Eu me relaciono afetiva e sexualmente com múltiplas pessoas. Algumas dessas pessoas se tornam parceiras recorrentes de longa data, como Ayrton (que já mencionei em cartas anteriores ao falar sobre amor livre), com quem me relaciono há três anos e de cuja família participo ativamente quando estou na mesma cidade que eles. Com outras pessoas elaboro modelos relacionais diferentes, tentando cuidar das particularidades de cada conexão.
Em comum entre todas minhas relações está a premissa de transparência e honestidade sobre a existência de outros afetos: quem se relaciona comigo sabe que não há promessa de exclusividade sexual ou afetiva, o que não significa que haverá desrespeito ou descuido.
Já venho pensando e praticando essa lógica de amor livre e/ou poliamor há algum tempo, e dois textos gestados durante um relacionamento hoje encerrado formam um pano de fundo para o que quero contar hoje:
Ainda hoje em meus relacionamentos preciso lidar com o que venho chamando de “os fantasmas da monogamia”, que ainda existem forte dentro de mim. Esses fantasmas tentam me acorrentar a ideias, narrativas e sentimentos que, mesmo que não façam mais sentido racionalmente, ainda se fazem sentir.
É sobre esses fantasmas e o que tenho feito para lidar com eles que quero falar na carta digital de hoje.
Eu me relacionei com um bom punhado de pessoas desde que cheguei aqui no Japão. Conexão e intimidade são importantes para mim e tornam minha experiência de vida mais leve e alegre, então desde que pousei em Tóquio venho buscando conhecer novas pessoas.
Às vezes, o resultado dessa busca são encontros para transar. Outras vezes, podem ser apenas encontros para jantar e conversar. E em outras situações, ocorre uma faísca de amizade que acende sentimentos e expectativas de novos encontros no futuro.
Uma das pessoas que conheci aqui no Japão foi Draco (esse é um pseudônimo; decidi manter seu nome em segredo para cuidar de sua intimidade). Começamos a conversar via Grindr (aplicativo voltado para homens gays) no dia seguinte à minha chegada e tivemos nosso primeiro encontro no início de novembro. Ele não mora em Tóquio, então nossa frequência de encontros inicialmente esteve limitada aos finais de semana em que ele visitava a cidade.
Conforme nos encontramos, fui percebendo dentro de mim o florescer de novos sentimentos. Muitos desses sentimentos eram lindos: carinho, afeto, curiosidade. Quanto mais nos víamos, mais vontade eu tinha de encontrá-lo novamente. Entretanto, observei alguns outros sentimentos crescendo enrolados nos demais.
Quando os percebi, contei a Draco que se tratava de ciúmes. Assim como eu, ele continuava encontrando outras pessoas e vivendo momentos de intimidade afetiva e sexual, algo que o fantasma da monogamia que habita em mim considerou inaceitável, uma clara indicação de que eu era insuficiente e que logo seria trocado por alguém melhor.
Pausa para fazer três comentários.
Investigando meus sentimentos mais a fundo, percebi que eu não estava sentindo apenas ciúmes. Havia também um bocado de inveja. Draco vive em Tóquio há seis anos e já tem uma rede estabelecida de pessoas com as quais pode explorar momentos de intimidade, enquanto eu ainda estou dando os primeiros passos para estabelecer minhas conexões. Cada vez que ele vinha a Tóquio, encontrava diversas pessoas ao longo do final de semana, um ritmo de vida e de conexões que me parecia bastante desejável.
Ao mesmo tempo, o fantasma da monogamia gritava que a busca dele por outras pessoas significava que eu jamais seria suficiente para sanar suas necessidades afetivas – algo que, aliás, faz muito sentido. Não quero ser a única fonte de afeto de ninguém, pois estratégias únicas são perigosamente fáceis de serem perdidas. O que quero questionar aqui, entretanto, é a noção de insuficiência. Não busco intimidade com outras pessoas porque sinto falta de intimidade em minhas relações atuais. Busco mais intimidade porque gosto de intimidade e quero mais em minha vida, porque afeto e amor existem em abundância no mundo e não há contraindicação.
Outro grito do fantasma da monogamia é sobre existirem pessoas melhores que eu. Essa é uma ideia que faz sentido se preciso ser a melhor pessoa para ocupar o papel de “O parceiro afetivo”, porém cai por terra quando reconheço que estou vivendo num mundo amplo junto a muitas outras pessoas. Ninguém é melhor que eu e eu não sou melhor que ninguém. Pessoas são diferentes, fazem coisas distintas com níveis de habilidade variados e se conectam umas com as outras cada uma à sua maneira. Ter mais ou menos química com alguém não diz nada sobre eu ser melhor ou pior que outros humanos.
Avança o tempo, Draco passou uma semana aqui em casa antes de viajar de volta para sua terra natal. Ele foi embora na sexta, Ayrton chega para me visitar no sábado (quando esta carta tiver chegado ao seu e-mail, eu estarei recebendo-o no aeroporto). Tanto Draco quanto Ayrton sabem um do outro, está tudo certo na vida.
Entretanto, terça-feira foi feriado aqui no Japão, então Draco, meus amigos de escola, um conhecido dele e eu nos reunimos para uma tarde de jogos de tabuleiro. Foi tudo divertido e bacana, era a primeira vez que ele e esse conhecido se encontravam pessoalmente após terem se conectado via internet meses atrás. Quando a noite chegou, fui embora primeiro porque precisava trabalhar. Draco e os demais continuaram juntos para jogar.
Quando Draco finalmente retornou, já mais para o final da noite, conversamos e ele me contou que havia sido beijado por seu amigo.
Muitas coisas aconteceram a partir do momento em que ouvi essa informação. Meu coração pesou, afundando gelado no peito. Eu já havia sentido isso antes e reconheci como uma mistura de ciúme e insegurança. Em relacionamentos anteriores, quando meus parceiros experimentavam afetos com outros humanos, isso geralmente significava uma redução na qualidade de presença deles em nossa relação. Ao mesmo tempo, eu sabia que não queria validar aquele sentimento.
Draco perguntou como eu estava.
Expliquei o que estava sentindo, mas também contei o que preferia sentir. Queria sentir compersão. Compersão é uma palavra criada para descrever um sentimento positivo de saber que alguém que amamos ou queremos bem está feliz, em geral como fruto de conexões afetivas com outros indivíduos.
Seguimos conversando abertamente até que quaisquer traços de ciúme e insegurança foram desfeitos dentro de mim. Ao final de nossa conversa, alcancei a compersão e estava já pronto para celebrar a experiência que ele teve como algo positivo e feliz. Como não ficar feliz quando alguém que quero bem recebe carinho e atenção?
O fantasma da monogamia tentou me arrastar para um fundo de poço, sussurrando inseguranças e receios, mas desta vez consegui me livrar deles sem muita demora, em grande parte porque Draco estava ali comigo oferecendo justamente o que eu tinha medo de perder.
Tudo o que o fantasma pode fazer é conjurar cenários futuros ou me lembrar de experiências passadas. Para escapar dele, precisei lembrar das minhas práticas de autocompaixão, reconhecendo que (1) é difícil sentir e lidar com essas coisas, (2) é comum experimentar ciúmes quando fui criado numa sociedade monogâmica e (3) passado e futuro não existem senão em narrativas – e se esse é o caso, posso escolher quais histórias quero cultivar.
Com lucidez, fui capaz de reconhecer as narrativas que não quero cultivar. São essas narrativas que informam meus sentimentos de ciúme e insegurança, então por mais que tenha reconhecido e acolhido o que estava sentindo, escolhi não validar as histórias do fantasma da monogamia, o que tornou mais fácil abrir espaço para outros sentimentos.
De volta à leveza no coração, pude reconhecer dois sentimentos paralelos conforme o final de semana se aproximou: tristeza por ver Draco partir, felicidade pela antecipação dos dias felizes que terei com Ayrton por aqui.
Cabe muita coisa na vida ao mesmo tempo. ❤
Passei a semana ocupado com minha última semana na escola de japonês (concluí meus estudos, daqui para frente terei um mês para viver o Japão antes de retornar ao Brasil), novos projetos no trabalho, a visita de Draco em minha casa e os preparativos para a chegada de Ayrton, então não separei muitos links para compartilhar.
Ainda assim, gostaria de reforçar o convite que trouxe nas cartas anteriores: em meados de abril darei início a um curso de escrita compassiva. Se tu tiver interesse, por favor preencha esse formulário e entrarei em contato com mais detalhes.
E se tiver dúvidas, estou por aqui para conversar!
Com carinho,
Tales
Uau, incrível ver a montanha russa de sentimentos. Eu geralmente não gosto de sentir muitos sentimentos de uma vez só, isso me deixa pesado e meio desgostoso. Pensando com meus botões se conseguiria ter um relacionamento poliamor. Acho que não hein.
Oi Tales! Obrigada pelo texto! :)
Por quanto tempo o curso de escrita compasiva será oferecido?
Abraços, Helô.