Bom dia!
Há algum tempo, uma amiga1 me contou a razão pela qual acompanhava a newsletter do Ninho de Escritores.2 Segundo ela, não era pelas dicas relacionadas à perspectiva técnica da escrita, pelos desafios ou comentários sobre textos produzidos pelas assinantes. O que a havia interessado o suficiente para não apenas acompanhar meus textos, mas também se aproximar de mim virtualmente, era o olhar gentil que eu trazia para o ato de escrever.
Às vezes penso que esse olhar gentil atua como uma armadilha para mim mesmo. Considero-me muito bom em compreender e acolher meu próprio tempo de produção, o que resulta em longos hiatos. Hoje pela manhã, por exemplo, escrevi em meu diário que mantenho em um armarinho ao lado da cama. A última vez que havia escrito nele fora em 18 de junho de 2020. Muitas coisas aconteceram nesse período e penso que eu teria me beneficiado mantendo um diário, mas não o fiz e entendo minhas razões.
Outras vezes, reconheço que a demanda de estar produzindo, escrevendo, compartilhando o tempo inteiro não é minha. Veja bem, ela existe em mim, mas creio que seja uma daquelas coisas que a gente pega no ar e que se cola em nós, quase como um vírus. A ideologia capitalista funciona assim: preciso produzir mais, preciso produzir o tempo inteiro, preciso ser mais, ter mais.
Creio que não posso ser gentil na escrita quando não sou gentil na vida. O texto é o meu refúgio, o meio pelo qual me permito ser plenamente honesto. Tento trazer essa verdade para o dia a dia, mas nem sempre consigo manter a força e a atenção necessárias para ser autêntico enquanto a vida acontece. Com o texto, congelo as memórias e reviso o que já passou na esperança de elaborar rascunhos melhores para o que passará.
Sobre estar sempre pronto para dizer adeus
Intitulei esta carta digital como 久しぶりです, uma expressão em japonês3 que se lê “hissashiburi desu” (o “hi” é aspirado, quase como “ri” em “rio” no português, e o “su” soa com “u” meio mudo neste caso, ficando algo como “dess”). Significa “há quanto tempo”, sendo a expressão que se utiliza quando encontramos alguém e queremos sinalizar que percebemos o hiato temporal que separa nossos encontros.
Meu último texto por aqui foi em 2 de abril, mais ou menos dois meses. Até que foi um hiato pequeno, mas é um hiato habitual. Digo isso porque me percebo assim com meus relacionamentos vida adentro. Não que eu desapareça. Continuo aqui, no mesmo lugar, fazendo as minhas coisas, mas nem sempre vou atrás das pessoas ou abro espaço para que elas ouçam de mim sem um movimento direto de me procurar.
Esses tempos comentei com um amiga4 que pensava em montar um mural com as pessoas cujas vidas não quero perder de vista, pessoas com as quais gostaria de estar em contato com frequência. Ainda não o fiz, ainda não procuro as pessoas que quero em minha vida com a frequência que meu coração diz querer. Pelo contrário, estou sempre pronto para partir. Não só pronto, mas com o pé na porta.
Penso sempre no texto O narrador, do Walter Benjamin, no qual ele fala sobre dois tipos de pessoas. Um que fica no mesmo lugar e se relaciona em profundidade com o local e suas histórias, e outro que segue viajando de canto em canto, conhecendo novas pessoas, vivendo novas aventuras, fazendo novas relações. Sempre me reconheci mais com ganas de ser o segundo, esse aventureiro inquieto que está em busca da próxima descoberta, e foi assim que saí de Porto Alegre rumo a Goiânia sem ter um plano muito claro do que fazer além de cursar o mestrado, e foi assim que saí de Goiânia rumo a São Paulo sem ter um plano muito claro do que fazer além de escrever.
É assim que me vejo hoje, com data marcada5 para começar meus estudos em japonês em uma escola em Tóquio. Sei para onde vou, mas não tenho clareza do que acontecerá por lá nem do que será o resto da vida. Serão novas aventuras. Isso certamente me empolga, parte de mim acredita que poderia viver o resto da minha existência dessa maneira.
E ainda assim, parte de mim está ansiando por raízes, por uma comunidade formada por pessoas queridas com as quais partilho tempo, sonhos e rotinas. Eu consigo fazer isso pela internet até certo ponto – é o que faço com o Ninho, o que fiz por mais de ano com um grupo de amigo gays, é o que faço jogando RPG –, porém o virtual parece não dar conta do que estou querendo. Se desse, meu telefone seria o bastante para sanar minhas necessidades de companheirismo, amizade, comunidade.
Pausa: na minha cabeça começou a tocar Wasting my young years (“desperdiçando meus anos de juventude”), da banda London Grammar.
Uma parte de mim ainda pensa que está desperdiçando a vida. Quando criança e adolescente, eu me comparava com os outros e percebia que não era como eles, eu não frequentava as mesmas festas, eu não ria das mesmas piadas, eu nem entendia as mesmas ideias. Eu achava que não pertencia.
Talvez por isso eu tenha colocado tanta energia em procurar minha tribo, o que me levou de um lugar para outro, sempre atrás de uma história que pode muito bem ser apenas fantasia: a de que há um lugar para mim no qual eu me sentirei pertencente por inteiro, o tempo inteiro.
E talvez esse lugar exista, mas seja efêmero, feito de momentos recheados com memórias significativas. Um lugar temporário, que surge e desaparece. Talvez o que eu possa fazer seja apenas aumentar as chances dessas experiências acontecerem.
Esse me parece ser o exercício de vida que farei nos próximos tempos.
Desse jeito, quem sabe eu comece a estar pronto para dizer olá, há quanto tempo! da mesma maneira que com frequência digo adeus, não sei se um dia voltarei.
Obrigado pela leitura 🙂
Com carinho,
Tales
A Carla Soares, do OutraCozinha, sobre quem já falei algumas vezes nas mensagens anteriores.
Hoje a newsletter do Ninho está reduzida a um boletim de avisos sobre cursos e projetos do Ninho, mas no passado ela era meu principal espaço de escrita e reflexão semanal.
Sigo estudando a língua japonesa, uma atividade complexa que me frustra e empolga em medidas semelhantes, porém alternadas.
A Mari Pelli, sobre quem também já comentei algumas vezes por aqui.
As aulas começam dia 11 de outubro de 2022. Tudo dando certo, devo embarcar rumo ao outro lado do planeta alguns dias antes desta data.