Um dos maiores desafios de levar uma vida não-monogâmica e poliamorosa é a escassez de referenciais positivos nos quais me basear.
Nossa sociedade é pautada por um pensamento monogâmico e, por tabela, hierárquico. Não à toa, a maior parte das situações dramáticas em filmes e seriados que abordam relacionamentos afetivossexuais poderiam ser resolvidas com diálogo franco se a monogamia não fosse uma pressuposição.
Quando falo em monogamia, não estou falando da escolha individual de se relacionar afetivossexualmente com apenas uma pessoa. Monogamia é um sistema de pensamento que hierarquiza relacionamentos e condiciona o que se entende como possível ao se relacionar com outras pessoas – inclusive legalmente. Não tenho nada a dizer sobre como as pessoas escolhem se relacionar umas com as outras. Isso dito, entendo monogamia como um sistema violento que restringe liberdade e autonomia em nome de preservar poder e um senso de segurança (que, como sempre, é ilusório).
Nos últimos meses tenho vivido de forma mais prática minha busca por relacionamentos não-monogâmicos e poliamorosos, o que me levou a pesquisar, conversar e refletir sobre como entender relacionamentos quando eles não estão sujeitos às nomenclaturas e expectativas que aprendi crescendo em uma sociedade de pensamento monogâmico.
Uma referência que já trouxe aqui algumas vezes é o livro More than two, que compartilha muitas experiências de pessoas se relacionando e se organizando de maneiras diversas. Hoje quero trazer mais um aprendizado que tive com este livro, pois acredito que me ajuda a nomear as coisas quando os nomes que tradicionalmente acompanham a monogamia – amizade, namoro, casamento etc. – se tornam menos evidentes quando perdem o selo de exclusividade.
No livro, os autores apresentam uma estrutura para pensar relacionamentos a partir de três fatores principais: conexão, compromisso e poder.
A conexão diz respeito ao que normalmente chamaríamos de química, a como “nos damos” com alguém e o quanto estamos envolvidos e empolgados com um relacionamento específico. Conexão é algo que varia com o tempo, tendendo a ser muito mais intensa quando nos apaixonamos por alguém, por exemplo.
O compromisso tem a ver com os acordos e arranjos que as pessoas envolvidas em suas relações estabelecem. Se moro com alguém e divido contas, meu nível de compromisso é maior do que com alguém que encontro uma vez a cada seis meses quando as agendas se encaixam. Assim como a conexão, o nível de compromisso tende a variar com o tempo a depender do contexto. Porém, é importante notar que conexão e compromisso não necessariamente caminham juntos – tampouco deveriam.
Por fim, o poder se refere à capacidade de influenciar decisões de nosso(s) parceiro(s), ou seja, é o nosso poder de barganha dentro de uma relação. Em geral, quanto mais conexão e/ou compromisso, mais poder. Assim como conexão e compromisso, porém, o poder é um marcador fluido, dependente de contexto e momento.
Considero essa estrutura interessante para pensar sobre relacionamentos porque ela oferece um meio de “tirar um retrato” de como as coisas estão no agora de uma maneira mais dinâmica do que nomes como “namorado” ou “marido” dão conta de oferecer.
Além disso, essa é uma estrutura que vale para todos os relacionamentos que mantemos, qualquer que seja o rótulo que utilizamos para classificá-los. Amizade? Funciona. Família? Tá valendo. Amante? Bora lá.
Junto com essa estrutura, acho importante pensar em que acordos e disposições estão envolvidos quando pensamos sobre compromisso.
Por exemplo, não é um acordo tampouco uma regra, porém Ayrton e eu temos o costume de trocar mensagens de bom dia e de boa noite diariamente quando não estamos fisicamente juntos. Durante os sete meses em que morei no Japão enquanto ele continuou aqui em São Paulo, esse hábito contribuiu tanto para um senso de estabilidade da relação quanto para sustentar nossa conexão.
Um dos pontos mais importantes para mim nessa estrutura – e que tem a ver com a noção de compromisso – é que ela não carrega uma intrínseca expectativa de eternidade. Quando adotamos o nome “namoro” para um relacionamento dentro da lógica monogâmica, há apenas duas possibilidades de futuro a partir daí: o término ou a “evolução” para noivado ou casamento. Quando penso sobre os níveis de conexão, compromisso e poder nos meus relacionamentos e reconheço que eles são fluidos e dependentes de contexto, acho mais fácil reconhecer o caráter orgânico das relações.
Costumo dizer que meu compromisso em um relacionamento há de durar enquanto o relacionamento fizer sentido para mim. Isso não quer dizer que, assim que bater um vento, mudarei de direção e abandonarei a construção – sempre colaborativa – daquele relacionamento específico. Ao mesmo tempo, significa uma abertura para reconhecer que talvez tenha chegado um momento em que aquela modalidade de conexão já não está mais satisfazendo o que gostaria de viver, e aí cabe reavaliar o que fazer e como proceder, sempre mantendo um espírito de comunicação aberta e honesta.
Aliás, cabe destacar que cabem muitas coisas dentro da ideia de conexão. Podemos nos conectar em diferentes níveis com diferentes pessoas. Com umas há uma química sexual; com outras as conversas nos levam a profundidades; com outras ainda talvez gostemos muito do tempo que passamos jogando juntas. Não tem regra nem prescrição, nos conectamos com pessoas de maneiras múltiplas.
Reconhecer que não precisamos (nem vamos) encontrar o mesmo tipo de conexão em todas as nossas relações me parece fundamental para uma vida mais leve. Isso inclusive abre espaço para acomodar mudanças com mais lucidez, já que o tempo tende a modificar o modo como nos conectamos com outros humanos. Talvez um relacionamento que começou muito sexual agora se baseia em outras formas de conexão para se sustentar.
No passado, vivi um relacionamento em que meu então namorado perdeu o interesse sexual por mim. Na época, eu estava tão concentrado na ideia de que “namoro” significava alguém que queria passar tempo junto comigo e transar (sempre) que a única solução que fui capaz de encontrar foi o afastamento ressentido. Eu reconheci que a dinâmica da nossa conexão estava mudando, mas fui incapaz de me adaptar porque estava agarrado à ideia fixa do que tínhamos que viver juntos, pois éramos namorados.
Talvez – e digo talvez porque é impossível saber – nosso relacionamento pudesse ter se desenvolvido de outra maneira se eu estivesse aberto a vivê-lo no momento presente em vez de fixado no que havia idealizado. Eu poderia ter reconhecido outras formas de conexão que compartilhávamos e avaliado se elas me eram suficientes para continuar vivendo aquela relação – a partir de uma nova perspectiva que, naturalmente, influenciaria também nossos níveis de compromisso e poder.
Navegar relacionamentos já não é algo fácil quando seguimos os modelos tradicionais que aprendemos socialmente, problemáticos como são. Cada situação, encontro e contexto traz desafios, dúvidas e potenciais distintos. Por isso mesmo, estar atento ao que está vivo no momento me parece o melhor conselho possível, ainda que essa perspectiva ofereça muito pouca segurança de que as coisas continuarão boas e seguras se continuarmos fazendo o que nos acostumamos a fazer – porque, qualquer que seja o relacionamento, a verdade é que as coisas vão mudar, de um jeito ou de outro.
Isso é a vida acontecendo. ❤
Com carinho,
Tales
Tales, tenho uma dúvida: é legal ter um relacionamento aberto, vejo muitas vantagens, como a possibilidade de continuar conhecendo pessoas legais e se relacionar com elas, entretanto, também sinto que de alguma forma os relacionamentos não monogâmicos vão acabar de alguma forma, talvez pela própria flexibilidade em si. Como você vê esse sentimento? parece que é tão simples se desafazer de uma relação não monogâmica: existe compromisso em uma relação não monogâmica?