Aconteceu lá pela sétima série do ensino fundamental, época em que prestar atenção na aula ainda me importava mais do que ficar atento às minhas costas, então eu sentava na frente da classe. Um colega estava me incomodando, já nem lembro bem o que era, mas respondi com voz alta, quase um grito, e a sala inteira ouviu:
– Tu acha que é mais homem que eu?
A sala inteira reagiu com gritos e gargalhadas, uma plateia pré-adolescente performando surpresa para acentuar a resposta inesperada e fomentar o entretenimento. Não recordo se a professora interveio ou o que se sucedeu após aquele momento, com exceção de que meu colega – a quem dirigi a pergunta – me cumprimentou pela “boa resposta”. Aliás, já nem sei se este momento ainda existe em qualquer lugar do planeta exceto minha memória…
Minhas lembranças desse período da vida e dessas pessoas está ofuscada pelo tempo. Desse colega em particular, sequer lembro o nome. Tudo o que lembro é um outro momento em que ele, sentado atrás de mim, segurou um colega pela nuca e forçou-o na direção do seu colo. Embora não tivesse a experiência concreta ainda, eu sabia o que a concretização daquele movimento significaria: para um, o reforço da posição de homem; para o outro, a submissão e a perda da condição de homem; para mim, mais uma semente que eu não podia deixar germinar.
Naquela época eu ainda aceitava a oposição conceitual entre ser homem e ser gay, como se as duas coisas não fossem possíveis juntas. Ademais, eu ainda não me reconhecia como gay mesmo que me percebesse profundamente atraído por momentos como aquele. Eu sabia mesmo sem saber.
Incontáveis vezes, tanto antes quanto depois desse tempo, tive minha masculinidade questionada. Quando não a masculinidade, o direito de existir, a ponto de durante um período da vida eu acreditar que era melhor me anular a ser quem eu era, quem quer que eu fosse.
Assisti ao filme Homem com H, que retrata a vida de Ney Matogrosso, cantor brasileiro dono de uma voz fabulosa, e saí do cinema completamente tocado tanto com a história quanto pela presença de espírito do protagonista.
O filme mostra um Ney que desde criança tinha muita certeza de quem era, ou pelo menos de quem não queria ser. Já pequeno desafiava o pai restritivo, e mais tarde abandonou sua casa para construir seu próprio caminho, que encontrou na arte. A música que dá nome ao filme, Homem com H, repete “porque eu sou é homem, e como sou” enquanto Ney dança, rebola e se veste de maneiras não convencionalmente reconhecidas como masculinas. Não é nem um tapa na cara da ideia de homem: é um carinho jocoso de alguém que já percebeu os limites do conceito.
A minha infância não foi marcada pela presença de algum adulto autoritário na família me gritando que eu não poderia ser bicha, e ainda assim cresci obediente, cativo e amedrontado. Fui bom aluno dentro do modelo tradicional de educação bancária e aprendi bem a corresponder às expectativas alheias, de modo que ainda hoje acho mais seguro tentar agradar aos outros do que dizer o que penso de verdade. Bom filho, bom aluno, aquele que não causa problema, sei a cartilha inteira.
Apesar disso, sempre me vi admirando pessoas que carregavam dentro de si uma certa chama de autenticidade, que desafiavam seu entorno para seguirem suas vontades. E não é esse um atributo que colocamos sobre a masculinidade?
Lembro que lá pela quarta série do ensino fundamental vi um colega tirando a camiseta do uniforme depois de sair do portão da escola. Embora nada mais que um molecote de peito desnudo em meio a uma multidão de crianças uniformizadas, aquilo para mim era uma prova tão fundamental de coragem e audácia, algo que eu jamais consideraria fazer naquela época – e ainda hoje tenho dificuldade em fazer.
Já naquela ocasião eu me perguntava: qual é o segredo? Por que algumas pessoas caminham pelo mundo de peito aberto enquanto outras têm medo de dizer o que pensam?
Será tão somente resultado de ser criado “para ser homem com H”, ou talvez algo que venha já de fábrica? Muito provavelmente, os dois.
Talvez no passado eu tenha desejado “ser mais homem”. Hoje, reconheço essa categoria como insuficiente, limitante e danosa. Se alguém achar que é mais homem que eu, pois que o seja, espero que isso lhe faça mais feliz.
O que tenho em mim é um sempre crescente desejo de ser mais honesto com o que sinto e necessito para viver com saúde, e de contribuir para que as pessoas ao meu redor também possam fazer o mesmo. Tornar a vida mais maravilhosa para todo mundo.
Assistir a Homem com H me lembrou como é potente ver alguém fazendo aquilo que quer, ainda mais alguém como eu: gay, poliamorista, artista, que nem sempre se sente encaixando direitinho onde está. O filme me lembra que é possível, que há muita vida a ser vivida a despeito de todas as prisões que construímos e às quais nos sujeitamos socialmente. Que vale a pena ser quem eu sou, seja homem, mulher ou algo além do que esses termos representam.
Com carinho,
Tales
Acho que só com o tempo conseguimos nos libertar dessas prisões que nos colocamos, como você mencionou. Tudo é um processo e cada um tá no seu ritmo. Lindo texto, Tales.
Lindo o teu relato !! Penso q todo menino q se percebe com uma sensibilidade maior q a grande maioria e não consegue entender e se encaixar nesse universo heteronormativo q nos é imposto tem uma historia parecida com as nossas, né ??? Amo teus textos.