O que eu quero?
Há duas semanas, contei sobre a pergunta que preciso responder com mais frequência recentemente: por que estudo japonês, por que estou no Japão? Meu texto foi uma defesa da ideia de que nem tudo precisa de motivo. Minha vontade é responder apenas porque eu quero e dar o assunto por encerrado, mas nunca é tão simples, né? Eis que nos últimos dias tenho pensado um bocado justamente sobre a sequência dessa resposta. Porque eu quero? Tudo bem, mas por que eu quero?
Se na carta anterior estava olhando para o futuro – o que quero alcançar com as coisas que faço, como se vida fosse uma corrida de obstáculos que corre em linha reta em vez de uma dança solta se espalhando por um espaço amplo – quero agora olhar para o passado.
De onde vem a vontade de fazer coisas?
Recado aos ansiosos: temo que encerrarei essa carta da mesma maneira que há duas semanas, reconhecendo que não precisa haver ou saber um por quê, que basta viver e perceber os movimentos e surfar neles. Mas é aquela velha vontade de controlar, de prever os sopros de vento, de tentar viver um passo à frente da mudança na tentativa vã de frear o sofrimento.
Apego ao desejo de não sofrer.
(Ou talvez seja só uma vontade de entender, mesmo sem controlar… Talvez, talvez…)
Voltei a pensar nisso recentemente porque decidi voltar ao Brasil no final de abril. Estava pensando em estender minha viagem, estava até querendo, porém a empresa para a qual venho trabalhando se mostrou inconsistente na provisão financeira nestes primeiros meses de Japão, fiquei aflito num tanto que não gosto e decidi que não estou disposto a viver aqui por mais tempo do que essa viagem. Há vida que me importa no Brasil e neste momento não quero deixá-la de lado por mais do que uma viagem rápida – rápida aqui entendida como seis meses, um ano ou até dois.
Ter um prazo para retornar significou, entre outras coisas, uma percepção mais clara sobre o final desta aventura. Lembrei de uma colega argentina que veio para passar apenas um mês. Fomos colegas de classe e a cada dia ela chegava contando sobre suas aventuras em um lugar diferente, um café com robôs aqui, uma caminhada perto do Monte Fuji ali, uma cerimônia do chá acolá.
Pensava comigo “ela tem o tempo contado, talvez por isso queira tanto e faça tanto. Enquanto isso, eu não sinto a mesma urgência por fazer muito. Mesmo agora, que tenho uma data de retorno mais definida, não sinto essa demanda de correr e fazer mil coisas. Entendo que há gente que gosta de ver e experimentar lugares e situações novas. Eu também gosto, às vezes, mas não é a novidade aquilo que me move.
Pensando nisso, lembrei de meus pais, que final de semana sim e outro também, sempre que podiam, pegavam o jipe e saíam para fazer rally ou apenas desbravar novos territórios, ver um rio, fazer uma trilha, descobrir uma paisagem nova. Ainda sobre eles, acompanhei por anos meu padrasto fazer mapas como voluntário em um grupo de entusiastas de GPS. Recentemente, minha mãe redescobriu o tesão pelo exercício físico e tem corrido e feito academia e outras tantas coisas mais com um sorriso bonito no rosto.
Olho ao redor e vejo pessoas perseguindo seus interesses, desejos e paixões. E porque tenho mania de achar que estou errado, que vim ao mundo quebrado ou que sou insuficiente – e tá tudo bem, hoje tenho ferramentas para lidar com esses pensamentos quando eles surgem –, me peguei pensando que eu não tenha nada disso.
O que é um equívoco, tenho sim.
(Caso eu esqueça de novo no futuro, vai aqui uma lista não definitiva: jogar (RPG, videogame, tabuleiro), ler e ouvir sobre histórias de coming of age/amadurecimento, pensar conversar e praticar sexualidade, conversar sobre experiências e perspectivas de vida, ouvir música caminhando sem pressa, nadar, conhecer novas pessoas, abraçar, ler e assistir histórias de vidas de pessoas gays, raposas, assistir animes, ler histórias em quadrinhos, aprender coisas novas especialmente no campo da linguagem. E certamente mais.)
No final das contas, essa reflexão vem do mesmo lugar de tantas outras: da ideia de que eu deveria estar fazendo mais, melhor ou algo diferente. De que, de alguma forma, não estou aproveitando tão bem a vida quanto deveria.
Ontem voltei para casa às duas da manhã. Estava na casa de um amigo e estávamos lá rindo, conversando, jogando e tal. Decidi ir embora quando percebi que o sono estava crescendo, então me despedi e caminhei trinta minutos na madrugada de Tóquio até em casa. No caminho, pensei sobre um convite para ir a Nichome, o bairro gay que fica a cinco minutos da minha casa. Pensei que eu poderia ter continuado com meus amigos madrugada adentro. Pensei na saudade que sinto das pessoas amadas no Brasil.
Ao longo da semana, enquanto fermentava essa reflexão, comecei a elaborar uma lista de coisas que gostaria de viver aqui em Tóquio. Percebi que costumo me acomodar num ritmo tranquilo e às vezes acabo não indo atrás nem das coisas que gostaria de fazer, então coloquei em lista algumas coisinhas. Ontem fiz uma delas, que foi voltar a um restaurante que gostei bastante. Levei meus amigos, então foi um combo de coisas que quero e gosto.
Uma das coisas que fiz no passado para lidar com esse receio de não aproveitar a vida foi me encher de compromissos marcados todos os dias. Fazer curso, oferecer encontros, jogar junto, todos os dias e noites e finais de semana já tinham destino certo com semanas e até meses de antecedência. Logo cansei de sustentar essa rigidez, o que me sugere que haja um lugar mais tranquilo para mim na livre fluidez, mesmo que ela traga essas reflexões.
Não tenho expectativa de encontrar a vida perfeita. Acho que não é por aí. O caminho, me parece, é seguir existindo e fazendo ajustes de coerência conforme vou percebendo que algo não está funcionando para mim. Pode ser inclusive algo que funcionava muito bem ontem, mas que agora já não está mais servindo. Senti falta de estar fazendo coisas, fiz uma lista. Quis vir ao Japão, tive as condições de fazer acontecer, então vim.
Tem uma certa delícia de ir descobrindo o enredo da vida enquanto ela se escreve, em vez de seguir um planejamento elaborado desde o início.
Em meio a esses pensamentos, lembrei de um quadrinho do Zen Pencils, cujo trabalho recomendo demais. Está em inglês. A mensagem do quadrinho é clara: encontre outras pessoas que vibrem na sua frequência. De alguma forma, é o que tenho buscado fazer, inclusive aqui com a escrita.
Como a imagem é grande, vou me despedir por aqui.
Obrigado pela atenção e pela companhia!
Com carinho,
Tales