Gosto de falar sobre como o mapa não é o território, o que significa que conceitos e ideias sobre as coisas não são nem dão conta das coisas em si, por mais que sejam muito úteis para navegar a vida. Mapas são úteis na geografia porque florestas, rios, montanhas e estradas não saem caminhando por aí e mudando suas paisagens a todo o instante. Com seres humanos, é um pouco diferente. Nós mudamos a todo instante, o que torna nossos mapas obsoletos muito rapidamente.
A ideia de um bom mapa é trazer segurança durante nossas jornadas. Se for por aqui, chegarei lá. Se me perder, abro o mapa, reconheço os arredores, vejo a posição do sol ou das estrelas e me reoriento rumo ao objetivo.
Quando penso sobre mim, outras pessoas ou nossos relacionamentos utilizando a lógica dos mapas, digo o que sou, é ou somos. O verbo ser é tão forte que vira traço de tinta no papel feito uma montanha. Sou homem, sou gay, sou brasileiro, todos esses traços aparentemente imutáveis se derramam sobre a vida e carregam consigo impressões, dúvidas e sentimentos. Ele é inteligente, é corajoso, é esperto, essas expectativas imutáveis de que se foi, continuará sendo para sempre. Nós somos namorados, amigos, amigos coloridos, conhecidos, colegas.
Um mapa pode ser um roteiro. Eu sou assim, portanto faço isso. Vale também ao contrário: eu faço isso, portanto sou assim. Ela é aquilo, então faz isto. Nós agimos assim ou assado, nós não fazemos tal e tal coisa, nós só fazemos tal e tal coisa.
Depois que algo vai para o mapa, chega a ser difícil olhar para o território. O mapa é estável, consistente, parece seguro. O território fica ali mudando, sempre de maneiras imprevisíveis. Como firmar os pés se nem o chão é fixo?
Talvez o jeito seja encontrar ferramentas mais adequadas. Se não um mapa, uma bússola, algo que aponte a direção para aquilo que quero. Muitas vezes não sou compassivo como gostaria de ser (escrevi mais sobre isso nesta carta), e aí olho para o Mapa do Tales, vejo que isso não condiz com os traços que desenhei sobre mim mesmo e me culpo, esbravejo que eu sou uma fraude, devia agir diferente, ser melhor que isso! e me machuco.
Entretanto, se olho para minha bússola interna, tenho a chance de reconhecer que não estou onde ou como queria e aí procurar um caminho que me leve na direção de ser mais compassivo. Às vezes estarei mais perto, às vezes estarei mais longe, reconhecendo que tudo é processo, jornada, caminhar.
Tenho pensado nisso não apenas por conta do curso de escrita compassiva que começará na quinta-feira (dia 13 de abril, informações aqui e inscrições aqui), mas também por conta dos relacionamentos que tenho cultivado. Estou lendo o livro More than Two – A Practical Guide to Ethical Polyamory e encontrei nele uma pergunta que me bagunçou: Por que quero relacionamentos românticos? O que ganho com eles?
Nota: evito usar o termo romântico para me referir a relacionamentos afetivossexuais, pois o mapa tradicional do romance é aquele da alma gêmea que nos salva de uma vida de solidão miserável, uma leitura com a qual não concordo, porém decidi manter a expressão utilizada pelo livro durante o restante da carta.
Não sei ao certo por que quero relacionamentos românticos. O que sei é que não quero que meus relacionamentos românticos estejam limitados em número por qualquer outra razão além de disponibilidade de tempo e energia, assim como costumo dedicar mais atenção para eles em comparação com minhas amizades habituais. A diferença nem sempre é apenas a presença de sexo: mantenho “amizades habituais” nas quais sexo é um fator possível e até frequente.
Conversando com Ayrton, que me visitou no Japão nas duas últimas semanas, cheguei à conclusão de que tenho mantido com Draco um tipo de relação que está nesse patamar do relacionamento romântico. Com Ayrton, às vezes usamos o termo namoro para descrever o que vivemos. Com Draco, ainda não conversei a respeito de nomes, embora já tenha sinalizado que o vejo como um parceiro tanto quanto Ayrton.
O que quero, aliás, não é um nome para o que vivo com qualquer um dos dois. Quero calibrar minha bússola para entender o que ofereço a eles, o que espero da relação com eles e, também, como posso seguir caminhando para continuar nutrindo e sendo nutrido por esses relacionamentos.
Não se engane, porém: há uma parte de mim que quer muito um mapa prontinho, com todos os contornos do que é possível e do que deve ser evitado, para que a jornada seja mais simples e fácil. Mesmo sabendo, por experiência, que esses mapas não resolvem a vida, parece mais seguro confiar que dessa vez um mapa possa ser o suficiente.
Nessas horas de querer o caminho fácil, busco respirar e escrever.
A escrita é uma arte curiosa. Por um lado, ela funciona como um mapa, pintando para sempre aquilo que elaboramos num instante preciso. Ela é sempre um registro do passado. Quando lemos o que escrevemos, já não somos mais a pessoa que estava escrevendo, somos a pessoa que escreveu. E esse é o outro lado da escrita: ela preserva intactos os pensamentos e sentimentos que anotamos, tornando-a um artifício poderoso para olhar para si.
É muito difícil segurar o pensamento enquanto ele acontece. Ele vem, me influencia e vai adiante. Quando olho, ele se transforma, fugidio, ligeiro, esperto. Nunca sei se o que estou pensando agora é um retrato fiel do que havia pensado antes, pois pensamento se reconstrói a cada vez.
A escrita materializa as palavras que consigo encontrar para descrever o que se passa aqui dentro. O papel aceita e preserva tudo, sem aceitar mudanças além daquelas que eu mesmo imponho, apago ou reescrevo.
Quando tenho uma dúvida, quando quero cuidar de algo que me importa, quando quero preservar uma memória, é na escrita que encontro um caminho. Se a entendo como um mapa do passado – de algo que já foi, mas que provavelmente ainda me acompanha – posso usá-la para orientar meus passos rumo ao futuro.
Esse é o princípio por trás do que venho chamando de escrita compassiva: elaborar no texto um encontro com as experiências que me importam, buscando percebê-las de forma atenciosa, amorosa e lúcida.
Estou empolgado para começar o curso na próxima quinta à noite (do Brasil, para mim já será sexta de manhã) e compartilhar por aqui novas reflexões e aprendizados que nascerão da troca em grupo. Na segunda-feira enviarei um e-mail para as pessoas inscritas com as informações para o primeiro encontro, então ainda dá tempo de te inscrever caso queira participar (link).
Novos ventos estão começando a soprar. 😊
Com carinho,
Tales
Tales, seus textos me convidam à reflexão. Obrigada. Gostaria muito de participar da nova oficina, mas não sei se conseguirei me dedicar a ela como gosto de fazer com as coisas que me disponho a fazer. Talvez alguns dias sejam impossíveis de participar. Enfim, até amanhã defino. Será uma alegria inenarrável compartilhar, novamente, momentos de escrita com você e as colegas.
Muito interessante seu texto. A reflexão sobre poliamor e escrita combinaram perfeitamente, mas podem ser aplicadas a outras formas de encarar a vida também. Eu mesmo tenho flertes com o poliamor, acho a ideia fantástica e de uma liberdade tremenda, porém, ainda não consigo pensar em como funcionária na prática, acho que só vivenciando para perceber. Já com o amor romântico, acredito que não tenho mais o desejo, sei que tudo é construção e depende muito de como cada um se posiciona e se entrega ou não para o relacionamento. Estudando poliamor, entendi que não posso nunca deixar de ter uma rede de apoio afetivo.