Entrei no avião, guardei a mala no bagageiro e sentei para aguardar que o restante dos passageiros embarcasse. Nem um minuto depois, algumas fileiras atrás, uma criança abriu o choro porque queria sentar em uma poltrona diferente. Em meio aos gritos frustrados de “eu quero”, a mãe tentava respostas diversas: isso é motivo para chorar?, não grita, as pessoas compraram essa poltrona antes de nós, vai incomodar os outros etc.
Comecei a me observar. Ouvindo o drama, senti raiva. Eu queria iniciar minhas férias com uma viagem tranquila e aquele berreiro estava atrapalhando meus planos. Senti pena e depois compaixão pela mãe. Senti raiva de novo. Em seguida, me pus a refletir: o que eu faria se fosse a mãe? O que, exatamente, eu esperava que acontecesse naquela situação? Queria silêncio e tranquilidade. Entretanto, embora soubesse o que queria, não sabia como chegar nesse resultado.
Meu primeiro pensamento foi o de silenciar a criança à força. Para meu pavor, a frase “ela precisa aprender a respeitar os pais” chegou a passar pela minha cabeça. Essa ideia veio junto com uma série de outras considerações sobre o que crianças deveriam poder e sobre a noção de que pais seriam a autoridade máxima sobre as escolhas das pequeninas. Silenciar a criança, na minha imaginação, envolvia puxá-la contra a vontade para retornar ao banco que lhe fora designada, talvez com um tapa ou dois para que ela desistisse de resistir.
Quero destacar que essa ideia não é minha. Sim, ela surgiu na minha cabeça, mas não é algo alinhado com meus valores. É algo que vejo e ouço com frequência, a tal ponto que aprendi como uma resposta aceitável para uma situação semelhante. Ou melhor, que seria aceitável se eu não parasse para questioná-la.
Não acredito em punição como resposta adequada para lidar com outros seres humanos, menos ainda quando estamos falando sobre educação. No livro Criar filhos compassivamente, Marshall Rosenberg conta sobre um aprendizado que teve com seus próprios filhos: jamais poderia obrigá-los a fazer algo que não quisessem, podia apenas fazer com que se arrependessem de não o ter obedecido. Quando isso acontecia, eles ensinavam uma segunda lição: eles o fariam se arrepender de tê-los punido. O ciclo da violência é interminável.
Além disso, gosto de pensar o que se aprende quando a resposta a um comportamento é punição. Em geral, queremos que a pessoa aprenda que um comportamento específico é indesejável, mas a lição que fica é que alguém mais forte pode bater e usar seu poder sobre os outros para que a vida aconteça como deseja, e que não seremos punidos se não formos pegos.
Um outro ponto me importa quando penso em como lidar com a situação da criança chorando. Como princípio pedagógico, quero que os seres humanos desenvolvam autonomia para fazer suas escolhas, então a lógica de respeitar autoridades cegamente não condiz com esse ideal. Quando falamos em comunicação não-violenta, diferenciamos o medo da autoridade e o respeito pela autoridade – entendendo-a não como uma entidade estática definida por uma posição (o policial, o juiz), mas pela relação e pelo reconhecimento do valor e da experiência do outro. Neste sentido, respeito porque é um outro ser humano que reconheço ter algo a contribuir comigo e com a comunidade na qual convivemos.
Ao mesmo tempo, nossa vida em sociedade tem regras e ignorá-las costuma trazer consequências. Perceba que não estou dizendo que não devemos rever e até reescrever essas regras, mas estou consciente de que esse movimento, quando individual, tem mais ares de egoísmo e privilégio do que de transformação social.
Enquanto ouvia o berreiro, lembrei de um termo que aprendi recentemente: Karen. Esse nome aponta para uma figura específica: geralmente uma mulher branca norte-americana sem consciência dos próprios privilégios e que exige coisas – em geral absurdas – das outras pessoas. Descobri recentemente que Karens não são apenas mulheres, mas qualquer pessoa que assuma essa posição de entitlement, de “achar-se no direito” de desrespeitar outros humanos com base em alguma característica social.
O que seria diferente se, em vez de uma criança, fosse uma pessoa adulta reclamando que queria um assento na janela e que merecia continuar ali porque chegou primeiro, mesmo que os assentos sejam demarcados na hora da compra? Penso que a criança talvez tenha menos condições de perceber os efeitos de suas ações, embora possamos argumentar que uma Karen também não perceba ou só não se importe com o impacto que causa. Além disso, a criança tem responsáveis por perto, e pode estar aí o limite da situação, pois ela não responde sozinha pelas ações que faz.
No final, a criança não saiu do assento que escolheu e a pessoa que sentaria ali trocou de lugar para evitar confusões. A criança venceu no grito.
Embora não tenha respostas sobre o que teria sido “o melhor”, tenho algumas pistas que me ajudam a refletir e busco referências para continuar pensando a respeito. Uma delas é o perfil do Instagram de Ariella Wanner, chamado caminhodomeiooficial. Este post, em particular, discute sobre dizer não para crianças.
Se eu fosse o pai da criança, penso que a teria movido de volta para o assento devido (aquele pelo qual paguei) e a impedido de sair de lá, a despeito dos gritos. Depois, conversaria e explicaria minhas razões e o interesse em cuidar da experiência das demais pessoas no voo e que não podemos (não podemos?) impor nossas vontades sobre os outros. Isso tudo presumindo que eu teria a sanidade e o autocontrole para não brigar. Sei lá em que estado eu estaria caso fosse responsável pela educação de um ser humano em tempo integral.
Enquanto reflito sobre isso, outras questões surgem por aqui. O que eu faria se fosse um adulto em vez de uma criança esperneando para ficar no assento? Talvez no meu assento (entre aspas para destacar tanto a posição quanto o esquisito da posse de um assento de avião)? Eu ainda olharia para o caso por uma lente de educação, ou seria sobre justiça? Até que idade estou disposto a olhar para outro ser humano a partir da perspectiva de que posso ou devo ensiná-lo alguma coisa? Com essas perguntas, encerro a carta eletrônica de hoje. Não tenho respostas sobre como as coisas deveriam ser, apenas sobre como eu gostaria que elas fossem e de que maneira eu preferiria me comportar. E fico curioso para saber o que tu pensa sobre isso tudo, caso queira me contar.
Obrigado e até a próxima!
Interessante levantar a questão do ideal e do possivel em relação a sanidade do ser que integralmente cria e educa outro ser. Creio que muitos dos pais até buscam conhecimento e formas mais adequedas de educar contudo, em estado de exaustão frente a sobrecarga da vida e da criação e sendo cobrados com olhares de reprovação acabam querendo apenas escapar da situação incômoda e numa reação de luta ou fuga agridem ou cedem mesmo que essas não sejam nenhuma das estratégias que condizem com seus valores. Também não tenho respostas, apenas mais reflexões...
Quando não estamos preparados para novo ficamos aflitos, perdidos e ansiosos. Também quando somos frustrados nossas estruturas são abaladas. Na condição de adultos nossos gritos, esperneios e frustrações são acomodados em silencia dentro de nós. A criança ainda não sabe fazer isso e a linguagem que conhece desde que nasce é chorar quando precisa revelar uma necessidade.