De vez em quando, alguém me pergunta: Tales, por que tu gosta tanto de raposas?
A história tem duas versões.
A primeira delas, que classifico como “não estou com tempo ou energia para uma conversa profunda”, não deixa de ser verdade, apenas é resumida e para na superfície.
Eu era criança e via meu irmão jogando Sonic no Megadrive. A partir do segundo jogo da franquia, um personagem foi adicionado: Tails, uma raposa de duas caldas que podia voar. Em inglês, Tails e Tales são palavras lidas da mesma forma, portanto me identifiquei com o personagem e passei a prestar atenção em raposas.
É só isso.
Eu avisei que era superficial. 😄
A segunda versão exige uma elaboração mais profunda, mas que sinceramente acho também mais interessante.
Como qualquer adulto que um dia foi criança, vivi um pacotinho de frustrações e dores individuais e sociais que se transformaram em traços de personalidade e mecanismos de defesa. Digo vivi, assim no passado, para marcar o caráter histórico, não para sugerir que hoje não vivo mais.
Uma vida sem frustrações e dores, já pensou? (eu já, inclusive já escrevi sobre)
Em meio a bullying e a não saber direito quem eu era, do que precisava ou o que queria, passei infância e adolescência cultivando um certo ressentimento em relação à vida. Eu queria viver coisas bacanas, mas achava que não as vivia. Estava concentrado demais naquilo que percebia faltar – especificamente relações afetivas e sexuais – para conseguir enxergar o tanto de maravilha a que tinha acesso – uma família amorosa, viagens a lugares diversos, possibilidade de estudar e aprender sem precisar trabalhar, para apontar algumas coisinhas.
É o velho perigo do binário, que separa tudo em ou sim ou não, ou tem ou não tem, sem espaço para complexidade.
Pois quando conheci Tails e comecei a me interessar por raposas, eu era ainda uma criaturinha assustada e treinada para agradar aos outros em detrimento de mim mesmo. Spoiler alert: ainda sou, mas pelo menos agora tenho ferramentas melhores...
Estudando sobre raposas, descobri mitologias orientais que as apontavam como criaturas espertas, eróticas e confiantes, tudo o que eu queria ser. Com isso em mente, passei a me enxergar dividido entre duas personalidades:
o canceriano, minha versão tímida, medrosa, assustada;
a raposa, minha versão idealizada, confidente, honesta.
Com esses dois personagens, conseguia nomear e entender meus comportamentos, mesmo quando eles pareciam contraditórios entre si. Afinal, como alguém que às vezes era tão corajoso podia ser tão medroso alguns minutos depois, num contexto diferente?
A raposa, portanto, passou a ser um símbolo do que almejo ser.
Por anos (desde 2006), mantive um blog chamado Raposa Antropomórfica, em que meu propósito com a escrita era pensar e compartilhar sobre meus processos internos, dificuldades e descobertas.
Somente em 2014, quando mudei de Goiânia para São Paulo, é que decidi me afastar da ideia da raposa porque estava considerando-a “pouco adulta”. Olha as bobagens que a gente faz pra tentar se encaixar no que pensamos que os outros esperam de nós..
Parei com o blog e comecei um site pessoal próprio. Eu queria produzir para mim uma imagem mais séria, deixar de ser raposa e virar mais Tales. Curiosamente, mantive a raposa como símbolo pessoal e àquela altura todos os meus amigos já sabiam o quanto raposas eram significativas para mim, então a referência continuava ao meu redor.
Quando enfim decidi mudar do meu blog pessoal e do meu perfil no Medium (que também estava vinculado ao meu nome), escolhi Olhar de Raposa para retomar essa busca por um comportamento de utopia.
Mais do que sexy e esperto, porém, atualizei o Olhar de Raposa para representar outros valores que quero praticar cada vez mais, valores estes que estão representados no mantra que repito antes de dormir, que já trouxe aqui algumas vezes e que segue crescendo:
Que eu possa ser livre e leve, lúcida e honesta, compassiva, conectada e corajosa.
A última adição, por exemplo, foi corajosa, ali no final. No futuro, voltarei a tratar sobre essa prática de lembrar o que me importa e o que cada uma dessas palavras significa para mim.
Agora, porém, quero sinalizar algo diferente.
Escrevendo em meu diário, percebi que o canceriano e a raposa não me parecem mais suficientes para refletir sobre meus comportamentos. Às vezes sinto como se houvesse uma bancada de múltiplas vozes aqui dentro de mim, todas elas disputando o controle sobre minhas ações, algo parecido com o que é apresentado no filme Divertidamente e também nos textos do Wait but why sobre procrastinação.
Uma das novas vozes que percebi em mim é a do Paladino da Justiça, meu lado juiz e controlador, que sabe o que é o melhor para si e também para todo o resto do planeta. Essa é uma voz que escuta pouco, exceto quando se trata de aprender novas regras e fronteiras, tanto para mim quanto para os outros.
Também tenho um macaquinho da gratificação instantânea que fica a me puxar rumo à busca de prazer ligeiro e descompromissado, além de outras vozes emprestadas sussurrando e conspirando pelo controle do que faço ou deixo de fazer.
Reconhecê-las é um exercício contínuo.
Ai, Tales, que loucura isso tudo, sussurra o canceriano. Vão te achar um idiota patético por ficar fazendo esses joguinhos de linguagem em vez de assumir que tu é um humano quebrado que precisa de terapia.
Talvez sim, mas talvez não.
E é pelo talvez não, no exercício de tentar dar voz cada vez mais ao lado raposa, que seguirei brincando com esses conceitos por meio da arte com a escrita e o desenho. 🦊
Para olhar por aí
Uma pequena lista de indicações e afetos colhidos durante a semana. Os links estão nos títulos.
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Um fascista no divã
Um texto provocativo que informa sobre uma peça que estará em cartaz em março em São Paulo. Mesmo que não se vá ao teatro, vale a reflexão.
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Idealismo (achei no Facebook)
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A crueldade das horas e dos quilômetros
Gostei muito da forma como a Priscila Mayer traduziu em texto uma série de ansiedades e medos e excitações que envolvem se enamorar por alguém que não está perto. Coração é coisa selvagem, né?
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Instante perecível
A Bruna Roisenberg compartilha diários pessoais sobre os momentos que antecedem uma grande mudança de vida, um tema sobre o qual não somos estranhos aqui no Olhar de Raposa.
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Vou te falar
A Carolina Sandler apresenta a experiência dela com o ChatGPT, no que foi a segunda das três empurradinhas que me levaram a brincar com a inteligência artificial. No texto ela cita a primeira, que foi um texto da Lalai Persson, enquanto minha terceira foi um colega que abriu o dito cujo na minha frente.
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Kimchi Cuddles
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Muito obrigado pela companhia até aqui!
Com carinho,
Tales