuidar da vida. Comprei uma panela de arroz para complementar meu fogão, que tem apenas uma boca, e agora tenho preparado refeições com mais atenção. A ideia era poupar tempo, mas confesso que tenho gostado da alquimia culinária.
Voltei também a fazer exercícios físicos usando um aplicativo de “treinamento”, inicialmente entre sete e vinte minutos por dia. Até comprei um tapetinho daqueles de ioga porque fazer flexões no chão me doeu os joelhos – e a aí já se vê que preciso de mais prática porque no meio das flexões acabo recorrendo aos joelhos.
Quero fazer mil outras coisas, mas estou me controlando.
Ou tentando.
Não sou muito bom em me preparar, mas agir por impulso é comigo mesmo.
Outro aprendizado do livro é sobre como nossa mentalidade influencia o que conseguimos fazer. Pessoas que se acham capazes porque são inteligentes ou talentosas tendem a se limitar, enquanto pessoas que reconhecem que aprendizagem é resultado de esforço acabam aprendendo mais.
Isso atravessa nossa linguagem. Acabei de escrever que não sou muito bom em me preparar, uma ideia que me enjaula numa noção bastante restrita de quem eu sou e de quem eu posso ser. Se não sou bom em me preparar, esse é um traço meu e pronto, o que me resta é aceitar.
A pergunta aqui pode ser outra: como posso me preparar melhor no futuro?
Vou encerrando por aqui a carta digital de hoje.
Minhas férias da escola estão agitadas, e isso me deixou pensando: o que tu costuma fazer quando tem um tempo livre extra?
Com carinho,
Tales
"Esse meu amigo é incapaz de sustentar uma conversa em japonês, mesmo possuindo um conhecimento de vocabulário e gramática muito mais extenso que o meu."
Me lembrei de um professor de alemão que disse que no primeiro dia de aula os alunos sempre perguntam se serão capazes de falar alemão no final do curso. E a resposta dele sempre é: depende se vocês têm o que dizer.
Gratidão Amigo