Mudei de casa algumas vezes e é sempre uma aventura, pra não dizer uma novela. Sair de uma cidade para outra tem aquela função de descobrir o que os mapas sinalizam e, principalmente, o que eles não revelam. Não está no Google Maps qual é a rua na qual me sentirei tranquilo caminhando à noite, tampouco onde tem aquela árvore que vai me nutrir de afeto.
A mudança já é todo um processo em si, mas o texto de hoje é sobre a busca por uma nova moradia.
Sempre que penso nisso, lembro que algumas imobiliárias de São Paulo informam “rua asfaltada” como um dos benefícios oferecidos pelos imóveis anunciados. É claro que só é engraçado porque ao longo da vida o privilégio me protegeu de ter que caminhar na terra batida antes de entrar em casa. O único local em que isso aconteceu comigo foi na praia, mas praia tem autorização para ser um tanto rústica sem perder o refinamento. Aliás, a ideia de “casa na praia” enquanto moradia secundária já diz muito sobre acesso e privilégio.
Em Porto Alegre, a casa onde superei as etapas da infância e adolescência fica na periferia, já encostadinha em outra cidade. Capitais têm essa mania de amalgamarem cidades próximas e virarem uma mistura em que os limites são imaginários. Aliás, me corrijo: que limite ou fronteira é qualquer coisa mais que o produto da imaginação separatista de alguém?
Morar na periferia de Porto Alegre não significou muita coisa enquanto o tamanho do meu mundo cabia nas rodas de uma bicicleta. O mais longe era a escola, até a qual eu levava uns trinta minutos caminhando. Quando mudei de escola e passei a depender de dois ônibus para retornar à casa, percebi que aquele meu mundo rico era um recorte pequenino no contexto da cidade, algo que ficou ainda mais evidente quando entrei na faculdade.
Nessa época, todos acontecimentos que me importavam aconteciam a pelo menos quarenta minutos da minha casa. Não ajudava que eu fosse um bicho do mato que não entendia direito como me enturmar com outras pessoas e que saía das aulas direto para casa sempre que podia, sem saber direito que viver a cidade e as relações poderia ter sido uma parte integral da minha vivência universitária.
Fui experimentar essa sensação quando mudei para Goiânia e passei a morar no centro. Com exceção da faculdade, eu ia para vários cantos a pé, bosque, mercado, balada, tudo pertinho. Minha convicção ao escolher moradia, desde então, era que eu queria estar perto, queria que minha casa fosse caminho, que pessoas queridas pudessem olhar para um prédio e lembrar de mim.
Em São Paulo, tentei a mesma lógica, mas os deslocamentos e os afetos nessa cidade gigantesca operam de outra maneira. E eu, também, inventei de ficar enfurnado em casa mesmo perto de tudo, o que me sugere que não era a distância a responsável pelo meu distanciamento.
Atualmente estou procurando por um apartamento em Tóquio, onde em breve estarei morando. Não entendo o mapa, não conheço as regiões, não sei perto do que eu quero estar. Solicitei informações sobre um imóvel, o moço da imobiliária disse que não o alugaria porque tem uma construção em andamento ao lado e seria barulhento demais. Não sei se fiquei feliz com o cuidado ou se achei impertinente, o que me abriu uma porta para refletir sobre a relação entre moradia e poder.
Poder?
É, poder, privilégio e tal. Começando com a ideia de cuidado, que no meu entendimento tem a ver com ajudar a se desenvolver do jeito que for. Assisti a um vídeo esses dias em que a pessoa dizia: “se você terá problemas com o gênero, a orientação sexual ou qualquer outra escolha de vida do seu filho, não tenha filhos”. Achei apropriado. Às vezes a gente confunde cuidado com controle – sei que fiz muito disso, em particular nos meus relacionamentos monogâmicos – e começa a restringir as possibilidades de fruição e vivência dos outros achando que, com isso, estamos fazendo a melhor escolha para a outra pessoa.
Perceba que não estou falando de todas as situações possíveis na vida. Se uma criança está correndo pra frente de um caminhão em movimento numa avenida agitada, tem mais é que controlar e puxar a criança de volta para segurança. O que não dá para perder de vista é que criança cresce e namorado há de ser adulto.
Ops, digressão detectada com sucesso.
Quero falar de poder, mas não de relacionamentos, não hoje.
O tema é moradia e, especificamente, as coisas que demorei a perceber porque poder é invisível, é coisa que se nota quando falta. Sabe privilégio de ser homem, branco, rico e tal? Quem é não percebe que tem. Mesmo eu, todo estudado e tal, ainda me deixo levar pela conveniência de não lavar louça em casa porque ou minha tia ou minha mãe o fará, coisinha banal e tão particular da minha família, só que também tão banal e particular de tantas outras famílias a ponto de ser reconhecível como privilégio masculino.
Em toda minha reflexão sobre moradia e escolhas, eu pude o tempo inteiro escolher. Mesmo agora, indo para Tóquio, uma cidade mais cara que São Paulo – e vamos e venhamos, São Paulo já não é uma cidade baratinha – estou fazendo escolhas muito específicas sobre o que quero experimentar porque eu posso fazê-las. Tenho dinheiro para bancar essas escolhas, falo inglês, tive tempo e energia para estudar japonês.
Não sou rico e portanto há um número incontável de escolhas que não me são possíveis nesse momento. Também não sou heterossexual, então há países nos quais minha mera existência pode ser punida com a morte – e ao comprar passagens para o Japão, quero evitar fazer conexões neles porque gosto de estar vivo.
Eu posso achar “rua asfaltada” uma coisa engraçada porque, na loteria da vida, tirei algumas sortes e aproveitei outras tantas. Tem mérito, mas não tem meritocracia. Não sou herdeiro de grandes fortunas, mas de pequenas decisões, escolhas e possibilidades feitas por tantas outras pessoas que pavimentaram meu caminho até aqui, hoje, escrevendo e refletindo sobre o futuro.
Às vezes tropeço na ideia de que, porque tenho poder e outras pessoas não, eu deveria me sentir mal. Às vezes inclusive me sinto. É a tal da culpa branca, culpa da classe média etc., aquele sentimento inútil que geralmente resulta em masturbação mental e no roubo dos holofotes de qualquer ação transformativa prática para o próprio ego.
Não estou interessado em mergulhar nessa viagem ao centro do meu umbigo.
Entretanto, não quero perder de vista essa discussão sobre poder e privilégio porque lucidez é algo que me importa. Quero manter comigo a noção de que eu não mereço minhas escolhas, não mais do que qualquer outro ser humano. No mundo em que quero viver, todo mundo deveria ter acesso facilitado a escolhas que cuidem de seu bem-estar, das pessoas ao seu redor e de todos os seres humanos que ainda estão por nascer.
Ao mesmo tempo, quero um apartamento no Japão com sacada, banheira e, se possível, uma privada que aquece o assento e jorra água. Se tocar musiquinha, melhor ainda.
Porque leveza também me é importante.
Para olhar por aí 🧐
Um anime: Ranking of Kings
Bojji é um príncipe surdo e sem força física alguma – porque seu pai gigante fez um pacto para se tornar muito forte, oferecendo em troca de seu poder a fraqueza de seu primogênito. Bojji é visto por todos como um idiota, sempre sorrindo mesmo enquanto o xingam e desprezam. Todos acham que ele não é capaz de entendê-los assim como eles não o entendem.
O que não sabem é que a força de Bojji é seu coração aberto e sua coragem de perseverar a despeito de tudo. O que não sabem é que Bojji aprendeu e segue aprendendo que a força do acolhimento é tão maior que qualquer outra.
Ranking of Kings é um anime para sorrir, chorar, sorrir chorando e chorar sorrindo de novo e outra vez. Recomendo demais!
Um livro: O mundo poderia ser diferente
Escrito pelo budista Norman Fischer, o livro O mundo poderia ser diferente apresenta e discute as seis perfeições budistas – práticas de pensar e agir – propondo maneiras de vivê-las no cotidiano com o apoio da imaginação como força motriz para realizá-las como for possível. São elas: generosidade, conduta ética, paciência, alegre empenho, meditação e compreensão.
Estou lendo aos poucos e confirmando cada vez mais que, dentre as filosofias que conheço, a que melhor acolhe minha visão de mundo é o zen budismo.
Sobre existir para ter uma carreira
A Gaía Passareli, do Tá todo mundo tentando, escreveu uma carta magnífica sobre como nossas profissões às vezes tomam a forma de quem somos e dicas práticas que podemos seguir para “ter uma carreira”. Pedacinho:
Seja como for, o fato é que escrever se tornou minha carreira. E há alguns anos li de alguém na internet (já perdi esse link) uma série de dicas (todo mundo ama dicas!) para “ter uma carreira”. Vale pra escrita, mas vale para qualquer outra coisa. Reescrevi de cabeça o que lembro, mas se você quiser economizar tempo, dá para resumir assim: cuide do seu corpo, da sua cabeça e de como gasta o seu tempo. Ninguém vai fazer isso por você.
Poder, moradia e racismo imobiliário
Não sei exatamente em qual newsletter vi esse tuíte, mas achei tão pertinente para a discussão que trouxe lá em cima.
Não queria ser um jornalista estrangeiro cobrindo o Brasil…
Sobre ter uma missão na vida
A Carol Miranda escreveu na tem alguém aí uma reflexão bonita sobre nossa missão na vida, inspirada em uma frase do livro A insustentável leveza do ser. Gostei tanto que resolvi trazer aqui:
“missão, Tereza, é uma palavra idiota. eu não tenho missão. ninguém tem missão. e é um enorme alívio perceber que somos livres, que não temos missão.”
Por mais links da semana
Eu amo links da semana. Sigo várias newsletters apenas pela curadoria de coisas interessantes que povoam nossa internet. A Bárbara Bom Ângelo, do Queria ser grande, mas desisti, fez uma seleção fabulosa na edição mais recente da carta digital dela. Recomendo o clique.
Texto gostoso de ler
É a edição 21 do Isto não é um telegrama, da Mariana Moro.
Coisas que podemos dizer
Em inglês, este site apresenta algumas coisas que podemos dizer em vez de outras, se o que queremos é uma relação mais saudável com a vida. Apreciei bastante!
Um exemplinho:
Textinhos no Instagram
Decidi explorar pequenos textinhos a partir de objetos e situações cotidianas lá no meu Instagram. Tem sido um exercício de humildade por colocar no feed uma sequência de fotos que não são super estéticas, são apenas… comuns. Os textos também, são escritos ligeiros, relativamente despretensiosos.
Por ora, estou mantendo pequena a expectativa de que esse exercício criativo renda milhares de curtidas e seguidores. Espero continuar assim! 🥰
Se algo nesta carta digital te tocou, agradou ou incomodou, me deixa um comentário? E se ainda não assina, fica aqui o convite:
Com carinho,
Tales
Obrigado pelo texto, Tales! Adorei a reflexão sobre escolhas e poder.
Quando você citou que as vezes se sente mau por ter acesso a determinadas possibilidades que a maioria das pessoas não tem, lembrei que já senti o contrário: me senti mal em ambientes e situações que antes eu via como inalcançáveis.
Algo como se eu não devesse estar ali, seja por não merecer ou por aquilo não fazer parte do meu “normal”, um gay do interior do nordeste, vindo de uma família de classe média baixa, que precisa estudar e trabalhar para se manter.
Quase sempre eram situações onde o fator dinheiro falava mais alto.