Começo hoje com uma imagem: sabe quando um iceberg quebra e um pedaço dele cai no mar e se separa da parte maior?
É assim que me sinto agora que voltei do Japão, como se alguns pedaços de mim que me acompanharam por muito tempo e fizeram muito sentido tivessem se separado. Pensei na imagem do iceberg porque, ao contrário de outras mudanças que acontecem sutilmente e um dia simplesmente percebo que algo está diferente já há algum tempo, essas duas transformações de perspectiva têm momentos exatos quando notei que algo dali pra frente seria diferente.
As duas aconteceram ainda em Tóquio. A primeira começou no dia da Parada do Orgulho LGBTQIA+, quando vi estandes, tirei fotos, participei de um piquenique com pessoas queridas e fiquei bêbado sem me dar conta. Em todas essas atividades, estive com o moço que tenho chamado por aqui de Draco.
Naquele momento, já estávamos saindo e nos conhecendo havia quase seis meses. Apesar de ser um adepto da não-monogamia, muito da minha relação com ele era informada por princípios e expectativas que vinham de um pensamento monogâmico assustado e controlador.
Isso, somado ao meu estado etílico, me levou a reclamar – aos gritos – sobre o quanto estava cansado de ter que perguntar de novo e de novo sobre com quem ele teve ou deixou de ter experiências íntimas ao longo da vida. Por trás da frustração que eu nutria naquele momento estava a expectativa de que, para estar em um relacionamento comigo, ele deveria ser absolutamente transparente e me contar todas as coisas que, segundo meu julgamento, ameaçavam meu senso de segurança.
Nem preciso dizer que a noite foi péssima. Perdi a memória da maior parte da noite, mas recordava o suficiente para saber que havíamos brigado. Somente dias depois conversamos a respeito, primeiro por mensagens de texto (já que ele mora em outra cidade a duas horas de Tóquio) e depois pessoalmente quando o visitei.
Durante nossas conversas, ele me escreveu – e repetiu ao vivo – algo que me tocou com força:
Honestly speaking, the thought I had when I was riding the train back to Chiba on early Monday was that I wish one day, you would know how truly beautiful you are inside and out, and how special our moments are together, because no one else can affect nor take those away from us except each other.
(Tradução minha: Sendo honesto, o pensamento que me ocorreu quando estava no trem de volta a Chiba na manhã de segunda é que eu desejo que um dia você saiba o quanto verdadeiramente lindo você é por dentro e por fora, e quão especiais são nossos momentos juntos, porque ninguém mais além de nós dois pode afetar ou tirar esses momentos de nós.
Guardei comigo essa mensagem para lê-la de novo sempre que precisar, não porque ela fala sobre a qualidade desse relacionamento em específico, mas porque ela é um lembrete que meu valor não depende da avaliação de outras pessoas. Quem escolhe se relacionar comigo o faz porque percebeu algo em mim com o que deseja se conectar.
As experiências que as pessoas têm sem mim, no passado, no presente e no futuro, nada têm a ver com o que eu vivo com elas.
Um bloco do meu iceberg caiu conforme percebi, em grande parte por conta dessa experiência, que sou um ser humano lindo, fabuloso e exuberante – e que posso me diminuir e mergulhar em poços de insegurança quando coloco meu coração em outros lugares que não dentro do meu próprio peito.
Lembrar que meu valor não depende do que outras pessoas gostam, querem ou escolhem me abriu espaço para genuinamente olhar para o mundo com curiosidade, incentivo e celebração.
Alguém que eu amo transou com outro ser humano? Que bacana, espero que tenha sido gostoso! Alguém com quem quero passar tempo junto está com outras pessoas vivendo experiências de conexão? Fico feliz, é algo que desejo para todas as pessoas do mundo, e a felicidade de uns não precisa ser a insegurança de outros.
Há espaço para todas nós.
Desde então, estou mais livre e leve em relação a coisas que antes me perturbavam. Tanto Ayrton quanto Draco já vivenciaram experiências com outros humanos que, antes, teriam me deixado preocupado, ansioso e inseguro. Talvez no futuro eu precise lembrar disso novamente, mas por enquanto estou contente que possam viver boas experiências.
Meu lugar quando me relaciono com outros humanos é oferecer suporte e celebrar junto. Não é controlar, não é querer saber tudo – por mais que eu goste e me sinta incluído quando as pessoas escolhem se abrir pra mim sobre suas experiências e seus sentimentos – e certamente não é querer que as coisas sejam de um jeito específico.
A vida será o que a vida for.
A segunda experiência de transformação recente aconteceu nos meus últimos momentos em Tóquio, já dentro do avião aguardando a decolagem.
Antes de ir ao Japão, fiz os planos de quando iria e quando voltaria, comprei passagens, organizei quando deixaria o apartamento que aluguei e quanto tempo passaria em um hotel antes do meu retorno. Fiz isso porque queria me sentir seguro de que teria condições de retornar, caso tudo desse errado e eu gastasse todos os meus recursos durante a viagem.
Algo sobre mim: ao longo da vida, sempre tive muita dificuldade de ser espontâneo e tomar decisões rápidas. Para evitar problemas, passei a planejar de antemão o que eu faria ou deixaria de fazer em eventos, encontros, trabalhos etc. Poucas coisas me deixavam mais incomodado do que ter meus planos frustrados ou alterados de última hora.
Tenho dois exemplos para ilustrar essa minha característica, um que foi bacana e outro nem tanto.
Certa vez decidi ir a uma exposição e vi no evento do Facebook que pelo menos 20 pessoas que eu conhecia também confirmaram presença. Pensei que no mínimo umas duas ou três iriam, e prometi para mim mesmo que só iria embora depois de conversar com alguém, pois estava querendo socializar. Ocorre que nenhuma pessoa conhecida compareceu ao evento. Fiquei lá sozinho, olhei as obras, olhei de novo, cansei e fui embora.
No caminho do metrô, porém, lembrei-me do meu plano-promessa e usei-o como desculpa para retornar. O que acabei fazendo foi encontrar uma dupla que parecia amigável, me aproximar e contar que estava sozinho e gostaria de conversar com outras pessoas. Funcionou: eles me apresentaram a outros amigos, saímos da exposição, caminhamos, comemos, rimos muito, foi uma boa noite.
O outro exemplo é menos feliz. Durante o curso de escrita narrativa com temática queer que ofereci, levei a turma para um evento no Centro Cultural São Paulo. Por alguma razão, eu havia decidido que, após o evento, voltaria para casa. Quando encerramos o que estávamos fazendo, meus estudantes quiseram ir para um bar ali no entorno da Vergueiro. Ainda era cedo, nove ou dez da noite, daria tempo suficiente para uma boa rodada de comida e bebida. Agradeci ao convite e disse que precisava ir para casa. Já dentro do metrô, me peguei pensando por que estava retornando para casa quando, na verdade, eu queria ir para o bar com eles. Eu não fui porque não consegui mudar meu plano. Não consegui sequer considerar a possibilidade de mudar de plano, era algo impensável para mim naquela hora.
Lembrei disso e de tantas outras experiências quando estava sentado no avião, em Tóquio, esperando ele decolar.
Eu tinha muitos bons motivos para retornar: meu relacionamento com Ayrton, meus amigos, minha família, estar em um lugar em que posso ser eu mesmo em meu idioma nativo e onde consigo ler todas as placas, comer comida gostosa, acionar os planos de futuro que coloquei em pausa enquanto estava viajando.
Ainda assim, eu não queria voltar. Estava voltando porque havia colocado na cabeça que era a hora de voltar, uma decisão feita pelo Tales de sete meses antes, um Tales que não sabia ainda a intensidade com que a experiência de viver no Japão teria me afetado. Um Tales que não abriu espaço para o imprevisto, o espontâneo, o incerto. Um Tales que queria controlar até onde eu poderia me permitir uma vida diferente daquela que já havia decidido até então.
Chorei algumas vezes durante o voo. Não porque estava deixando o Japão, mas porque estava deixando o Japão sob as ordens de um Tales que não existia mais, aquele de sete meses antes. Chorei porque eu sabia que não queria partir e não fiz nada para mudar isso.
Nas trinta horas de voo e nas semanas que seguiram, tracei um novo plano para mim mesmo: encontrar um jeito de ser mais espontâneo, aberto para a vida e para as mudanças, e acima de tudo disposto e disponível a mudar de ideia. Não é bem um plano, na verdade. Não é um mapa, mas uma ferramenta de navegação.
Ainda não sei como isso se dará na prática, mas sei que isso está mais alinhado com o olhar de raposa que busco praticar. Quero escutar a mim mesmo, o que preciso e o que quero, e agir para cuidar disso.
Outra calota de gelo caiu no mar e agora flutua por aí.
Tirei uma foto essa semana e me senti bonito, quis compartilhar.
Obrigado pela leitura e companhia.
Com carinho,
Tales
Alguém que eu amo transou com outro ser humano? Que bacana, espero que tenha sido gostoso! Alguém com quem quero passar tempo junto está com outras pessoas vivendo experiências de conexão? Fico feliz, é algo que desejo para todas as pessoas do mundo, e a felicidade de uns não precisa ser a insegurança de outros.
Há espaço para todas nós.
Wow Tales 🙌🏼💫
Achei lindo esses pensamentos. Não sei como seria na prática (rs) , mas estou com esse trecho reverberando por aqui .
Valeu 🙏🏻
Acho interessante como em cada texto você acrescenta algo novo da experiência. Fico imaginando de onde você tira todas essas reflexões, decisões e percepções. Você lê muito? Sempre que busco conectar com minha sensibilidade veio ler seus textos.