Nesta semana, briguei com um amigo.
Fazia um bocado de tempo que eu não me desentendia com alguém querido, tanto que nem lembro direito qual foi a última vez. Terá sido meu último ex-namorado? Ou foi alguma das pessoas com as quais me relacionei desde então? Não sei dizer, mas faz tempo, anos até.
O motivo da briga foi o seguinte: como ele mora em uma cidade longe de Tóquio, estávamos conversando sobre planos para quando ele viesse. Em certo momento, falamos em jantar juntos na sexta e nos encontrarmos de novo no sábado à noite. Por conta da conversa, ele imaginou que estávamos planejando esse final de semana. Por conta da mesma conversa, entendi que estávamos falando de um final de semana hipotético, quando ele decidisse vir, já que não havíamos firmado uma data.
Eis que na noite em que ele confirmou que viria neste final de semana, um punhado de horas antes eu havia confirmado uma outra programação para a noite de sexta. Quando o informei que nossos planos precisariam ser adaptados, ele ficou chateado e reagiu de forma bastante intensa.
No vai e vem da conversa, procurei indicar alternativas de datas e horários para nossos encontros e também explicar o que me levou a entender que não tínhamos um plano combinado – explicando também por que não o consultei antes de confirmar minha noite de sexta-feira com outras pessoas.
Durante a conversa, que se estendeu por dois dias de longos textos via Instagram, fiquei com a impressão de que não estava sendo escutado apropriadamente, o que me irritou e turvou minha capacidade de manter uma postura centrada, racional. Acabei respondendo algumas mensagens de forma impulsiva, nomeando e desaprovando algumas atitudes, certo de que eu precisava mostrar a ele o que ele estava fazendo de errado na situação toda.
Quando chegou nessa hora, percebi que havia soltado meu monstrinho interior. Gostaria de dizer que respirei profundamente umas três vezes e que tudo melhorou, mas não consegui impedir o monstrinho de “dizer umas verdades”.
Dizer umas verdades, claro, significa assumir a autoridade moral sobre as verdades do mundo e o papel heroico de apresentá-las aos outros. Aliás, nem apresentá-las, mas esfregá-las no focinho das pessoas que precisam aprender a prestar mais atenção.
Com isso, inclusive, lembrei de duas coisas.
Primeiro, essa música fabulosa:
Segundo, muitos muitos anos atrás, era eu ainda uma criança, um dia vi minha vó brigar com a cachorra que tínhamos. Acho que a cadela havia cagado perto de onde caminhávamos no pátio dos fundos da casa, ou algo assim. Minha vó bateu repetidas vezes na cachorra com uma vassoura e então esfregou o focinho dela no cocô. A mesma mulher que me enchia de carinhos e cuidados e que um dia evitou que meu tio me batesse foi a mulher que bateu na cachorra dessa forma. Seres humanos são complexos, né?
Eventualmente, meu amigo e eu chegamos a um ponto em que a discussão se esvaziou. Atualizamos nossos planos e explicamos o que queríamos explicar. Confesso que ainda não me sentia escutado e finalmente entendi o motivo: ao falar sobre a situação, mesmo após minhas explicações, propostas e indicações de que atentaria para evitar o mesmo desencontro de informações no futuro, percebi que ele ainda narrava os fatos exatamente da mesma maneira de quando começamos a discutir. Ou seja, não me parecia que minha perspectiva foi incluída em sua percepção de mundo. Mesmo que ele tenha dito “sim, te ouvi”, a narrativa ainda era a de que eu o deixei de lado e desconsiderei os esforços de organização do encontro.
Quando percebi que essa era a razão pela qual estava ficando mais e mais irritado, consegui acalmar e botar o monstrinho para dormir.
Dessa situação toda, fiquei pensando em duas coisas.
A primeira é o título da carta digital de hoje: o desafio de construir uma realidade compartilhada. Quando achamos que estávamos falando das mesmas coisas, acabamos nos desencontrando. Seguimos mapas diferentes para a mesma realidade e isso gerou frustração.
Na prática da comunicação não-violenta, falamos bastante em checar o que a outra pessoa escutou, porque nem sempre mensagem enviada é mensagem recebida. Nem é uma questão de não saber interpretar textos ou de não dizer o que precisa ser dito; basta que tenhamos uma ideia em mente que é diferente da ideia da outra pessoa e pronto, já veremos o mundo de forma inteiramente distinta.
A segunda coisa que fiquei pensando foi sobre como, a despeito da facilidade do monstrinho ressurgir, atualmente estou cada vez menos interessado em estar certo e em controlar as situações. Recordo sempre de uma amiga dos tempos do meu primeiro estágio, que me introduziu à ideia de que “a gente pode ter razão ou ser feliz”.
Há mil momentos em que ter razão é importante, até mesmo indiscutível.
Quem foi culpado ou deveria ter se comunicado melhor para marcar um encontro, honestamente, não me parece uma dessas ocasiões.
Hoje estava me preparando para lavar roupa – ou seja, para juntar meus panos e levá-los até um coin laundry, uma dessas lojinhas onde há máquinas de lavar e secar que funcionam à base de moedas – quando bateu uma tristeza repentina. Como costuma acontecer, resolvi curtir o momento e ouvir umas músicas. E já que ainda estava em processo de escrever a carta de hoje, quis compartilhar algumas das músicas que têm embalado meus dias.
The Hidden Cameras - The man that I am with my man
Conheci essa banda há uma década ou mais. Recentemente voltei a escutar suas músicas, que falam abertamente sobre experiências gays. Um trecho que me encanta nessa música é: “the man that I am with my man, tamed but feeling no blame” (tradução minha “o homem que sou com meu homem, domado/cativado mas sem sentir culpa”). Os maiores momentos de prazer que tenho com outros humanos envolvem abrir-me de forma vulnerável e permitir que a outra pessoa me acolha para que juntas possamos construir momentos de riso, prazer e descoberta.
Kenji Endo - Curry rice
Uma música delicinha em japonês sobre fazer curry rice e curtir uma tarde com um gato. Essa música me traz uma paz tão grande!
Allo Darlin’ - Tallulah
Essa música me traz uma tristeza nostálgica e encaixa bem com o momento em que estou vivendo. Ela canta: “and it’s been a long time since I’ve seen all my old friends but I really love my new friends…” (tradução minha: “e faz bastante tempo desde que vi todos meus velhos amigos, mas eu realmente amo meus novos amigos”). Ela canta também algo que ainda não penso, mas que não duvido que um dia pensarei: “I’m wondering if I’ve already heard all the songs that will mean something, and I’m wondering if I’ve already met all the people that will mean something” (tradução minha: “estou pensando se já ouvi todas as músicas que significarão algo para mim, e estou pensando se já conheci todas as pessoas que vão significar algo para mim”).
Estrela Leminski e Téo Ruiz - Poliamor
“Eu nem sei de quem é esse toque, eu só sei que é pra dançar”, eles cantam. A música me convida a um amor mais aberto, corajoso e acolhedor. É bem o que quero para mim e para todas as pessoas desse mundinho.
Obrigado pela companhia até aqui!
Com carinho,
Tales
Tales, não sei se já expressei isso, mas você é uma pessoa muito querida. Celebro sua existência e sua coragem, sua disponibilidade ao diálogo. Você é uma daquelas pessoas que conheci e que significam algo para mim (parafraseando a música). Ao ler esta sua carta uma tristeza que guardo no fundo de minha alma também emergiu, porque eu já me frustrei muito ao perceber que não consegui construir uma realidade compartilhada com pessoas queridas. Acho que o afeto cria uma zona cinzenta em que expectativas/fantasias se sobrepõem às necessidades e, por vezes, desorganiza nossas estratégias ao lidar com a reação do outro às nossas ideias/ações (acho que a recíproca também é verdadeira). Concordo com você: seres humanos são muito complexos. Gostei bastante da trilha sonora. Abraço fraterno! 💚