Na minha vida, alguns temas e interesses se mantiveram presentes a despeito da passagem do tempo: escrita, desenho, sexualidade, educação e cultura japonesa são alguns sobre os quais já escrevi aqui no Olhar de Raposa. Porém, se desejo fazer justiça a um hobby que me acompanha desde a infância, não posso esquecer dos jogos de RPG
O que é RPG
Do inglês roleplaying game (jogo de interpretação de papéis), o RPG é um jogo em que um grupo de pessoas se junta para interpretar personagens lidando com uma série de situações e desafios propostos por um narrador. Dependendo do grupo, uma mesma história pode seguir por anos – por exemplo, já narrei campanhas que duraram mais de dois anos, encontrando o mesmo grupo de amigos praticamente todas as semanas para jogar por quatro a seis horas de cada vez.
RPG é um jogo de faz de conta com regras e estrutura. Há inúmeros sistemas com regras e cenários diversos, o mais famoso sendo Dungeons & Dragons (D&D), que se passa em mundos de fantasia medieval no estilo de O Senhor dos Anéis.
Tipicamente, uma sessão de jogo envolve a seguinte estrutura: o narrador propõe uma situação para o grupo de jogadores. Os jogadores então decidem como seus personagens responderão à situação. Dependendo do caso, podem haver testes e rolagens de dados envolvidos para determinar o sucesso ou falha das ações dos personagens. Após essas respostas e testes, o narrador avalia o resultado das atitudes dos jogadores e narra o que acontece a seguir, propondo uma nova situação, e assim por diante.
Para dar um exemplo:
Narrador: Após algumas horas percorrendo a encosta da montanha, vocês chegam ao local marcado no mapa. Observando a área com cuidado, vocês percebem que há algumas pequenas inscrições no penhasco. Jogador 1, você reconhece que são runas do idioma anão. Elas dizem: “diga amigo e entre”. O que vocês fazem?
Os jogadores então conversarão entre si, decidirão o que fazer, e quando algum jogador disser como seu personagem pretende agir, o narrador responderá com os resultados dessa ação, continuando a narrativa.
Nos tempos modernos, os jogos de RPG têm experimentado muitos formatos alternativos – jogos sem narrador, jogos individuais etc. –, tornando o hobby ainda mais interessante e envolvente. Há jogos de RPG para muitos gostos diferentes: fantasia medieval, cyberpunk, horror, comédia, super-heróis, a lista é potencialmente infinita.
As origens do RPG
Reza a lenda que o RPG nasceu de um jogo de tabuleiro de guerra em 1974. Um dos jogadores havia criado um castelo impenetrável e desafiado seus amigos a vencerem em uma batalha. Diante da falha, um desses amigos sugeriu que um guerreiro solitário conseguiu entrar na fortaleza por uma passagem secreta… Na semana seguinte, o grupo se reuniu novamente para viver as aventuras desse guerreiro solitário adentrando uma fortaleza cheia de perigos, e daí teria nascido e evoluído o jogo.
Se é verdade, não sei, mas também não me importo. Eu gosto da anedota e acho que ela revela como a semente do RPG é plantada e espalhada pelo coração das pessoas.
O RPG chegou na minha casa por meio do meu irmão. Eu não lembro qual foi a primeira vez em que jogamos, mas recordo de algumas sessões em que ele reuniu seus amigos e me incluiu no grupo.
Eu gostei tanto da experiência que passei a narrar meus próprios jogos usando o tanto que havia compreendido sobre as regras e inventando o resto. Não sei exatamente quantos anos eu tinha nessa época, mas uma foto demonstra que eu era muito novo quando comecei a apresentar o jogo para outros amiguinhos.
Desde aquela época, passei a consumir literatura relacionada a jogos de RPG, e se a internet já existisse, certamente passaria meu tempo lendo artigos e blogs online para aprender mais. Certa vez, nas férias de verão, fui registrado lendo um livro que dizia “como ser um mestre?”. Mestre é outra palavra para o narrador do jogo.
Como o RPG contribuiu com a minha vida
Já que a ideia deste texto é ser um elogio ao RPG, gostaria de usar o restante do artigo para contar algumas das coisas que aprendi com o jogo.
Fazer amigos
Quem me conhece hoje – facilitador de grupos, gerente de projetos, palestrante – tem dificuldade em acreditar que fui uma criança tímida e sem muita noção de como me conectar com outras pessoas em situações sociais. O RPG me proporcionou uma desculpa perfeita para procurar e convidar pessoas para estarem comigo semana após semana, trocando experiências e crescendo no processo.
Foi por meio do RPG que fiz algumas das minhas amizades mais duradouras, além de criado laços tanto em São Paulo quanto em Tóquio.
Planejar eventos
Quando criei o Ninho de Escritores lá em 2014, eu nunca havia gerenciado um negócio antes, mas eu já tinha experiência em reunir um grupo de humanos para encontros periódicos que eram coordenados por mim. Embora os jogos fossem de graça, em muitos jogos nós fazíamos divisão de recursos para comprar comida, então considerações sobre orçamentos e como eles atendiam a diferentes necessidades de pessoas distintas também foram parte dessa experiência.
Gerenciar conflitos
Reunir pessoas propicia o surgimento de conflitos, que por sua vez têm o potencial de minar o objetivo principal do jogo, que é a diversão para todos. Nas minhas décadas de jogo, precisei lidar com pessoas cujo estilo de jogo não encaixava bem com o que o restante das pessoas queria jogar, relacionamentos rompidos e conversas difíceis sobre remover jogadores do grupo.
Criar jogos e histórias
Durante o jogo, criamos histórias que precisam ser instigantes e envolventes para as pessoas que estão no grupo. Esse foi um aprendizado precioso para meu trabalho orientando escritores e, mais tarde, profissionais de atendimento a clientes ou gerenciamento de comunidades: precisamos reconhecer que a outra pessoa faz parte da relação e que seus interesses informam o que podemos fazer juntas.
Além disso, a maneira como o RPG funciona me convida a continuamente buscar mecânicas de jogo mais interessantes para produzir as experiências que desejo, algo fundamental para meu trabalho como facilitador de grupos, em que as dinâmicas escolhidas influenciam o resultado de eventos e encontros.
Improvisar
Embora não seja um jogo de improviso no sentido mais clássico, o RPG flerta com a lógica do improviso: aceitar que o outro é diferente, deixar o “não” de fora, entender que errar faz parte e improvisar é diferente de fazer gambiarra. Como narrador, acolher e incluir o que os jogadores propõem me ajuda a criar uma experiência mais divertida para todos.
O RPG na minha vida hoje
Tenho pensado muito sobre RPG ultimamente por duas razões.
A primeira é que montei um novo grupo para jogos presenciais aqui em São Paulo. Enquanto normalmente grupos de RPG têm um número fixo de jogadores (na média, de quatro a seis incluindo o narrador), decidi experimentar um formato diferente (para os conhecedores, me inspirei no estilo West Marches), em que um grupo maior de jogadores participa de uma mesma campanha ou cenário e cada jogo conta com uma composição diferente de jogadores. Esse formato tem vantagens e desafios particulares sobre os quais eu gostaria de escrever no futuro, mas imaginei que primeiro precisava fazer uma introdução ao hobby para que minhas leitoras não ficassem perdidas.
A segunda razão é que estou, pela primeira vez, me organizando para trabalhar como mestre ou narrador de RPG profissional, cobrando por sessões de jogo. Por anos hesitei em relação a esse caminho, mas o contexto atual da minha vida tem me oferecido tanto as ferramentas quanto a confiança necessárias para investir nessa aventura. Também pretendo escrever sobre esse tema no futuro, incluída aí a noção de capitalizar hobbies e as vidas possíveis sob o capitalismo.
Escrevi tudo isso para dizer que, sem o RPG, eu seria uma pessoa completamente diferente hoje em dia, e não saberia nem começar a reconhecer de que formas.
Fica aqui, portanto, o meu elogio ao jogo e a tudo de bom que ele trouxe para mim nessas últimas décadas.
Com carinho,
Tales
Oiê! Dia!! Que história!! Estamos começando uma mesa de RPG on-line! Temos uma grande história e ligação com o RPG. Há mais de 25 anos... Caso você tenha interesse, me avise (sou o Cris)