No segundo encontro do curso de escrita compassiva, expliquei o meu entendimento sobre comunicação não-violenta, um dos conceitos centrais que estudamos e praticamos. Posto de forma simples, entendo que a CNV (como a chamamos, nós íntimos) é “uma escolha, uma investigação sobre como criar relações com maior qualidade de conexão e tornar a vida mais maravilhosa para todos”.
A razão pela qual escolho apresentar meu entendimento de CNV antes de falar sobre outros elementos que a constituem, como necessidades, sentimentos e estratégias, é porque reconheço como é importante (1) termos nomes para dar sentido ao que vivemos, queremos e fazemos, e (2) cuidar para que os nomes que utilizamos tenham significados compartilhados. Do contrário, o desencontro acontece por acharmos que estamos falando da mesma coisa apenas porque utilizamos as mesmas palavras.
Quanto mais abstrato o termo, mais fácil é o desencontro acontecer.
Em meu relacionamento com Draco (sobre o qual relatei aqui), diversas vezes usamos termos parecidos, porém com intenções distintas. Isso gerou alguns conflitos entre nós, até que começamos a atentar para essas ocorrências.
Recentemente, disse a ele que, ao pensar nos meus relacionamentos, percebo uma hierarquia de importâncias – entendendo que, por conta do nível de conexão e compromisso que tenho com cada pessoa, acabo tratando-as com diferentes prioridades.
Na prática, isso significa que dedico mais tempo, atenção e energia para algumas pessoas do que para outras.
Entretanto, quando Draco e eu nos conhecemos, me apresentei como uma pessoa não-monogâmica, o que significaria, entre outras coisas, uma não-hierarquia entre minhas relações afetivas. Ao ter essa aparente contradição apontada, em princípio reconheci que se tratava de algo a ser resolvido no futuro. Porém, lendo mais do livro More than two (sobre o qual tenho falado nas últimas semanas), encontrei um trecho que dissipou minha confusão.
Ler esse trecho me aliviou os pensamentos, pois não me importo em dedicar mais ou menos atenção para uma ou outra pessoa, dependendo das circunstâncias. Aliás, nem me parece produtivo tentar equilibrar plenamente todas as relações que mantenho na vida, já que cada uma é distinta das demais.
A hierarquia que evito é aquela em que pessoas de uma relação tenham poder para se intrometer naquilo que não as envolve. Se namoro uma pessoa, essa pessoa não há de ter poder sobre outros relacionamentos meus, sejam de amizade, de namoro ou qualquer outro nome que venham a receber.
Essa é a hierarquia que recuso, uma hierarquia que impõe regras em vez de acordos.
Ainda me baseando no livro para fazer essas definições, acordos são feitos entre as pessoas impactadas por eles e estão sempre abertos à renegociação. Regras, por sua vez, são decididas por pessoas que nem sempre serão sujeitadas a elas.
No caso de relacionamentos não-monogâmicos, pode acontecer que um casal se entenda como principal e, a partir dessa definição, imponha regras sobre outros relacionamentos desenvolvidos por seus participantes. Por exemplo, a regra de que não se deve dizer “eu te amo” para outras pessoas, ou que não se possa dormir junto com outras pessoas além do “parceiro principal”.
Relacionamentos hierárquicos se instituem com regras, o que pode reduzir a autonomia e liberdade das pessoas envolvidas, especialmente aquelas que não participaram da criação dessas regras.
Regras normalmente são criadas na tentativa de nos proteger de alguma coisa. São uma reação ao medo de que algo ruim aconteça.
Lembro de um relacionamento anterior, também aberto, em que tínhamos a regra de contar tudo um ao outro – especificamente o que dizia respeito às nossas experiências sexuais e afetivas. Um dos resultados dessa regra foi a sensação de aprisionamento, inclusive chegando ao ponto de deixar de estabelecer contato com algumas pessoas para não ter que conversar a respeito depois (uma vez que, naquele relacionamento, conversas íntimas frequentemente se tornavam brigas).
Acredito que relacionamentos saudáveis são elaborados conjuntamente a partir de muita conversa, negociação, atenção e cuidado. O que me traz segurança ao me relacionar não é um conjunto de regras, mas sim a consciência de que confio nas pessoas que escolhi como parceiras ou amigas para cuidarem do nosso relacionamento com carinho e compaixão.
Essa crença é particularmente importante quando equívocos ou conflitos acontecem. Escolho acreditar que, a despeito de tropeços, há intenção de nutrir uma relação que seja positiva para todas as pessoas envolvidas.
Coincidentemente, essa crença também ajuda quando nos desencontramos nas palavras e em seus significados.
Se confio nas pessoas com as quais me relaciono, não preciso de regras para coagi-las a agirem como eu gostaria. 😊
Nesta semana, realizei um sonho e abracei uma raposa.
Fui a um parque/zoo/vila de raposas aqui no Japão e passei algumas horas ao redor de dezenas de raposas. Saí de coração leve e encantado com essas criaturas que tanto me inspiraram ao longo da vida (neste texto explico por que gosto de raposas).
Obrigado pela companhia em mais uma carta digital!
Com carinho,
Tales
Muito bem posto, Tales. Obrigada por compartilhar essa visao da hierarquia, regras x acordos, e apontar o desencontro das palavras / termos. Esse desencontro acontece com frequencia entre eu e meu parceiro, e lendo seu texto meu deu um 'plim'!