Durante muitos anos, julguei pessoas que gostam de novelas. Pensava, do alto da minha autoproclamada superioridade moral, em como podiam perder tempo acompanhando aquelas histórias longas e, por vezes, repetitivas. Tantas coisas melhores para fazer com o próprio tempo, não é?
Corta para o futuro, qual é o gênero que mais gosto em histórias em quadrinhos?
O tal do slice of life, ou fatia/recorte da vida, um gênero que mostra as cotidianidades na vida dos personagens. Tem drama, tem humor, às vezes tem ação; são experiências comuns se desenrolando nas páginas (de papel ou de pixel). E o que são novelas, se não um formato audiovisual muito bem-sucedido de slice of life?
Como sempre digo, estamos na vida pra testar limites e pagar a língua – e esse é um belo exemplo de pagar a língua.
Eu acompanho duas histórias em quadrinhos com publicações diárias, ambas em inglês: Questionable Content, sobre um grupo de pessoas vivendo numa cidadezinha e lidando com dramas existenciais e convivendo com robôs inteligentes altamente tecnológicos que têm seus próprios dramas, e Dumbing of Age, que acompanha um grupo de estudantes tentando encontrar sentido na vida enquanto lidam com seus primeiros anos na universidade. Todos os dias, leio a nova página publicada de cada uma delas. Há anos, acompanho as vidas de personagens que não existem além da ficção e mais de uma vez já me peguei torcendo pelos personagens.
Alguns momentos de Questionable Content, por exemplo, ainda reverberam em mim mesmo depois de meses ou anos da publicação original.
Um exemplo foi quando o primeiro personagem principal (cujo nome esqueci, e digo primeiro porque hoje em dia o elenco é tão variado que nem dá mais para considerar um único núcleo com central) começou a namorar uma mulher trans. No momento em que os dois foram transar pela primeira vez, ela o interrompe e tira a roupa, mostrando seu corpo para ele – nós leitores não a vemos por inteiro. Ele responde: “você é linda”. Eu sinto um arrepio até hoje quando penso nessa cena, no cuidado tocante ao tratar a insegurança que alguém na posição da namorada poderia sentir – e no caso da personagem, estava sentindo.
Outro exemplo foi acompanhar dois personagens descobrindo a própria sexualidade enquanto homens gays, porém nervosos ante a possibilidade de assumirem isso para si mesmos e um para o outro. A química entre os dois estalava eletricidade, mas ambos seguiam dando voltas e voltas, sem um contato direto.
Até que finalmente, um beijo. Lembro que passei semanas acompanhando e torcendo para que isso acontecesse, e celebrei o cuidado e a delicadeza com que os quadrinhos apresentaram essa cena.
Eu sei que são personagens de ficção, porém me importo com eles e quero saber o que acontece em suas vidas. Celebro suas conquistas e enluto seus sofrimentos. Em Dumbing of Age, há momentos em que a história – normalmente leve e risonha – explora questões como abuso e luto e, puxa vida, o quanto já me peguei pensando sobre como eu lidaria com o que as personagens estão vivendo.
Não é só nos quadrinhos que me interesso por slice of life como um gênero. Aqui no universo das newsletters, tenho me percebido atraído por um tipo bem específico de escrita: aquela que compartilha fatias da própria vida para elaborar os textos. Tem algo de crônica, tem algo de autobiografia, mas principalmente tem um olhar pessoal para a própria existência, e isso me traz um sabor que muito me agrada.
Em anos passados, eu me definia como escritor de autoajuda, em grande medida porque meus textos se concentravam em explorar possibilidades criativas para escrever e viver melhor. Mais recentemente, me desconectei dessa proposta e até me senti um pouco sem rumo na escrita, porém aos poucos venho me encontrando – aqui no Olhar de Raposa – com esse lugar de compartilhar a própria vida, ou pelo menos fatias dela.
E não porque eu tenha algo a dizer…
Mas talvez porque eu tenha algo sobre como dizer.
Nas últimas semanas, estou mergulhado no jogo Baldurs Gate 3. Tenho mil coisas positivas a falar sobre ele – inclusive o fato de que meu personagem está atualmente desenvolvendo romance com dois outros personagens em paralelo e talvez haja espaço para que um outro personagem se junte não só a mim, mas sugira formar um trio – porém hoje quero comentar sobre duas coisas externas ao jogo.
A primeira delas é que tenho dedicado um tempo considerável para o jogo, o que está me roubando tempo que eu normalmente dedicaria para outras coisas que também me importam, como escrita, vida social e leitura. Inclusive, atrasei a devolução de livros na biblioteca e faleci um pouquinho de vergonha.
A segunda coisa tem a ver com meu plano de mudar para o outro lado do planeta. Baldurs Gate 3 foi lançado em acesso antecipado (ou seja, apenas uma parte do jogo estava disponível na época) no meio da pandemia. Eu estava trancado em casa e trabalhando demais, então comprei um computador bem poderoso para rodar esse jogo e outros tantos.
Eu trabalho no notebook, mas o computador que comprei é um desktop daqueles grandões. Enquanto eu tinha uma casa, antes de ir para o Japão, ou mesmo enquanto estou na casa do Ayrton, manter um desktop grandão não era um problema. Porém, com meu plano de migrar para o Japão em janeiro, descobri que os preços para levar o computador seriam absurdos. Quando Baldurs Gate 3 finalmente foi lançado por inteiro, meu plano inicial era esperar até o Japão para então jogar.
Entretanto, conversando com uma amiga mais inteligente que eu – se tem uma diquinha boa pra vida, é se cercar de gente que é melhor que a gente nas coisas – ela sugeriu que eu terminasse o jogo antes de viajar. Desta forma, posso vender o computador e aí tenho uma coisa pesada e volumosa a menos para levar comigo.
Gostei da ideia e estou usando-a para justificar meu vício. 🙃
Comecei a olhar apartamentos para alugar em Tóquio. Em outubro do ano passado, quando aluguei o cantinho onde vivi por sete meses, eu não sabia o que esperar daquela megalópole, não conhecia seus becos e sons e, principalmente, não sabia como me sentiria por lá.
Hoje eu sei muito mais. Conheço os bairros e as linhas de metrô, os barulhos típicos das lojas de conveniência e dos semáforos (inclusive, saudade, parecem uns passarinhos piando), a sensação de segurança perpétua.
O que eu não sei é quanto tempo vou morar lá. Se ano passado eu tinha certeza que ficaria apenas sete meses e isso acabou limitando minhas escolhas de vida, desta vez é o não saber que me limita. A maior parte dos aluguéis em Tóquio exigem um contrato de dois anos, então preciso considerar a possibilidade de pagar multa caso fique menos tempo que isso – e se meu visto sair conforme espero, terei pouco menos de um ano e meio para viver legalmente sem trocar de visto, ou seja, as chances de eu permanecer dois anos num mesmo apartamento são pequenas.
Pequenas, também, são as dimensões disponíveis a um preço que consigo pagar. Aluguel em Tóquio custa mais que em São Paulo – o apartamento que aluguei anteriormente tinha 16 metros quadrados e custava 100.000 ienes por mês, o que na cotação atual converte para R$ 3.300, mais ou menos.
Estou procurando preços menores, mas essa escolha envolverá uma série de questões, numa mistura de como eu quero, consigo e posso viver. Eu quero um lugar bem iluminado e espaçoso, com vista, silêncio e solzinho. Conseguir, sei que consigo lidar com ambientes apertados e escuros (mas a que custo?). Agora, entre esses dois, o que eu posso sustentar?
Enquanto pensava sobre isso, lembrei de dois textos: Em quantos metros quadrados cabem a sua vida, da Luísa Gonçalves no
, e Eu adoro morar aqui, da Carla Soares no . Recomendo a leitura de ambos.Pesquisei nas minhas fotos de Tóquio e não encontrei imagens do meu apartamento. Mesmo no início do meu período no Japão, quando estava fotografando tudo para todos os lados, não registrei meu local de moradia.
Isso me lembra quando, mais de uma década atrás, namorei um menino, mas não contei para quase ninguém. Foi um período meio pesado da vida, o relacionamento não foi muito positivo para nenhum de nós e fiz escolhas das quais não me orgulho.
O que ficou de aprendizado para mim foi que, se não quero contar para as pessoas sobre algo – seja abertamente na minha escrita, seja para as pessoas mais próximas – é porque tem algo ali que merece ser observado com cuidado.
Dentro de uma semana, haverá chegado o prazo oficial para a resposta do governo japonês sobre a concessão de um novo visto de estudante para mim: dia 3 de novembro. Há chance do visto não sair, e se isso acontecer, precisarei de um novo plano de futuro. Estou ansioso para receber a resposta.
Contratei uma pesquisadora para fazer o levantamento de documentos da minha família, a fim de descobrir mais sobre minha ascendência. Ela sugeriu que eu ligue para cartórios em Porto Alegre atrás de alguns documentos específicos. Acredita que estou dando voltas em torno do telefone, sentindo um mini buraco negro logo embaixo do peito? Onde já se viu, formado em jornalismo e com medo de ligar?
Aliás, preciso marcar uma consulta com minha médica. Liguei uma vez, ninguém atendeu, deixei pra lá.
Como bom millennial, detesto ligar para seres humanos.
Mas tá bom, deixa eu juntar coragem aqui e fazer essas ligações.
Com carinho,
Tales
Ahhhh obrigada pdla indicação, Tales!!! ♡ Amei estar do lado da incrível Carla *.* Adorei suas reflexões, salvei os quadrinhos e fiquei de cara com os aluguéis em Tóquio!! Boa sorte nos próximos passos aí pra conseguir um cantinho ♡