Nesta semana, aconteceu uma coisa curiosa no meu mundo interno.
Começou quando Ayrton, o moço com o qual venho me relacionando há mais de dois anos, disse-me que teria um encontro na noite de quinta-feira. De imediato, todos os alarmes foram acionados, ciúme, medo, dúvida, preocupação, cenários catastróficos, coisas que eu precisaria me certificar etc, tudo passou correndo pelos meus pensamentos.
Em seguida, outros sentimentos e pensamentos conflitantes me visitaram: eu tive um encontro com outro moço na noite de terça, então além de tudo sou hipócrita?
Nota para quem não me conhece: o relacionamento que Ayrton e eu vivemos é não-monogâmico.
Levei algum tempo para reconhecer que, apesar de meus sentimentos serem muito legítimos – eles existem, eles reverberam aqui dentro, eles impactam meu dia – isso não quer dizer que eles estão certos. Meus sentimentos estão baseados em narrativas que já não fazem mais sentido para mim.
Houve um tempo em que a ideia de algum namorado ter prazer com outras pessoas me assustava, pois podia significar que eles me deixariam por conta de “alguém melhor”. Hoje acredito em algo diferente: quero que as pessoas que amo sejam felizes e tenham muito prazer, comigo ou sem mim. E adiciono: esse sem mim não é um “vamos terminar o relacionamento porque ele está indo transar com outro humano”, mas sim um “sem mim porque é um momento dele”.
Durante o dia, me peguei pensando se eu teria a mesma reação emocional a outras programações. “Vou sair com minhas amigas”, “vou assistir a um filme”, “vou dormir”: nada disso dispararia esse turbilhão emocional.
No fundo, é medo de rejeição, é insegurança, receio de ficar sozinho.
Quero educar minha mente para entender que pessoas amadas terem prazer e mais amor e afeto não significa um perigo para minha segurança afetiva.
Conscientemente, já sei disso.
Agora falta os sentimentos receberem a atualização.
Algumas reflexões sobre amor
Nos últimos anos escrevi algumas vezes sobre relacionamentos afetivossexuais. Pensar nas datas de cada texto sabendo o que estava vivendo quando escrevi cada um deles me ajuda a perceber alguns contextos que às vezes escapam à limpeza das letras.
Em 2014 escrevi Amor entre aspas, um texto ao qual ainda hoje retorno quando busco lembrar o que acredito sobre amor e relacionamentos afetivossexuais. Curiosamente, escrevi esse texto semanas antes de iniciar um relacionamento monogâmico que se estendeu por quatro anos.
Avançando alguns anos, escrevi O que aprendi sobre não-monogamia na Espanha, num momento em que estava ainda tentando fazer funcionar um relacionamento aberto que aos poucos começava a perder o sentido para mim. Interromper relacionamentos é algo que ainda hoje tenho muita dificuldade em fazer, o que ao longo da vida resultou em diversas situações nas quais prolonguei situações que já não cuidavam das minhas necessidades.
Quando escrevi Meu namorado se apaixonou por outra pessoa, e agora?, parte de mim já sabia que eu não queria mais estar com esse namorado. Inclusive, comecei a me relacionar com Ayrton cerca de um mês depois de escrever esse texto – e continuei com ele por quase um mês até finalmente encerrar o “namoro” mencionado no texto. Não que eu tenha tomado a iniciativa do encerramento, apenas comecei a operar estrategicamente para que a outra pessoa percebesse que eu não estava mais tão envolvido com a relação. Não tenho orgulho desse jeito de agir, mas me parece um padrão meu de comportamento.
Esse texto traz um trecho que gostei muito e dialoga com o que apresentei na carta digital de hoje:
Ocorre que a maior parte desses medos me foram ensinados por uma cultura baseada em sistemas de dominação e em lógicas de escassez. Passei a vida assistindo a filmes em que só havia uma pessoa certa para amar e nos quais perder essa pessoa significa perder uma parte significativa de si mesmo. Em todas as conversas de família, namoro e casamento aparecem como as únicas formas legítimas de se estar em relacionamento com outro alguém. Na maioria dos produtos culturais que consumo, manter relações sexuais com várias pessoas concomitantemente é sinal de depravação moral. As músicas que ouço falam sobre dependência emocional.
Algumas influências
Gosto de pensar sobre amor e relacionamentos, e para me ajudar com isso acompanho as reflexões de Geni Núñez e da galera do não-mono em foco, ambos no Instagram.
Também gosto desta playlist no Spotify, que encontrei como um recanto de canções que falam sobre amor a partir da perspectiva da não-monogamia ou poliamor. Nem sei expressar o quanto me fez bem encontrar músicas que reforçam ideias em sintonia com o que acredito e quero para o mundo.
É sempre sobre mim
Estou lendo um livro chamado The science of storytelling, de Will Storr. A proposta do livro é explorar como as histórias nos agarram, envolvem e prendem. No capítulo dedicado a falar sobre personagens, Will destaca que personagens sempre percebem e pensam o mundo a partir de sua própria construção imaginária e necessariamente falha – vemos a realidade por nossas lentes pessoais formatadas por experiências passadas, crenças, valores etc.
Semana passada escrevi sobre a invasão russa na Ucrânia e como esse tema estava ecoando mais tanto na mídia como entre pessoas conhecidas. Foi um texto curto, direto, eu diria até pela metade, pois não havia conseguido processar direito alguma reflexão a partir dos sentimentos que me levaram à escrita.
Depois que escrevi a primeira versão da carta digital de hoje, voltei a encontrar posts e stories no Instagram destacando a fala racista e xenofóbica de repórteres europeus frente à invasão russa. Coisas como
“Este não é um lugar, com todo o respeito, como o Iraque ou o Afeganistão, onde há décadas de conflito. Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia – tenho que escolher essas palavras com cuidado também –, onde você não esperaria que isso acontecesse”
ou
“Estamos no século 21, em uma cidade europeia, e temos disparos de mísseis de cruzeiro como se estivéssemos no Iraque ou no Afeganistão, dá para imaginar!”
ou ainda
“É muito tocante para mim porque estou vendo europeus loiros e de olhos azuis sendo assassinados”.
Encontrei essas transcrições traduzidas no artigo O racismo de quem chora pela Ucrânia, mas ignora a dor que está ao seu lado, embora já as tivesse visto nas versões originais populando o Instagram.
Com essa mistura toda em mente, cheguei a uma nova conclusão sobre os sentimentos que me tomaram quando soube que Ayrton teria um encontro. Não é só sobre medo de “perdê-lo” (o que quer que isso signifique, já que não estamos numa competição nem nada parecido) e ficar sozinho abandonado. É sobre outra pessoa, tão próxima de mim, estar vivendo algo que me parece excitante e bacana enquanto eu estaria em casa sem nenhum plano formulado.
É a mesma coisa que me acomete quando vejo no Instagram stories de algumas pessoas vivendo momentos felizes enquanto eu estou cumprindo obrigações ou simplesmente não tenho planos. Encontrar essas referências aciona em mim uma ideia de que eu não estou lá, eu poderia estar lá, eu queria estar lá em vez de aqui. “Lá” sendo qualquer narrativa que inventei sobre o que pode estar acontecendo com outra pessoa com a qual tenho proximidade e, por isso, me comparo.
Essa proximidade me explica o medo de estar perdendo algo – em inglês chamado de FOMO, fear of missing out, e que eu adoraria trocar por outra expressão conhecida como JOMO, joy of missing out, quando acolhemos integralmente a vida que temos em vez de passar por ela sonhando que fosse o que não é.
Essa proximidade me explica também a reação de repórteres europeus e de muitas pessoas em minhas redes de contato aqui no Brasil. Não acho mais que seja medo de que a escalada da invasão russa resulte em devastação nuclear no planeta inteiro e, por isso, possa nos ameaçar aqui, enquanto outras guerras (por exemplo, os ataques de Israel à Palestina) passam em branco. Aliás, permita-me corrigir. A única guerra que está passando em branco é a da Rússia invadindo a Ucrânia, e é por isso que a maior parte das pessoas que conheço estão particularmente afetadas: porque se reconhecem naquelas pessoas, porque conseguem ter empatia e imaginar um pouquinho que poderiam ser elas, aí nasce o medo.
O local de protagonismo da própria história se vê ameaçado porque aquelas pessoas poderiam ser nós – no caso da guerra, algo que não queremos.
Enquanto isso, aqui dentro de mim, me bagunça a ideia de olhar para uma pessoa amada, comparar um momento muito específico da vida dela e me pegar pensando uau, minha vida poderia ser melhor se eu estivesse vivendo isso em vez de o que quer que estou ou estarei vivendo.
Eu gostaria que essa não fosse uma narrativa que habita em mim. Ela contraria a ideia que tenho sobre quem eu gostaria de ser. Por ora, o que me vejo capaz de fazer é reconhecê-la e reinterpretá-la. Quem sabe daqui a algum tempo eu a esteja reescrevendo.
Obrigado pela companhia :)