Bom dia,
Em 2009, como preparação para tentar a prova do mestrado em Cultura Visual, decidi que faria um curso de especialização em Expressão Gráfica.
No curso, estudamos disciplinas diversas, várias delas muito interessantes para o Tales da época, como desenho, metodologia científica e pensamento visual. Meus aprendizados em algumas dessas aulas me acompanham ainda hoje, como a noção de estereótipo enquanto um pensamento que sempre percorre um mesmo atalho mental e, por isso, vai se tornando cada vez mais rápido até virar um preconceito. Outras disciplinas me interessaram menos, na época, e até foram motivo de chacota entre meus colegas e mim. Dentre essas, sustentabilidade e utopia.
Eu pensava que utopia não tinha nada a ver com nada, que era uma bobagem acadêmica desnecessária de ser explorada e estudada. No máximo, um passatempo para quem não tivesse nada melhor a fazer.
Bem… Seguindo minha filosofia de que estamos na vida para testar limites e pagar a língua, creio que tu já imagina o que vou dizer, né?
Pois é, hoje sou eu quem fala em utopia nos círculos pelos quais transito.
Não sei precisar em que momento minha posição sobre a ideia de utopia se transformou. O Tales de 2009, que recusava a importância dessa reflexão, estava ainda em busca de compreender a própria identidade. O Tales de 2022 tem uma relação mais confortável não só com a própria existência, mas também com as redes de afeto e parceria que foi construindo ao longo do tempo. Entre esses dois Tales, muita coisa mudou.
Em tempos recentes, comecei a chamar os encontros do Ninho de Escritores como “uma bolha de utopia”, um ambiente no qual podemos experimentar o tipo de conversa e relacionamento que gostaríamos que existisse: lúcido, leve e não-violento, no qual nossa criatividade é apoiada, no qual o medo de errar dá lugar para a experimentação, no qual as pessoas se acompanham, incentivam e apoiam.
Essa bolha tem um efeito muito importante: ela mostra que tal ambiente é possível. Como consequência, fui percebendo as participantes do Ninho levando nossos princípios e práticas para outros espaços, contaminando-os com nossas propostas de inclusão, conexão e harmonia. Passei a defender que, uma vez que conhecemos a possibilidade da utopia, o “mundo real” vai se tornando insustentável porque sabemos que é possível viver relações melhores.
Isso fica ainda mais forte conforme nos encontramos de novo e de novo, semana após semana, cultivando um ambiente que nos nutre. Os encontros do Ninho, além de momentos de aprendizagem e experimentação criativa, também se tornaram momentos para recordar e praticar valores importantes. Assim, a minha vida, por criar, sustentar e participar do Ninho, ficou melhor porque pude transbordar essas práticas todas para outros lugares nos quais existo.
O Ninho se tornou uma bolha de utopia tão importante para mim que cheguei a pensar que já nem precisava mais escrever: poderia dedicar toda minha energia para cuidar desses ambientes em que praticamos o acolhimento. Até imagino que eu seria bem feliz assim, apenas cultivando esses espaços, mas algo ainda estava faltando. Eu queria continuar escrevendo, mas não sabia exatamente o que escrever. Não sabia nem mesmo por que escrever.
Imagina o tamanho da crise de consciência quando percebi que meu serviço para o mundo vinha sendo cuidar de escritores, porém eu mesmo não estava encontrando razão nem motivação para escrever.
Semana passada as coisas ficaram mais pesadas do que o usual aqui dentro de mim e escrevi sobre como manter a leveza num mundo pesado. Escrevi esse texto porque precisava me lembrar.
E escrevendo, lembrei.
Lembrei de uma explicação que li no site da School of Life (em inglês) sobre por que pessoas religiosas liam de novo e de novo o mesmo livro. A razão seria a seguinte: nossa cabeça é como um vaso furado. Vamos enchendo-o com tudo o que absorvemos do mundo. Porém, por ser furado, vai tudo escorrendo para fora conforme novas coisas são inseridas. Se eu não fizer o esforço de ativamente relembrar e praticar aquilo que me importa, mesmo os aprendizados e valores que me são fundamentais também serão jorrados para fora enquanto o mundo me preenche de ansiedade, violência e desespero.
Lembrei que reler um livro sagrado não é a única maneira de recordar.1
Eu posso também escrever com a intenção de soprar bolhas de utopia por aí.
Quero mostrar que é possível, quero lembrar que tem como, quero incentivar quem me lê a continuar buscando maneiras de criar mundos melhores – inclusive porque eu leio meus próprios textos, então também quero recordar a mim mesmo. Tenho boas ideias sobre como fazer isso e é essa a minha razão de continuar escrevendo.
Poderia ser diferente 🤸♂️
Por esses dias, parece que andou circulando uma nova tendência no TikTok, na qual pais chamam os filhos pequenos para colocarem o sapato e irem brigar com alguém.
A “graça” dessa tendência é registrar a confusão das crianças quando a situação inusitada é apresentada. Algumas crianças levantam prontamente para entrar na briga enquanto outras paralisam frente ao absurdo do pedido. Em uma das versões que assisti, em inglês, o vídeo termina quando o menino responde à mãe que não pode ir brigar com alguém porque ele é apenas um garoto depressivo.
O que me incomoda nessa tendência é a naturalização da violência física como uma possibilidade adequada para lidar com conflitos interpessoais. O convite nunca é “preciso que você me defenda”, é sempre “preciso que você bata em fulano”, como se uma disputa entre pessoas pudesse ser satisfatoriamente resolvida por meio do uso da força.
Ênfase no satisfatoriamente.
Temos exemplos infinitos de como a força é usada para esmagar pessoas em conflito – e geralmente as pessoas esmagadas são aquelas com menos poder social, econômico, físico, etc. Quando isso acontece, porém, o conflito não é resolvido. Ele é no máximo tirado de vista e as pessoas feridas recuam porque reconhecem que não têm força suficiente para bater de volta.
Um conflito só é verdadeiramente resolvido quando as pessoas envolvidas têm suas necessidades devidamente escutadas e levadas em consideração na hora de pensar e agir sobre o futuro.
Com isso em mente, fiquei pensando numa outra proposta de vídeo. A figura responsável (pai, mãe, irmão etc.) entra no quarto às pressas, visivelmente ansiosa, e chama a criança: “Fulano, briguei com o vizinho e agora ele está brabo comigo. Preciso de ajuda para resolver a situação. Rápido, me ajuda, como eu poderia conversar com ele?”. Ou por que será que ele ficou irritado? Ou o que eu poderia ter feito diferente para cuidar das necessidades dele sem abrir mão das minhas?
E aí, desse jeitinho, a gente começa a imaginar juntos outros mundos possíveis.
Sugiro dar uma olhada 🧐
Algumas das coisas para as quais andei dedicando atenção.
Exemplo de bom jornalismo
Às vezes a grande mídia acerta na cobertura jornalística. É o caso desta matéria do Estadão em que as mentiras, exageros e distorções proferidas pelo nosso atual presidente são verificadas e desmentidas uma a uma.
Amor, sexo e amizade
Vi esse tuíte e fiquei pensando um punhado de coisas.
Começa que esse é um pensamento heteronormativo – que pressupõe que pessoas necessariamente vão se interessar afetivossexualmente por pessoas de outro gênero, desconsiderando que há uma multiplicidade de afetos possíveis entre seres humanos. Segundo, reforça a noção de que pessoas não têm controle sobre o que fazem com esses afetos, como se sentir tesão por alguém sinalizasse uma impossibilidade de qualquer relacionamento além do sexual.
E por fim, que insistência irritante em considerar sexo algo tão importante que divide as pessoas entre aquelas com as quais posso ter prazer sexual e aquelas com as quais não devo ter prazer sexual. Tenho amigos pelos quais não sinto tesão e, por isso, nunca exploramos possibilidades de toques e prazeres eróticos. Tenho amigos com os quais já transei. A diferença entre eles não está na possibilidade ou não de me relacionar sexualmente, está na multiplicidade maravilhosa que existe entre seres humanos e seus afetos diversos.
Então quer ter amigos do mesmo gênero ou de outros gêneros e não transar com eles? Tá liberado. Quer ter amigos e transar com eles? Está liberado também. Com respeito e acordos claros, se ajeitar direitinho, todo mundo que quer transar, transa.
Mais um pouco sobre sexo
A Vanessa Guedes escreveu essa semana sobre um programa da Netflix em que pessoas constroem um quarto inteiramente dedicado para o sexo. Vale a leitura: Um sexo todo seu.
Fazer a cidade juntos
Ainda na lógica de pensar as relações sociais e como os ambientes os afetam, encontrei nas redes uma amiga (a Fernanda Tosta, cujo trabalho com arte, educação e marcenaria eu super recomendo acompanhar) o livro Fazer Juntos, de Laura Sobral, sobre iniciativas de cooperação e gestão compartilhada em cidades, pensando o espaço urbano como um lugar vivo que merece atenção e cultivo.
Obrigado pela leitura!
Com carinho,
Tales
Como não sou bobo, decidi voltar a ler livros que conectam com as ideias de mundo que quero continuar praticando. Estou esperando chegar aqui em casa o livro O mundo poderia ser diferente e conto mais sobre ele depois de ler. O lugar vai fazer um ciclo de estudos sobre este livro, então é possível encontrar mais informações no site deles.